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Artigo

Reforma agrária contra escravidão, artigo de Dalmo Dallari

“A desapropriação das terras onde se dá o trabalho escravo, além de ter clara e indiscutível base legal, será um ato de justiça e, além disso, deverá ter efeito exemplar. Os proprietários rurais honestos, que respeitam as leis e a ética na relação com os seus trabalhadores, deverão dar apoio firme e irrestrito ao presidente da República”. A afirmação é de Dalmo Dallari, jurista, em artigo publicado no Jornal do Brasil, 29-03-2008.

Eis o artigo.

De acordo com o que está expressamente estabelecido no artigo 184 da Constituição brasileira, o presidente da República tem o direito e o dever de desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. Essa é uma determinação constitucional, não podendo o presidente decidir arbitrariamente se é conveniente ou não aplicar o que manda a Constituição. Havendo constatação suficiente de que um imóvel rural não está cumprindo sua função social a desapropriação por interesse social torna-se uma obrigação do presidente, que ele não pode deixar de cumprir.

Quanto à caracterização do descumprimento da função social, a Constituição dá os critérios, bastando a simples leitura do artigo 186 para que se encontre claramente definida uma das hipóteses que vem ocorrendo no Brasil, amplamente noticiada pela imprensa e já comprovada por setores da administração pública federal.

Segundo o artigo 186, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos : “observância das disposições que regulam as relações de trabalho”.

Assim, pois, só estará sendo cumprida a função social se estiverem sendo atendidos todos os requisitos ali enumerados, pois todos devem ser atendidos simultaneamente. No tocante às disposições que regulam as relações de trabalho existe farta legislação, sendo já longamente consagradas as exigências legais relativas às condições dignas de trabalho, à sua duração e remuneração, aos cuidados preventivos de higiene e segurança, às férias, ao repouso semanal remunerado, e outras exigências legais para que as relações de trabalho se estabeleçam e se desenvolvam em termos compatíveis com as normas básicas do Estado democrático de direito e as que regulam as relações humanas na sociedade civilizada.

Tudo isso vem a propósito de matéria amplamente divulgada pela imprensa, informando que as autoridades federais acabam de libertar 421 pessoas que trabalhavam no corte de cana, numa fazenda do Estado de Goiás, “em condições degradantes”. Como é óbvio, aquele imóvel rural não está cumprindo sua função social, nos termos exigidos pela Constituição. Assim sendo, é dever do presidente da República promover sua desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária.

Em primeiro lugar, já foi constatado pelas autoridades públicas o descumprimento da função social. Em segundo lugar, não há limitações orçamentárias nesse caso, pois o artigo 184 da Constituição, já referido, diz que nesse caso a desapropriação será efetuada “mediante prévia e justa remuneração em títulos da dívida agrária”. Quanto ao valor justo da indenização não será necessário qualquer procedimento especial, bastando verificar o valor dado àquelas terras por seu proprietário, para efeito do pagamento do Imposto Territorial Rural.

A desapropriação dessas terras, além de ter clara e indiscutível base legal, será um ato de justiça e, além disso, deverá ter efeito exemplar. Os proprietários rurais honestos, que respeitam as leis e a ética na relação com os seus trabalhadores, deverão dar apoio firme e irrestrito ao presidente da República.

Fatos como esse de Goiás, somados à vergonhosa interferência de senadores da República para impedir a fiscalização de trabalho escravo no Estado do Pará, ocorrida no final de 2007, e mais o noticiário freqüente de violências praticadas contra comunidades indígenas por pessoas sem escrúpulos que querem apossar-se de suas terras, tudo isso vem transmitindo à opinião pública uma imagem tremendamente negativa dos empresários rurais, que correm o risco de se verem, todos, identificados como escravocratas.

(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo IHU On-line, 01/04/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]