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Notícia

Brasil deve aprender com epidemia de dengue no Rio

O pesquisador-titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz Paulo Sabroza, um dos maiores epidemiologistas especializados em endemias como a dengue do Brasil, alerta que o país deve aprender com a atual situação carioca. Em entrevista ao Informe Ensp, Sabroza destaca que a epidemia de dengue no Rio era prevista e analisa diversos pontos negativos que devem ser considerados. Para evitar novas epidemias, ele ressalta a urgência da implantação de uma política de saneamento mais eficaz, de uma política habitacional e da regularização do abastecimento de água no município do Rio de Janeiro. “Só quando reduzirmos a vulnerabilidade socioambiental e a injustiça social na ocupação do espaço urbano começaremos a resolver o problema da dengue”, destaca Sabroza. Informe Ensp, divulgado pela Agência Fiocruz de Notícias.

Por que o Rio de Janeiro está passando por essa situação caótica em razão da epidemia de dengue?

Paulo Sabroza: O município do Rio de Janeiro vem passando pela sua mais grave epidemia de dengue, caracterizada pela reintrodução do tipo 2. Certamente, esta não foi a maior epidemia, se considerarmos o número de casos. Nos anos em que ocorreram as introduções de um tipo novo do vírus – o tipo 1 em 1996, o tipo 2 em 1991 e o tipo 3 em 2002 -, foram registrados muito mais casos. A gravidade da epidemia atual decorre das mudanças no padrão epidemiológico dos casos, com a ocorrência de grande número de casos graves em crianças menores de 14 anos e elevada mortalidade. Decorre também da incapacidade das ações de saúde, no município do Rio de Janeiro, de prevenir a instalação da epidemia, de conter a difusão do processo epidêmico. Essas ações de saúde não conseguiram nem mesmo impedir a mortalidade excessiva pela doença.

A crise da dengue no Rio de Janeiro podia ser prevista a partir de dois indicadores registrados no ano de 2007: a ocorrência de muitos casos graves, particularmente em crianças, pela circulação da dengue tipo 2 na região Nordeste; e a persistência de bolsões de transmissão elevada de dengue tipo 3 em algumas áreas da cidade, nos anos seguintes à grande epidemia de introdução do tipo 3 de 2002, mostrando que o potencial de transmissão havia se mantido e a constatação de índices de infestação pelo vetor eram elevados em diversos pontos da cidade.

Como, em 2007, já estavam sendo isolados casos do tipo 2 no Rio de Janeiro e, na cidade, persistiam as condições socioambientais que favorecem à transmissão do vírus, podia-se anteceder um grande risco da epidemia. A epidemia poderia não ter ocorrido em 2008, mas, certamente, ocorreria nos anos seguintes. Mesmo assim, a crise não foi evitada.

Outra grande preocupação decorrente desta epidemia é com a possibilidade de difusão do processo epidêmico pelo tipo 2 para outras áreas do estado do Rio de Janeiro e para outros estados como ocorreu após todas as três grandes epidemias anteriores. A repetição do padrão de mortalidade elevada e muitos casos graves em crianças pode ser ainda mais desastroso em regiões com menor acesso aos serviços de saúde e menor disponibilidade de profissionais capacitados para atendimento das formas graves da dengue.

Percebe-se que tantos adultos quanto crianças estão sofrendo com essa epidemia.

Sabroza: Verdade, mas a dengue não é uma doença predominantemente de crianças, o que só acontece em áreas hiperendêmicas como no Sudeste Asiático. Este não é o caso do Brasil. Mesmo nesta epidemia do Rio de Janeiro, a freqüência ainda é bem maior em adultos, embora a gravidade da doença seja bem maior nas crianças. Cerca de 50% dos casos graves que necessitaram de internação ocorreram em crianças, e é também neste grupo que a letalidade é maior e o tratamento necessita de cuidados especiais.

