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Artigo

Um multiplicador de ameaças globais, artigo de Paul Rogers

[Instituto Venturini] Dois novos relatórios destacam a inevitável emergência da mudança climática e a indeclinável responsabilidade dos governos em adotar medidas radicais para lidar com ela.

Um estudo da União Européia sobre os problemas das mudanças climáticas globais, que vazou para a imprensa quatro dias antes de sua divulgação oficial em 14 de março de 2008, continha a avaliação das conseqüências de uma omissão em adotar uma ação radical desde já para enfrentar o aquecimento global possibilitaria severos conflitos na dispouta por recursos nas décadas vindouras. Dois dias depois, em 16 de março, dados da UNEP – United Nations Environment Programme/ PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente revelaram que a média de redução das geleiras ao redor do mundo – uma referência chave da mudança do clima – acelerou; mais do que dobrou entre 2006 e 2007, e as demonstrações de 2007 eram cinco vezes maiores do que as médias referentes ao período de 1980-1999. Esses dois documentos, se cotejados entre si, mostram a participação dos governos e cidadãos das nações que lideram a produção de emissões, em particular frente uma inevitável constatação.

Os dados divulgados pela UNEP – incluidos em seu relatório “Meltdown in the Mountains” (**) , baseado em pesquisa dirigida pelo WGMS – World Glacier Monitoring Service / SMMG – Serviço Mundial de Monitoramento de Geleiras – são significativos por duas razões bastantes diversas. A primeira é que em um grande número de partes do mundo, as geleiras são parte essencial no apoio à agricultura. A neve e gelo invernais contido em grandes geleiras em montanhas de grande extensão ( os Andes, os Karakorams e especialmente os Himalayas, por exemplo) armazenam água que é vagarosamente liberada durante a primavera e início do verão, provendo de água para irrigação qualquer coisa como 1.600 Km além da própria área das geleiras. Se as geleiras derretem mais rapidamente, ou se se tornasse normal, como no último inverno, a neve se transformar em chuva, , então os rios que fluem pelas montanhas não mais proveriam de água as plantações durante a estação de plantio e maturação.

A segunda razão pela qual o estudo da UNEP é importante se dá porque indica que a mudança climática está se acelerando e , conseqüentemente, mais evidedncia o argumento de que ajustes políticos são urgentemente necessários no enfrentamento da crise. Ainda, que a sua importância não está sendo considerada como deveria na condução das políticas governamentais; muitas personalidades influentes e grupos de interesse ( inclusive os governos de inúmeros países produtores de petróleo e companhias transnacionais de gás e petróleo) ainda rejeitam essa evidência e bloqueiam seu desenvolvimento.

Mais ainda, quanto mais problemas se intensificam, também a escala de medidas necessárias para o enfrentamento se expandem. A evidência de que as atuais emissões de carbono terão seu impacto mais severo pelo menos nas três próximas décadas significa que planos para um corte global em 50% das emissões de carbono até 2050 – que, é verdade, vai além do que foi proposto a duras penas há cinco anos passados – já se mostram inadequadas. Analistas podem divergir em torno de detalhes sobre o que realmente mostra-se necessário, mas um consenso comepça a se formar no sentido de que um corte em torno de 80% mostra-se necessário a longo prazo, antes de 2050 – inclusive profundos cortes no período de 2012-2015, i.e., nos próximos cinco ou sete anos.

Um Foco Global

Em seu contexto – de uma emergência que desponta – esse documento da União Européia – Climate Change and the International Security / Mudança do Clima e a Segurança Internacional – é de muito interesse. Sua leitura deve levar em consideração três aspectos específicos da mudança climática :

– processos de feedback-positivos, ou monitoramentos, incluindo dados do derretimento da calota polar e da liberação de metano pelos permafrots, como indicadores de mudanças de clima passíveis de intensificação;

– a mudança do clima (contrariamente às projeções usuais do início dos 1990) afetará com maior intensidade as regiões mais pobres do mundo, principalmente através de severas estiagens.

