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Só os índios, hoje, se preocupam com o futuro. Os brancos só olham para o presente’. Entrevista com Dom Erwin Kräutler

“Se a gente toma posição a favor dos colonos, sem-terra, agricultores, sem-teto, isso provoca alguém que pensa que vai perder com essa posição.” Foi assim que Erwin Kräutler, bispo de Altamira, município situado em plena selva amazônica do Pará, “adquiriu” seus inimigos. Lá, ele enfrenta os perigos que sua posição o impõe, incluindo constantes ameaças de morte. Por 23 anos, trabalhou ao lado de Irmã Dorothy Stang, até quando, em fevereiro de 2005, aqueles que tanto o ameaçam contra sua luta tiraram a vida da missionária estadunidense.

Dom Erwin Kräutler fala, além desse assunto, da reserva indígena de Serra Raposa do Sol e da Assembléia dos Bispos, que aconteceu ao longo da última semana em Itaici, município de Indaiatuba (SP). “Nossa justiça é classista, pois defende o direito dos intrusos, dos que não têm direito”, disse em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor pode contar um pouco sobre sua história e sua luta aqui no Brasil?

Dom Erwin – Minha vinda para o Brasil estava programada já desde quando eu era menino. O meu tio, irmão da minha mãe, já trabalhava no Xingu [1]. Ele chegou em 1934, como missionário. Lá em casa, o Xingu era um lugar muito conhecido, porque o tio escrevia cartas que eram Aldeia Kamaiurá, Alto Xingúlidas em família. Desse modo, nos afeiçoamos ao Xingu, mesmo sem saber que rumo tomar para chegar nele. Assim, naquele tempo eu já tinha vontade de ir ao Xingu, mas os estudos vieram e coloquei esse desejo mais de lado. Quando eu terminei o que hoje é o Ensino Médio e precisava ir para a universidade, precisava decidir o que fazer da vida. Decidi, então, por entrar na mesma Congregação da qual meu tio fazia parte: a Congregação dos Missionários do Sangue de Cristo. Fiz o noviciado, a faculdade de Filosofia, depois Teologia e, então, fui ordenado em 3 de julho de 1965. Logo em seguida (eu nunca tive alguma experiência pastoral na Áustria), vim para o Pará, mais precisamente em 25 de novembro. Um mês depois, estive em Altamira e comecei a trabalhar como missionário novo. Trabalhei com a juventude, fui professor no único colégio que existia na região. Em 15 anos de padre, tomei conta de muitas comunidades da região, mas naquele tempo tinha muito menos gente no Xingu do que agora, porque a Transamazônica começou nos anos 1970. Foi então que aconteceu aquela migração do Sul para o Norte, do Sudeste para o Norte, e então Altamira aumentou do dia para a noite. Estradas foram feitas, as comunidades aumentaram e o mundo mudou. Eu era padre lá, assistia às comunidades e, em 1980, fui nomeado bispo. Em dia 25 de janeiro de 1981, fui consagrado como tal. Desde então, eu estou lá.

IHU On-Line – Como é para o senhor enfrentar os perigos de lutar contra os poderosos da Amazônia?

Dom Erwin – Acredito que não conseguimos enfrentar, de verdade, porque o problema é que tomamos posição e não procuramos brigar nem provocar ninguém. No entanto, se você toma posições a favor de um segmento da sociedade que é menos favorecido, você se torna adversário dos outros sem querer, porque contraria interesses de governança. Por exemplo, eu me coloquei ao lado dos povos indígenas, que têm direito à sua terra e isso é, automaticamente, visto como característico de quem é contra o progresso e desenvolvimento. Se a gente toma posição a favor dos colonos, sem-terra, agricultores, sem-teto, isso provoca alguém que pensa que irá perder com essa posição. De modo especial, esses aventureiros que vão para a Amazônia e querem enriquecer da noite para o dia se sentem “pisados no calo”. E eles reagem porque não têm argumento. Quem não tem argumento reage de maneira irracional, com ódio, faz ameaças e tem rancor.

IHU On-Line – Como as ameaças de morte chegam até o senhor? O senhor desconfia de quem esteja por trás disso?

Dom Erwin – Isso acontece, no meu caso, há bastante tempo, mas se fortaleceu em 2006. A primeira razão é sempre a minha defesa do meio ambiente e dos povos indígenas da Amazônia, especialmente no Xingu, e isso contraria interesses de governança. Especial, nesse caso, é o meu posicionamento contra a hidrelétrica Belo Monte [2] projetada para o Xingu. Eu não me posiciono contra a construção de hidrelétricas. Nesse caso, me posiciono contra a maneira como querem implantar essa hidrelétrica. Eu não aceito, porque o povo não está sendo consultado e nem suficientemente informado. Ele é colocado à margem, o que eu penso ser um absurdo em termos de democracia. Estão sendo muito autoritários num projeto como esse. Ele vai acabar com o rio de cima para baixo, sem que os povos tenham o direito de se manifestar. Ou seja, não se coloca a verdade toda, só se fala em vantagem. Por parte da Eletronorte, ninguém tem coragem de informar também a respeito dos prejuízos e desvantagens que essa construção vai trazer. Só se fala em salvação do oeste do Pará através dessa hidrelétrica porque temos uma visão do desenvolvimento economicista. Assim, Altamira será inundada por dinheiro, o que para muitos é um progresso. No ambiente, os povos indígenas serão os prejudicados. Para quem vai construir e lucrar com essa hidrelétrica, tal fato não interessa, porque se olha apenas para essa geração que está vivendo agora, sem uma preocupação com a geração que vem depois. Só os índios, hoje, se preocupam com o seu futuro. Eles perguntam: o que será dos nossos filhos? O branco parece que está olhando só o presente e faz de conta que depois de nossa geração virá o dilúvio. Isso é um absurdo.