Muitas crianças já morreram. Como o sistema de informação tem uma latência, ainda vão aparecer diversos óbitos ao longo do mês de abril, mesmo se ocorrer melhoria no atendimento, o que parece estar acontecendo a partir da mobilização de profissionais de saúde para a triagem e o atendimento dos casos graves. Durante cerca de mais um mês, o problema deve permanecer, embora com intensidade declinante. Depois, conforme ocorreu em outras epidemias, a transmissão deve ser muito reduzida devido aos fatores climáticos. Espero que isso não venha a ser interpretado como resultado de ações de controle, mas, ao contrário, possibilite um momento de reflexão e aprendizado para que uma epidemia anunciada não volte a acontecer com tantas mortes.

O SUS tem alguma responsabilidade nessa epidemia?

Sabroza: É claro que numa epidemia como esta existe a responsabilidade do Sistema de Saúde e a responsabilidade da sociedade. No programa de controle de endemias do SUS, existem funções definidas de cada um dos níveis de governo. Ou seja, são claras as responsabilidades de cada gestor do SUS e da sociedade. Todo mundo é responsável. As ações diretas de controle de endemias são, por definição do SUS, atribuições dos municípios. Cabe a eles realizar as ações de controle de vetores, a atenção primária e a vigilância (epidemiológica, do vetor e ambiental). Nenhum outro agente público poderia fazer isso sem a solicitação do município. Para os estados, cabe a capacitação de pessoal, a distribuição de insumos, recursos, assessoria, ações complementares de controle de vetores sempre que necessárias, o diagnóstico laboratorial especializado e a supervisão das ações dos municípios. O nível federal fica com a coordenação técnica, a normatização das atividades, o financiamento e a avaliação do conjunto das ações.

Indiscutivelmente, a responsabilidade mais imediata pelo que aconteceu é do município. Mas os outros níveis têm como responsabilidades a supervisão e a avaliação das ações municipais, além de participação direta com ações suplementares quando necessário; todos, portanto, compartilham da responsabilidade do município.

Infelizmente, ainda não temos no SUS um instrumento eficiente e oportuno de mobilização e articulação dos diferentes atores institucionais. Não vimos a mobilização nem a participação do Conselho Municipal de Saúde, tampouco do Conselho Estadual de Saúde, nem antes nem durante a crise. Se as áreas técnicas estavam preocupadas com os sinais que prenunciavam uma epidemia, os conselhos deveriam ter sido alertados no início deste ano e, assim, mobilizados para criar as condições políticas necessárias para impedir a crise.

A epidemia talvez não pudesse ser prevenida, já que as condições socioambientais e as limitações operacionais do serviço de controle de vetor municipal não poderiam ser transformadas a curto prazo, mas teria sido possível impedir o caos que se instalou.

Além do Rio de Janeiro, outras cidades brasileiras podem sofrer, em breve, com uma epidemia de dengue tipo 2?

Sabroza: Todas as nossas grandes cidades são vulneráveis, umas mais e outras menos. Nenhuma, no entanto, é mais vulnerável do que Manaus (AM). O nosso próximo horror é uma epidemia em Manaus por meio da reintrodução do vírus tipo 2, seguida de uma epidemia com grande número de casos graves em crianças. Lá, a transmissão se dá o ano inteiro, a densidade do Aedes aegypti alcança níveis muito altos e o sistema de saúde vai ter bastante dificuldade para lidar com um grande número de casos graves. Mas muitas outras grandes cidades brasileiras também precisam reorganizar suas ações para conter uma epidemia, como a que ocorreu em capitais do Nordeste em 2007 e no Rio de Janeiro em 2008.

Os determinantes socioambientais são fundamentais para a proliferação do mosquito?

