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Notícia

Quem está matando a floresta

O Pará produz uma de cada três picanhas que chegam à mesa dos brasileiros, a Transamazônica cheira a estrume de gado e surgem novos devastadores, como o Movimento dos Sem-Tora. Qual deve ser o alvo da PF e da Força Nacional de Segurança? Policiais da Força Nacional de Segurança têm que enfrentar a aliança de interesses entre a pobreza dos colonos, a ganância dos madeireiros, o oportunismo dos pecuaristas e a complacência dos governos. Matéria de Alan Rogrigues e Claudio Gatti, da revista ISTOÉ, Edição 2000 – 05 DE MARÇO/2008.

A estrada de chão batido deixou de ser a cicatriz marrom na verde pele da floresta virgem. Como acontece em toda a sua extensão no Estado do Pará, a Transamazônica agora descortina uma paisagem vasta, de pequenos morros e vegetação rasteira. Não há mais sombra fácil, as árvores frondosas escasseiam como ilhas num mar de vacas, bois, novilhas, garrotes e bezerros. Estatísticas inodoras traduzem o fenômeno:

70 milhões de cabeças de gado ocupam 78% das áreas abertas na antiga selva.

O rebanho na maior floresta do mundo cresceu 173% desde o Plano Real.

As exportações de gado vivo cresceram 466% em 2007.

Oito em cada dez hectares desmatados viraram pastos.

Traduzido para a mesa: uma em cada três picanhas devoradas no Brasil vem da Amazônia.
Os pés que hoje brotam da floresta, portanto, têm cascos e conduzem a chifres. Eles resultam do diabólico pacto de interesses entre a pobreza dos colonos, a ganância dos madeireiros, o oportunismo dos pecuaristas e a complacência dos governos. O resultado perverso dessa soma é que a mata nativa vem perdendo, a cada ano, uma área equivalente à do Estado de Alagoas. Em 2007, o desmatamento cresceu 8% em relação ao ano anterior. Só entre agosto e dezembro do ano passado, foram 3.235 km2 de floresta abatida, o equivalente a mais de duas vezes a área do município de São Paulo. Na semana passada, o governo federal anunciou o envio de mil homens da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança para garantir o fechamento de serrarias clandestinas na floresta, mas é pouco provável que essa operação cinematográfica consiga prender quem está matando a floresta. “O desmatamento acontece em função do mercado”, explica Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Quando os preços da soja e da carne caem, o desmatamento também cai porque os pecuaristas transferem seus investimentos para a região Centro-Oeste.”

O mercado é um álibi poderoso, mas a morte da floresta também é fruto de outras tramas engenhosas. A mais recente delas leva o nome de “Movimento dos Sem Tora”. Feito para confundir e ser confundido com o MST, os sem-tora se dividem em dezenas de grupos, cada um com cerca de 300 homens, todos adultos, para invadir terras na floresta. Contudo, apesar de se apossarem da bandeira da reforma agrária, os sem-tora são financiados pelas serrarias clandestinas ou semilegais. Eles instalam- se em acampamentos precários e se retiram depois de arrasarem a floresta nativa. “É uma quadrilha”, diz o secretário do Meio Ambiente do Estado do Pará, Walmir Ortega. Os troncos são vendidos para as serrarias a preços bem abaixo do mercado. Quando o proprietário da terra ou o governo se dão conta da invasão e entram na Justiça, as árvores já foram derrubadas e os invasores estão saindo. Calcula-se que 97% das toras usadas nas serrarias clandestinas do Pará provenham de áreas nativas. E nada menos do que 70% da extração de madeiras feita no Estado é ilegal.

No Pará estão registradas 1.500 madeireiras. Estima-se número igual de clandestinas. As legais movimentam quase R$ 4 bilhões por ano, a metade do PIB do Estado, e empregam 200 mil pessoas. Delas depende gente como o migrante maranhense José da Rita, como é chamado, que ganha a vida derrubando árvores. Com suas quatro motosserras, cobra em média R$ 5 mil para fazer mil metros cúbicos de madeira – cerca de 250 árvores. “O fechamento das madeireiras provoca desemprego. E a falta de trabalho gera inadimplência, fome, invasões no campo, violência”, diz João Medeiros, vice-presidente do Sindicato da Indústria Madeireira e Moveleira de Tailândia. “Nós não conseguimos autorização para desmatar por causa da burocracia do Meio Ambiente. Por isso, muita gente trabalha com madeira ilegal”, argumenta Gilberto Miguel Sufredini-empresário, com 150 empregados e 2.500 hectares de terra. Com uma produção de 1.000 m3 mês, Sufredini exporta 60% de sua produção de lâmina de compensado para os EUA. O que o madeireiro quer dizer é que, com a investida do governo federal contra o desmatamento ilegal, o governo do Pará só irá autorizar o desmate de cerca de quatro milhões de metros cúbicos de madeira por ano. “A demanda do setor é de 12 milhões”, argumenta Sufredini. “Esses montantes não serão liberados nunca mais”, adverte o secretário Ortega. Duas semanas depois de ser entrevistado por ISTOÉ, Sufredini teve 2.000 m3 de madeira apreendidos por documentação ilegal. Ele foi pego na teia da Operação Arco de Fogo, que deve manter os mil homens da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança durante um ano na região. A primeira parada da tropa foi na cidade de Tailândia, no Pará, onde foram apreendidos cerca de 15.000 m3 de toras nos pátios das madeireiras – o equivalente a 3.700 árvores.