Eu me posicionei nesse sentido, mas não estou sozinho. Tem muita gente comigo, que usa os mesmos argumentos, mas naturalmente somos olhados por parte dos poderosos, dos autoritários e prepotentes chefes e idealizadores do projeto como uma minoria que é contra o projeto. Não somos contra o progresso, apenas contra o tipo de progresso que eles estão querendo promover. Eu me tornei, sem que eu quisesse, inimigo deles. Eles me colocam como adversário e como bode expiatório de tudo. Outro fato pelo qual me ameaçaram é porque sou bispo de Xingu e comigo trabalhava, desde 1982, a irmã Dorothy [3]. Ela foi barbaramente executada em 12 de fevereiro de 2005. Como bispo, eu exigi a apuração, a investigação profunda do caso. Sempre defendi a tese de que existe um consórcio do crime que promoveu essa morte. Existe gente diretamente ligada ao crime e que a executou, mas também aqueles que prepararam um ambiente hostil odioso contra ela. Eu exigi das autoridades judiciárias aprofundassem a investigação ouvindo esse povo que durante muito tempo caluniou a irmã e preparou o caminho para que chegasse ao desfecho que chegou. Esse povo, obviamente, não está vendo isso com bons olhos e está com medo de poder ser chamado e investigado e ser descoberto alguma coisa. Então, de novo, são irracionais em suas ações e pensam em eliminar o bispo, que sou eu.

A gota d’água, que fez o copo transbordar, foi uma quadrilha que abusava sexualmente das meninas da região. A quadrilha era constituída pela nata de Altamira, por gente poderosa que abusou de meninas de 12 anos para cima. Eles pegaram meninas na porta do colégio e levaram para uma chácara, onde rolou de tudo: grana, álcool, drogas. O povo até denunciou esse fato, mas não surtiu efeitos, até que eu soube do negócio e fiz reuniões com o Comitê de Defesa da Criança, com as comissões de mulheres e com outras comissões de Direitos Humanos. Eu me encarreguei de denunciar esses fatos escrevendo cartas para o Ministério da Justiça, para a Secretaria dos Direitos Humanos, para as autoridades de segurança do Pará e, logo em seguida, alguma prisões foram efetuadas. Foram prisões de gente grande que, naturalmente, ficaram com muito ódio e queriam, então, se vingar. Esse é o pano de fundo para todas as ameaças que estou sofrendo.

Essas ameaças não acontecem por telefone, porque temos bina e assim é fácil rastrear. As ameaças acontecem de outras maneiras. Pessoas de minha total confiança passam em determinado lugar onde há desconhecidos que começam a falar alto dizendo que precisam matar o bispo, que o bispo deve sofrer a mesma sorte da irmã Dorothy. Isso acontece, por exemplo, numa procissão. Depois, recebo cartas anônimas e outras foram distribuídas por Altamira em que me acusam, me caluniam de uma maneira muito ruim. E, ainda, a maior ameaça aconteceu através da internet, em comunidades virtuais, quando apareceu na tela que o bispo não passaria do dia 29 de dezembro de 2006. Foi então que a Polícia entrou. Depois disso, eu pensei que as coisas pudessem melhorar. Estou escoltado desde 2006, mas em 26 de fevereiro um policial militar assistiu uma conversa em que dois elementos falaram de uma “parada” que iam realizar em Altamira. Essa “parada” era a minha execução por um prêmio de um milhão de reais. A partir de então, a coisa piorou. Já noticiaram algumas vezes que eu morri e companheiros meus foram executados. Todas, obviamente, são notícias mentirosas. Para onde eu vou, existe um policial junto. Eu sou cerceado na minha liberdade, mas também na minha missão.

IHU On-Line – Em sua opinião, o que significou a morte da irmã Dorothy Stang para a região e para os colonos no Brasil?

Dom Erwin – Ela defendeu os PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável), um modelo inventado pelo governo. Ela defendeu o direito dos colonos de terem um chão e um lugar para colher, o que contrariou os grileiros, os fazendeiros, que entendiam que essa terra era deles. Eles se autodenominaram donos da terra e isso gerou o conflito armado. A Dorothy, junto com os colonos, não abriu mão da terra e chegou ao ponto do crime que conhecemos. A Dorothy, antes de morrer, era conhecida na região do Pará, na região da Transamazônica. No entanto, fora desse estado ela não era conhecida até sua morte, que chamou a atenção do mundo inteiro para o problema da Amazônia, uma terra sem lei, onde o Estado está ausente e o a Justiça não funciona. Nesse sentido, a Dorothy foi uma pessoa que convocou o mundo inteiro para dar um passo à frente no sentido da defesa da Amazônia. Ela, certamente, através de sua morte, contribuiu muito para a sensibilização, conscientização do Brasil e do mundo a respeito da Amazônia.