– as estimativas de mudança climática global são documentos de consenso, planejadas para prover os especialistas com registros dos países envolvidos; eles inevitável e naturalmente conservadores em suas estimativas.

O relatório da União Européia – preparado para a Comissão Européia por Xavier Solana ( Coordenador de Política Externa da UE) e Benita Ferrero-Waldner ( sua comissionada para relações externas), apresentada para a Cúpula do Conselho Europeu para Mudanças Climáticas em 13-14 de março 2008 – reflete tais pontos, tendo, ainda, o sentido de urgência que é amplamente omitido em outros documentos e relatórios produzidos pelos próprios estados membros e outros governos nacionais.

Com efeito, um dos mais incisivos argumentos trata do impacto da mudança do clima sobre os estados mais vulneráveis ao norte do globo : “ A mudança climática fica muito mais visível como um multiplicador de ameaças a exacerbar as tendências, tensões e instabilidade. O desafio central é que a mudança do clima ameaça sobrecarregar estados e regiões que já são frágeis e propensas a conflitos.”

O documento antecipa um grande número de graves resultados se tal desafio não for adequadamente enfrentado : conflitos em torno de recursos alimentares e de água pela diminuição das chuvas; riscos à infraestrutura de cidades costeiras e fertilidade dos deltas dos rios; tensões resultantes de migrações induzidas pelas condições ambientais e radicalização por parte de povos marginalizados, como reação à sua exclusão. O relatório também cita o potencial de conflitos envolvendo recursos energéticos no interior de algumas das regiões mais ricas em fontes de energia, bem assim como também enfrentarão experiências decorrentes do stress físico e social em razão da alteração climática.

O tom geral do relatório é pessimista, com um incomum ( em se tratando de fonte oficial) consciente da inescapável imediatidade do que vem por aí. Sua principal ênfase está nas conseqüências da mudança climática e em como a Europa pode enfrentá-las – especialmente pelo corte de emissões de carbono. Traz também a recomendação de ênfase nos esforços de pesquisa para o entendimento dos efeitos regionais provocados pela mudança do clima, e maior desenvolvimento de recursos para o seu cômputo.

Uma Visão Elitizada

Com todo o seu valor e importância, no entanto, há um problema no relatório : não tem condições de transcender o que é essencialmente uma visão Eurocêntrica. Em sua essência, tem muito em comum com o relatório publicado em janeiro de 2008 pelos cinco ex-ministros da defesa dos Estados Unidos da América, França, Grã-Bretanha, Alemanha e Holanda .

Esse documento – Towards a Grand Strategy for an Uncertain World : Renewing Transatlantic Partnership / Com Vistas a uma Grande Estratégia para um Mundo Incerto : Renovando a Parceria Transatlântica – é direto e franco ao abordar ameaças globais em termos da dimensão do Atlântico Norte. O interesse dos autores é com as terras da Finlândia ao Alaska; eles insistem na necessidade de uma OTAN revitalizada e reforçada em paralelo com uma colaboração entre a América do Norte e a União Européia, mais estreita do que no presente. O “outro” imaginário do relatório é o novo adversário em um mundo instável e incerto, cujos milhões de habitantes estão metaforicamente agrupando-se fora dos muros da Europa civilizada, Canadá e Estados Unidos.

Esta visão de mundo é essencial para a proteção do status quo, fazendo da mudança climática um problema de segurança para as nações de elite, muito mais do que um tema para a comunidade global. Como tal, ele é falho e propõe-se a isto : desde que não incorpora qualquer reconhecimento de que a mudança do clima é parte de uma questão muito mais ampla , envolvendo um mundo cada vez mais e profundamente dividido. Tal divisão é tanto sócioeconômica como (novamente) imaginária : pois investimentos em educação, literatura e tecnologia produzem as conseqüências de que essencialmente a maioria marginalizada do mundo é – do “outro” lado – muito mais consciente de sua condição do que jamais em tempos anteriores.

