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Notícia

Minas Gerais: Presos convivem com ratos e sarna

Baratas, ratos, lacraias e 50 homens dividindo, 24 horas por dia, cubículos de 30 m2. Alguns têm doenças como sarna, rubéola e ferimentos que não sabem explicar. Essas foram as condições encontraram em duas carceragens de Minas Gerais, administradas pelo governo Aécio Neves (PSDB-MG). A reportagem de João Carlos Magalhães está publicada na Folha de S. Paulo, 10-02-2008.

A Folha falou com presos, familiares e policiais civis do Estado e entrou na carceragem de Contagem (região metropolitana de Belo Horizonte) e na cadeia pública em Ouro Preto (89 km da capital mineira).

Apenas alguns minutos foram suficientes para sentir o odor de suor, urina e fezes e verificar a situação de homens que nunca tomam banho de sol. Para caberem todos, é preciso ficar de pé o tempo todo. Quem se senta dorme em meio a ratos e lacraias.

Histórias desumanas contadas pelos presos, como a de um homem espancado que teve o cadáver comido por ratos, são confirmadas por policiais. Não há médicos e o abandono chega ao extremo de o porteiro ser um dos próprios detentos, em regime semi-aberto.

As construções apertadas – que deveriam comportar, no máximo, seis pessoas – possuem fiações expostas e vazamentos. Nos locais que visitou, a Folha também não encontrou extintores em condições de uso. Incêndios causaram a morte de 33 presos em acidentes em Ponte Nova (180 km de BH), em agosto passado, e em Rio Piracicaba (127 km da capital), na noite de 1º de janeiro.

Maurício Campos Júnior, que há um ano é titular da Secretaria da Defesa Social de Minas, disse que os casos constatados pela reportagem são resquícios de uma situação que deve ser apagada com o “processo acelerado” de melhorias nas cadeias mineiras. Procurado pela reportagem, o governador Aécio não comentou o caso.

Cela em Contagem parece armário embutido

Ao se aproximar de uma das três celas da carceragem do 2º Distrito Policial de Contagem, a reportagem sentiu uma contínua lufada de ar quente, com cheiro de suor, urina e fezes. Mesmo por poucos minutos, foi difícil suportar.

Dentro das celas – buracos de 30 m2 e 2,5 metros de altura com barras carcomidas pela ferrugem – espremiam-se 50 homens. Deveriam ser, no máximo, seis, se a Lei de Execuções Penais fosse seguida.

Os presos, a maior parte sob suspeita de tráfico de drogas ou roubo, não conseguiam se deitar por um instante sem encostar em outro detento. Não havia espaço. A situação se mantinha desde a chegada deles ao local – alguns estavam ali há mais de um ano.

Dormiam sentados e se revezavam para ficar em pé, encostados em paredes riscadas por marcas da água que escorre. No teto, fios elétricos se entrelaçavam em grossos novelos.

Quando a reportagem da Folha se identificou, os presos se empurraram em direção às grades e falaram ao mesmo tempo. Pediram ajuda. Falaram sobre detentos com doenças contagiosas, como tuberculose e sarna, e da falta de remédios. Riram quando questionados se havia médicos no local.

Por ser uma carceragem, em tese destinada apenas a detenções provisórias, não há espaço para banho de sol. A vida na penumbra, a marmita muitas vezes estragada, o ambiente úmido e o chão imundo – os esgotos estavam entupidos e o “banheiro” era um buraco no chão isolado por um saco de lixo estendido – abriram caminho para variadas infecções.

“Olha isso”, disse uma voz no fundo. Logo depois alguém foi empurrado para a frente. Um homem negro de aparentes 40 anos puxou a calça e mostrou, na coxa, uma ferida de bordas arroxeadas e cheia de pus, do tamanho de uma bolacha de chope. “Nunca tive isso”, disse, assustado. “Surgiu do nada.”

Em seguida, outros presos também começaram a expor pústulas e doenças de pele. Um homem mostrou o antebraço e o friccionou com a mão. A pele esfarelou-se ao toque. Um preso se disse asmático e mostrou sua bombinha. De dentro do que mais parece uma sauna, pelo calor, afirmou que “vive desmaiando”. Entregou uma carta para a família e pediu para a reportagem colocá-la no correio, o que foi feito no dia seguinte.