Sabroza: São as condições socioambientais que determinam as possibilidades concretas de ocorrência e a magnitude de um processo endêmico-epidêmico como o dengue. A presença desses determinantes é sempre mediada pela densidade do vetor, e as relações entre as condições socioambientais e as condições de produção da doença são sempre complexas. Não é só porque a população é pobre que o mosquito vai sempre alcançar as condições ideais para se desenvolver. Em uma grande cidade como o Rio de Janeiro, são as políticas públicas, ou a ausência delas, que definem as possibilidades de saneamento do espaço urbano. É a população que mantém os criadouros para os vetores. Um dos principais fatores para a proliferação do Aedes aegypti é a irregularidade no abastecimento de água, pois isso impõe a manutenção de inúmeros reservatórios de água nas residências. Como a água é distribuída de forma injusta, nada mais justo e necessário que a população a armazene. E isto possibilita a ocupação da cidade pelo mosquito vetor. Outro fator é a alta quantidade de imóveis fechados para especulação imobiliária. Há uma inexistência de política habitacional que atenda às necessidades dos grupos sociais menos favorecidos. São milhares de imóveis ociosos, fechados ou em terrenos baldios. Isso gera uma enorme possibilidade de criadouros de dengue e dificulta muito o trabalho dos agentes de saúde. Só quando reduzirmos a vulnerabilidade socioambiental e a injustiça social na ocupação do espaço urbano começaremos a resolver o problema da dengue.

E como podemos combater o vetor?

Sabroza: Todas as ações de controle de vetor foram, até agora, centradas principalmente na destruição de lavas, por meio da identificação dos locais onde elas se reproduzem. Destruir milhares de potinhos ou tratar com larvicidas milhares de vasinhos de plantas não impede que se tenha, no quarteirão, um grande criadouro capaz de produzir formas aladas suficientes para infestar toda a área. Esses criadouros são, muitas vezes, de difícil acesso. A comunicação é outro problema, pois é voltada principalmente para a participação individual e não coletiva. Na nossa sociedade, o indivíduo se vê como integrante da sociedade, mas, em geral, não reconhece sua participação na dimensão coletiva, do grupo social e do lugar. Mas a dengue, antes de ser uma doença do indivíduo, é principalmente um problema coletivo.

Qual seria a alternativa para a comunicação alcançar o coletivo?

Sabroza: Tem que se revisar o modelo de comunicação social. O modelo perdeu o foco e não foi repensado. Pelo menos uma vez por ano, se pensa no problema durante um dia D, mas isso não resulta em mobilização coletiva eficaz durante o período crítico de maior transmissão da dengue. Entretanto, três vezes por ano, são feitos, ou deveriam ser, levantamentos de índices de infestação nos bairros. Temos que publicizar os resultados desses levantamentos para a sociedade em tempo útil, de modo a permitir as mobilizações e pressões populares necessárias para redirecionar as ações de controle. É indispensável uma informação local e atualizada sobre a situação da dengue, do seu vetor e dos determinantes, inclusive relativa à regularidade do abastecimento domiciliar de água, e não apenas informações genéricas sobre como a doença é transmitida e como o vetor se reproduz. Atualmente, a população tem bom conhecimento sobre o ciclo biológico, mas ninguém sabe o índice de infestação do seu bairro. Os serviços de saúde dispõem dessas informações, mas não as divulgam de modo sistemático e oportuno.

Com relação aos recursos, o governo federal repassa para os municípios quase bilhão de reais por ano, e para receber isso um município é obrigado a cumprir uma série de compromissos: contratar certo número de guardas por habitantes, fazer ciclos de eliminação de criadouro e também fazer levantamento de índice de infestação e sua divulgação. Só que estes resultados não vem sendo divulgados de modo adequado.

Então, havia recursos federais para evitar a crise atual ?

