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Artigo

Mulheres da Via Campesina, luz para Itueta, cidade fantasma, artigo de Delze dos Santos Laureano

[EcoDebate] Todos os dias ouvimos de pessoas, dos mais diversos segmentos sociais, que as ações dos movimentos como o MST, o MAB e a Via Campesina, não são democráticas, pois causam danos ao patrimônio das empresas e proprietários de terras, e, às vezes, até ao patrimônio público. Ouvimos também que estes movimentos, ao invés de denunciar, via parlamento, via órgãos do poder executivo, ou ingressarem em juízo com ações que visem reparar os danos sofridos pela população, perturbam a ordem ao utilizarem expedientes próprios para fazer valer os direitos e denunciar os abusos contra a sociedade brasileira.

O município de Itueta, em Minas Gerais, é um exemplo claro de como as vias democráticas burguesas perderam a credibilidade como canal para a tão esperada justiça social. A barragem de Aimorés, implantada pelas empresas Vale e CEMIG, para gerar 220MW/h de energia, o que daria uma “bagatela” de 6 milhões de reais/mês, se a energia fosse distribuída em residências, foi a responsável pelo afogamento do município de Itueta. Impactou negativamente também os municípios de Baixo Guandu, no Espírito Santo, Aimorés e Resplendor, em Minas Gerais.

Hoje, a nova Itueta é uma cidade fantasma. A antiga cidade, onde viviam pessoas simples, mas felizes, e que ganhavam a vida como pescadores, pequenos agricultores, comerciantes, extrativistas, desapareceu debaixo das águas represadas pelo Consórcio VALE/CEMIG. Para permitir a obra, o IBAMA aprovou um projeto no qual estavam previstas várias condicionantes para remediar o mal causado pelas empresas àquela população. Entre as condicionantes, estava a construção da nova sede de Itueta, com as suas casas, ruas, igrejas, casas comerciais, praças e jardins e a indenização de todas as pessoas impactadas, de modo a que pudessem retomar as suas vidas. Não foi o que aconteceu.

À primeira vista, parece estar tudo perfeito. Casas novas, pintadas com tons marrons que demonstram o “bom gosto” da arquitetura das maquetes. Quando olhamos bem, são casas tristes, comprometidas por rachaduras, de apenas 36 metros quadrados para famílias de 6 a 13 pessoas, conforme denunciado em audiência pública na Assembléia Legislativa de Minas Gerais em setembro de 2005. Diversos aparelhos urbanos erguem-se falseando uma realidade inexistente: parque de exposições, estádio, clube, igrejas. Todos inúteis para uma sociedade que não tem mais renda, que não recebe mais os antigos moradores do outro lado do rio. Tudo está vazio, sem povo. A vida da cidade desapareceu.

O asfalto mal feito, nas ruas de traçado racional, ferve sob o sol quente de uma cidade sem árvores. Os quintais e as calçadas de tão compactados pela obra apressada não deixam vingar nenhuma plantação. Na nova Itueta, nem os problemas mais triviais foram resolvidos pelas empresas, como o fracasso da arborização da cidade ou as goteiras no telhado da Igreja. Concluem os moradores: “Nem a casa de Deus eles respeitaram”.

Somado à tristeza da perda da identidade, do descaso das empresas VALE e CEMIG e do Governo de Minas para com as suas vidas, os moradores de Itueta, Aimorés, Resplendor e Baixo Guandu ainda somam diversos outros prejuízos. A falta de indenização para muitos que perderam os seus meios de renda, a invasão dos mosquitos que proliferam nas lagoas formadas nas áreas em que foi desviado o Rio Doce, o desaparecimento dos peixes e lagostas, o que acabou por determinar o fim do trabalho dos pescadores, o fim da agricultura familiar nas ilhas, com a inundação provocada pela barragem.

Este museu vazio foi mostrado aos deputados estaduais que integraram a CIPE do Rio Doce. A FEAM – Fundação Estadual do Meio Ambiente – foi cientificada dos crimes ambientais, sociais e culturais, mas atribuiu a responsabilidade ao IBAMA. O Ministério Público tem conhecimento das condicionantes não cumpridas, sabe que houve permissão para o enchimento do lago antes mesmo de indenizadas as famílias. O Poder Judiciário tem sido sistematicamente procurado para que obrigue as empresas a reparar os danos. Passam os anos, e nada! O que vemos naquele local desolado pela prepotência das empresas VALE e CEMIG e pela conivência do Governo de Minas Gerais é uma cidade fantasma. A Itueta viva foi afogada pela ganância do grande capital que só visa o lucro a despeito da vida de milhares de famílias. As instituições democráticas do Estado burguês não conseguiram fazer sequer cumprir a lei.

Por tudo isso, acreditamos que somente os novos sujeitos dessa história, agindo como cidadãos/ãs na luta, poderão deixar de ser vistos como fantasmas. Como seres políticos, conscientes do mal sofrido, vão para a linha de frente – para fechar a linha do trem – e reverter esse quadro de injustiça que muitos pensam estar caminhando para o esquecimento.

Março de 2008 vai entrar para a história como o mês em que as mulheres camponesas da Via Campesina de Minas Gerais mostraram que ainda tem gente viva em Baixo Guandu, Aimorés, Resplendor e, principalmente, em Itueta. Na luta, as mulheres camponesas mostram que os pobres têm que ser respeitados. Do “vale de ossos ressequidos” da Nova Itueta, de Aimorés, Resplendor e Baixo Guandu ressurgirá vida nova, na luta, pela força e luz divinas presente nas companheiras que não deixam por menos. A tensão é meio legítimo e democrático para a conformação das forças sociais e políticas existentes na sociedade.

Delze dos Santos Laureano, advogada, professor de Direito Constitucional e Direito Agrário na Escola Superior Dom Hélder Câmara, integrante da RENAP – Rede Nacional dos Advogados Populares. E-mail: delzesantos@hotmail.com
Belo Horizonte, 10/03/2008