A lógica do paradigma da “mudança climática como uma ameaça” é , no fundo, criar a necessidade de mais meios de segurança física : tendo em consideração que um dos maiores problemas da Europa decorre provavelmente da “migração militante” (especialmente do norte da África e do oriente médio), as fronteiras no sudoeste da Europa devem ser controladas e o Mediterrâneo visto como uma barreira, com as necessárias forças militares organizadas e preparadas para ajudar a manter a segurança da Europa.

A realidade de um mundo interconectado, globalizado e tecnologicamente distribuído em pequenos grupos de determinadas pessoas pode (por exemplo) usar aeronaves civis para atacar arranha-céus em New York e o maior quartel general do mundo armados apenas com canivetes, faz desta perspectiva, para dizer o mínimo, uma postura de auto-derrota. Europeus terão pouca condição de alinhar o grupo mediterrâneo como se fosse o fosso de seu castelo do século XXI, assim como os israelenses ao construir um muro com altura suficiente para excluir aqueles determinados a atacá-los. Verdadeiramente, o relatório da UE pelo menos faz ver as coisas de outra forma que não puramente em termos de segurança; ele aborda a necessidade de apoio aos países afetados situados em áreas fora da Europa para que sobrevivam aos impactos da mudança climática, e reconhece que existe uma conexão entre divisões socioeconômicas e restrições derivadas das condições ambientais. No que ele falha é na compreensão das implicações dessa conexão.

A ação européia para evitar a disfunção das condições globais exige um comprometimento sem precedentes para prevenir a mudança climática e amenizar os efeitos do que não pode agora ser evitado, especialmente nos países mais pobres. Também requer um intenso comprometimento com o desenvolvimento, não apenas em termos de reformas comerciais, perdão de dívidas e assistência internacional direta e direcionada ao desenvolvimento programado e sustentável.

Distopia e Otimismo

Há trinta e cinco anos passados, o geógrafo-econômico Edwin Brooks considerou o risco de (a) um planeta abarrotado de olhares furiosos em razão das massivas desigualdades em termos de uma prosperidade apoiada por uma força inflexível interminavelmente ameaçada por povos desesperados nos guetos globais ( ver Edwin Brooks, “The Implications of Ecological Limits to Growth in Terms of Expectations and Aspirations in Developed and Less Developed Coutries / As Implicações das Limitações de Natureza Ecológica ao Crescimento em Termos de Expectativas e Aspirações Nos Países Desenvolvidos e nos em Desenvolvimento”, em Anthony Vann & Paul Rogers Eds, Human Ecology and World Development / Ecologia Humano e Desenvolvimento Mundial , Plenum Press, 1974) .

Uma reação integrada tanto à mudança climática como ao divisor prosperidade-pobreza é essencial e urgente. Os europeus tem capacidade de liderança e recursos para tomar uma atitude, e seu novo – ainda que oficialmente ainda não liberado – relatório torna acessível o assunto de forma apropriada. Se a análise pudesse ser expandida para uma compreensão global, e se urgência de uma mudança de rumo pudesse ser reconhecida, então haveria motivo – até mesmo nesse estágio tardio – para otimismo. Tudo isso, no entanto, demanda a maior mudança de passo entre todas : imaginação. Se não for iminente, a predição distópica de Brooks – já tornada realidade em inúmeros lugares – é o mais provável resultado.

(*)Paul Rogers é professor de estudos para a paz na Bradford University, nordeste da Inglaterra.
(**) “Meltdown in The Mountains” foi traduzido e publicado na edição n.º 90 de “Ambiente em Notícia”

Fonte : Open Democracy
Tradução de Sérgio Pessôa Ribeiro

Artigo originalmente publicado pelo Instituto Venturini para Estudos Ambientais, RS.