Sabroza: A crise não ocorreu por falta de recursos financeiros, mas sim porque, durante a epidemia, se perdeu o controle dos processos de condução das ações de saúde e se perdeu a credibilidade por parte da população. E isto foi a pior coisa que poderia ter acontecido. A crise se tornou um desastre por causa da falta de resposta adequada aos problemas que foram se acumulando, principalmente a incapacidade de proceder uma triagem eficaz dos casos e de atender adequadamente aos casos graves. A assistência médica do município não estava estruturada para responder um desafio desta magnitude. Não houve treinamento de pessoal suficiente. Não houve definição e informação adequada em relação aos de hospitais de referência para os casos graves.

Quais são os momentos vividos pelo modelo de assistência à saúde nessa crise?

Sabroza: Eu diria que foram três momentos distintos. Um na rede básica, a porta de entrada dos casos e onde se vai definir o cuidado em relação ao caso. Temos uma parte que eu acho bem complicada, na triagem, e temos ainda uma parte de atendimento ao caso mais grave. Não existe nenhum serviço de saúde de urgência em qualquer cidade do país capaz de atender a demanda que foi provocada aqui no Rio. De repente, qualquer tipo de dengue era grave. Criou-se um sentimento generalizado de pânico, na qual toda mãe, com razão, queria ser atendida imediatamente. Ficou impossível esse atendimento ser feito com qualidade e em tempo oportuno.

A triagem é um passo fundamental para o tratamento adequado da doença, correto?

Sabroza: Exatamente. O atendimento do caso grave de dengue, principalmente se for criança, mas não só criança, tem que ser feito por uma pessoa especializada. Tratar a dengue na sua forma grave não é fácil. Os resultados são bons se o paciente for adequadamente tratado. Então, nós temos vários problemas, seja na rede básica, no encaminhamento, na triagem e no atendimento de alta complexidade. Mas para viabilizar isso, a triagem passa a ser a questão central. Não podemos mandar para casa nenhum caso grave, mas a triagem tem que ter competência e autoridade para mandar 80% dos casos para casa porque estes não são graves e não devem atolar o hospital e reduzir a eficiência da atenção médica prestada. Se internamos pacientes sem gravidade não vamos poder dar nunca a assistência adequada para os graves. E isso é agravado com a falta de médicos especialistas e de leitos suficientes nos hospitais públicos.

E como resolver esses problemas?

Sabroza: O atendimento precoce para o caso grave, através da identificação de sintomas e sinais de risco pelo paciente, pela família e pelo serviço de saúde é a questão central. Para isso, é indispensável uma rede básica com cobertura e qualidade adequadas. O modelo de atendimento inicial a partir dos serviços de urgência que se generalizou no município do Rio de Janeiro é particularmente inadequado para isso e reflete a fragilidade da atenção básica no município.

A segunda questão é como assegurar o tratamento adequado e oportuno a todos os doentes graves. Modelos centrados na proposta do hospital-dia, com ênfase na rehidratação e no monitoramento de sinais de agravamento do quadro clínico, tem mostrado, em outras áreas do país, resultados satisfatórios, quando implantados com qualidade.

Como podemos nos prevenir para não termos uma epidemia no ano que vem?

Sabroza: A prevenção de novas epidemias de dengue no município do Rio de Janeiro é outra história. Como já disse, é fundamental repensar nossa cidade e nosso compromisso com ela. Temos que ter uma política adequada de saneamento, de habitação e de uso do solo urbano. O cuidado de cada cidadão com as condições de seus domicílios, eliminando os microfocos e protegendo os reservatórios é indispensável, mas não é suficiente. Temos de assegurar a capacidade dos serviços públicos de identificar as localidades de maior densidade vetorial e os macrocriadores que mantém as altas densidades do vetor no espaço urbano. Temos de garantir a mobilização da população e o controle público através da divulgação sistemática e oportuna de informações que permitam identificar as localidades em risco, e de mobilizar os conselhos de saúde para que assumam suas responsabilidades relativas ao controle social a avaliação das ações de saúde E temos que organizar um modelo de assistência com cobertura e qualidade que vá desde a rede básica até o tratamento de alta complexidade.