Posse da terra e desmatamento estão na raiz de quase todos os grandes problemas do Pará, certamente o Estado mais conflituoso do País. Nos últimos dez anos, mais de 400 pessoas foram assassinadas no campo, 67% delas no Pará. Na beira da rodovia PA-257, próximo à cidade de Paraupebas, a 533 km de Belém, 700 famílias do Acampamento Dina Teixeira, ligadas ao Movimento dos Sem-Terra (MST), vivem há dez meses o terror das ameaças. “Na madrugada, os fazendeiros soltam bombas ao redor. Parece guerra. Todo mundo sai correndo das casas”, conta Edilson Pereira, líder dos acampados. Bem próximo dali, em Eldorado do Carajás, aconteceu em 1996 o maior massacre de trabalhadores rurais do País. A chacina de 19 pessoas foi vista por Maria Rita Monteiro, 61 anos, da janela de sua casa. Só pelo fato de testemunhar o massacre, ela está marcada para morrer e seu silêncio é cobrado por jagunços que batem à porta de sua casa com freqüência. “Ameaçam me matar, colocar fogo em casa”, acusa. “Eles dizem para eu abandonar o Pará. Eu fui a única, dos que presenciaram a tragédia, que restou por aqui. Os outros vizinhos não agüentaram a pressão e tomaram outro destino”, diz Rita.

O clima de faroeste vigente no Pará pode ser medido também pela ocorrência de trabalho escravo: entre 2003 e 2006, foram registrados 1.012 casos. Neste período, nada menos que 12 mil homens foram libertados pela Delegacia Regional do Trabalho. O jovem Nilson Ferreira Rodrigues, 19 anos, morador de Serra Pelada, é um desses trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. Sem trabalho na região do garimpo, Rodrigues foi contratado por uma carvoaria com a promessa de salário mínimo, moradia, alimentação e folgas semanais. Tudo embromação. Trabalhava 14 horas por dia e dormia com outros trabalhadores num alojamento sujo e malcheiroso. Depois de dois meses, ele não viu “a cor do dinheiro” e fugiu. “E os dono de lá ainda disse que nós devia eles (sic)”. É que a conta do alojamento e da alimentação sempre era maior do que o salário que Rodrigues deveria receber.

Na Amazônia, em 2006, havia conflitos numa área de mais de quatro milhões de hectares de terras, envolvendo mais de 36 mil famílias. “É um Brasil que Brasília não conhece”, diz o secretário Ortega. A pequena Moju é a cidade campeã no Pará em terras em duplicidade, ou seja, campeã de falsos títulos de propriedade. “Em cartório, o município tem três vezes o tamanho de sua área”, denuncia Ortega. É a farra das certidões montadas. Por causa da imensidão de terras devolutas – pertencentes à União –, os grileiros agem livremente montando escrituras e se apossando dessas áreas. Na Amazônia, a grilagem já abocanhou mais de 56 milhões de hectares de terra – o equivalente a uma França. A família dos Veríssimo, colonos da Vila Boa Esperança, a 50 quilômetros do centro de Moju, sabe muito bem o que significa só possuir “documentação precária” da terra, a falta de uma escritura definitiva. Assentado há dez anos na região, José Veríssimo de Souza, 50 anos, comprou seus 25 hectares de um posseiro, que comprou de outro, e esse não comprou de ninguém, apossou-se. “Agora, apareceu uma quarta pessoa, que ninguém nunca viu, e disse que a terra é dela”, conta Veríssimo. Para tirá-lo de lá, já derrubaram uma cerca, puseram fogo em casas vizinhas abandonadas, destruíram plantações e fizeram ameaças diretas com armas. “Só saio daqui morto, junto com minha família”, diz o pequeno agricultor.

No Pará de hoje, vive-se a economia de ciclos que marcou o Brasil Colônia. É o ciclo da madeira, que levou ao ciclo do gado, que permitiu a interiorização, que criou os ciclos do ouro e da monocultura da cana-de-açúcar. Para sustentar esse processo, houve grilagem, escravidão e conflitos agrários. Contra esse Brasil do atraso, que já destruiu a Mata Atlântica e avança agora sobre a Amazônia, a solução teria de vir de um ciclo virtuoso: educação para os colonos, titulação para a terra, manejo para as madeireiras e limitação para o pasto, com a criação de grandes reservas extrativistas. Se você acha que tudo isso só pode ser feito com um bom governo, acabou de descobrir onde está o problema do Pará.

3.235 km² foram desmatados em três meses de 2007 no Pará, o equivalente a mais de duas vezes o município de São Paulo