Insetos

A fauna local não se limitava às baratas e aos ratos que circulavam pelas celas. Havia também um ninho de lacraias. “Elas entram no ouvido quando a gente está dormindo”, disse um homem de gorro e sem camiseta, apontando para uma orelha.

No canto do corredor da carceragem ficava a menor cela, que lembra um grande armário embutido e abriga três homens. Um deles, corpo embalado apenas em um saco preto e rosto repleto de feridas, revirava os olhos antes de iniciar uma fala incoerente sobre uma suposta fórmula química secreta. “Esse aí é louco”, disse um dos presos, que não se aproximava das grades. “Se a gente chega perto, ele bate mesmo.”

O mais precário dos cômodos no local era um espaço que nem sequer tinha grades, ligado ao corredor por um enorme buraco. Lá dentro, dois homens, que aparentavam ter mais de 50 anos, deitavam-se em jornais no chão, em silêncio. Pronunciavam monossílabos, não queriam conversa. Ali, ao menos, desfrutavam de uma mínima privacidade.

Porteiro da Cadeia Pública de Ouro Preto é um dos detentos

A Cadeia Pública de Ouro Preto tinha, quando a Folha a visitou, um porteiro incomum em estabelecimentos prisionais: um de seus presos. Sem camisa e de chinelos, o homem que cumpria, em regime semi-aberto, o sexto ano de detenção por roubo e tráfico, abriu o portão manual enrolando um cigarro. Carregava um molho de chaves e disse: “Vou chamar o investigador”.

Ele integrava um programa inovador – segundo informou o governo mineiro, depois de questionado – que dá liberdade a detentos confiáveis. Mas, quando a reportagem esteve no local, ninguém mencionou essa inovação.

O preso não ajudava a administrar o local à toa. Com capacidade para 80 pessoas, a cadeia abrigava cerca de 170, como constatou a reportagem – o governo de Minas disse que eram 90. E um policial civil de 26 anos era o único responsável por todos, afora um PM que fazia a guarda da cadeia.

O investigador devia servir a marmita, atender o telefone, levar remédios, receber familiares em dia de visitas, contatar médicos e – a tarefa mais perigosa – levar os detentos para o banho de sol, quando há reforço da Polícia Militar.

Na cadeia, tudo parecia deteriorado: do lado de fora, o mato crescia alto, quase escondendo os cinco extintores jogados no chão de terra.

No interior, os móveis estavam rasgados, sujos ou quebrados. Na caixa-d’água, o cheiro de carniça era tão forte que dava a impressão de que um animal havia se afogado ali. Faltava água nas celas, onde “gambiarras” elétricas já causaram pequenos incêndios.

Também havia mulheres na cadeia, em tese, masculina. Ficavam em celas separadas, e algumas tinham namorados no cômodo ao lado, com quem podiam, se autorizadas, manter relações sexuais no pátio, escondidas apenas por panos. Um dos “namorados” disse à reportagem: “Sou preso só na consciência. Não há nada que me impeça de ir embora”.

Por receber a reportagem, o policial civil acabou afastado temporariamente. Segundo a Secretaria de Defesa Social, ele deveria ter pedido autorização ao delegado responsável e submetido a reportagem a procedimentos de segurança, como revista.

Cadeia Pública do Palmital

Uma história de horror é contada por familiares de presos da Cadeia Pública do Palmital, em Santa Luzia (região metropolitana de Belo Horizonte). No final do ano passado, um preso, doente mental, foi espancado – não se sabe se por policiais ou detentos – e jogado no corredor que liga as celas.

Na manhã seguinte, o cadáver foi encontrado, mas sem parte das mucosas. Ratos haviam comido os olhos e pedaços dos órgãos genitais. O relato foi confirmado por três policiais civis ouvidos pela Folha.

Esvaziada para reformas em 16 de janeiro – quando a reportagem tentou entrar na unidade -, a cadeia tinha fios expostos, esgotos vazando nas celas, superlotação e proliferação de doenças. No dia da transferência dos presos, uma jovem com um bebê no colo andava pela rua de baixo da cadeia. Dizia que seu namorado, que estava preso no local, ligava para ela “todo dia” de um celular. “Aquilo não é lugar de gente. Ali dentro é tudo tratado pior que rato.”

(www.ecodebate.com.br) matéria da Folha de S.Paulo, publicada pelo IHU On-line 12/02/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]