IHU On-Line – Para o senhor, o que está em jogo em Roraima?

Dom Erwin – A área de Raposa Serra do Sol foi demarcada e homologada. O processo de demarcação de área indígena é o seguinte: primeiro se identifica a área, através de estudo antropológico. Depois, ela é delimitada. A seguir, é feita a demarcação, onde a área é oficialmente indígena. E o passo final é a homologação, ou seja, o presidente assina o decreto dizendo que essa área é indígena. Esse é o caso de Raposa Serra do Sol, pois a área foi homologada. Todos os passos foram feitos. Agora, claro, aqueles que estão lá dentro não têm direito de ficar. A área é indígena, e não de terceiros, que a invadiram. Então, o governo tem obrigação, através de suas forças, de tirar os intrusos. No momento, acontece o seguinte: seis arrozeiros se negam a sair. Através dessa liminar do Supremo Tribunal Federal, que solicitou a suspensão da ação da Polícia Federal para retirá-los, eles passaram a se sentir na pele da lei. Esse é o maior absurdo que já ouvi na minha vida. Nossa justiça é classista, pois defende o direito dos intrusos, dos que não têm direito. Os arrozeiros estão festejando como se tivessem ganhado a maior vitória.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação do governo Lula em relação à violência contra os povos indígenas brasileiros? Qual será a função do relatório que o CIMI lançou durante esta semana?

Dom Erwin – O empenho do atual presidente é de quem não tem muita afinidade com a causa indígena. Ele não conhece bem os povos indígenas e tem uma visão de desenvolvimento que não se pode aplicar a eles. O seu modelo de desenvolvimento é economicista. Não é de um povo, da pessoa, da família. O PAC é um exemplo disso, porque visa o agronegócio, a exportação, aumentar o crescimento econômico e não os valores de um povo.

Nós apresentamos o relatório sobre a violência contra os povos indígenas 2006-2007 e ele é estarrecedor, pois, ao invés de diminuir, aumentou muito. Não é possível que aqui no Brasil, em pleno século XXI, ainda se mate índio a torto e a direito. O índio é, também, induzido ao suicídio ao ser encurralado numa área diminuta e não tem condição de sobreviver nem fisicamente nem culturalmente. Esse relatório é uma chamada para mobilizar a sociedade e o governo para dar um basta na violência que ceifa a vida dos índios.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação da Assembléia dos bispos desse ano?

Dom Erwin – Foi muito positiva, no sentido de que conseguimos vencer uma pauta enorme e homérica. Discutimos os documentos e as Diretrizes da Ação Pastoral 2008-2010 e, depois de várias notas, escrevemos novos documentos, inclusive uma moção de apoio aos povos indígenas de Raposa Serra do Sol. Depois, os bispos escreveram um documento de solidariedade aos outros que estão ameaçados de morte, entre outras muitas coisas.

Notas:

[1] Localiza-se na região oeste de Mato Grosso, onde fica o Parque Indígena do Xingu, a primeira terra indígena homologada pelo governo federal. A região, toda ela plana, onde predominam as matas altas entremeadas de cerrados e campos, é cortada pelos formadores do rio Xingu e pelos seus primeiros afluentes da direita e da esquerda.

[2] Pelo menos cinco reservas indígenas – Arara, Kararaho, Koatinemo, Paquiçamba e Trincheira Bacajá – podem ser impactadas pela usina de Belo Monte. A construção da hidrelétrica de Belo Monte pela Eletronorte é objeto de disputa judicial desde 2001.

[3] Dorothy Stang foi uma religiosa norte-americana naturalizada brasileira. Pertencia às Irmãs de Nossa Senhora de Namur. Ingressou na vida religiosa 1948, emitiu seus votos perpétuos – pobreza, castidade e obediência – em 1956. Em 1966 iniciou seu ministério no Brasil, na cidade de Coroatá, no Estado do Maranhão. Irmã Dorothy estava presente na Amazônia desde a década de 1970 junto aos trabalhadores rurais da Região do Xingu. Sua atividade pastoral e missionária buscava a geração de emprego e renda com projetos de reflorestamento em áreas degradadas, junto aos trabalhadores rurais da área da rodovia Transamazônica. Seu trabalho focava-se também na minimização dos conflitos fundiários na região. A religiosa participava da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde a sua fundação e acompanhou com determinação e solidariedade a vida e a luta dos trabalhadores do campo, sobretudo na região da Transamazônica, no Pará. Foi assassinada, com sete tiros, aos 73 anos de idade, no dia 12 de fevereiro de 2005, às sete horas e trinta minutos da manhã, em uma estrada de terra de difícil acesso, a 53 quilômetros da sede do município de Anapu, no Estado do Pará, Brasil.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]