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Artigo

desmatamento na Amazônia: O problema não está nos números, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Seja qual for o desfecho das polêmicas em torno do desmatamento na Amazônia, alguns pontos parecem já claros. O primeiro deles é quanto à confiabilidade dos números levantados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Além do depoimento do próprio ministro da Ciência e Tecnologia, que lhes atribui um índice de acerto entre 95% e 97%, e do manifesto da comunidade acadêmica, cientistas da Universidade Federal de Goiás que trabalham diretamente no monitoramento da Amazônia, consultados pelo autor destas linhas, também opinam na mesma direção. Entendem eles que os dados do sistema Prodes costumam ser mais precisos, mas com a limitação de que só são apurados uma vez por ano. Os do sistema Deter, mais freqüentes (os últimos divulgados), “num primeiro momento costumam superestimar os números”, mas “em seguida eles são corrigidos” e também são confiáveis. Agora está sendo desenvolvido o sistema Detex, capaz de registrar o que acontece em áreas menores.

Na opinião desses cientistas, os últimos números anunciados “têm o mérito de ser o primeiro alarma quanto à gravidade da situação”, sem esperar pelo balanço anual. Mas seria preciso avançar mais. Porque, na verdade, não existe um levantamento da situação fundiária em cada área – e sem ele o desmatamento é detectado, mas não se sabe quem o fez, não se pode punir, coibir, até mesmo porque a fiscalização governamental é extremamente precária, como muitos representantes do próprio Ibama têm reconhecido. E também porque continua a falta de articulação na área com o Sipam/Sivam, que tem aviões equipados com radar e poderia ajudar muito no monitoramento. Mas, como os dirigentes desse sistema têm dito, jamais receberam qualquer pedido da área ambiental para essa ou outras tarefas.

Um segundo ponto está na evidência – demonstrada na mais recente crise – de que o País continua sem estratégia para a Amazônia. Pior ainda, a desejada “transversalidade” – que levasse todas as áreas do governo a incorporar em sua atuação as premissas ditas ambientais – está longe de ocorrer. A prova maior é a divergência pública entre os ministros da Agricultura e do Meio Ambiente quanto à responsabilidade da soja e da pecuária no avanço do desmatamento. Mais grave ainda a divergência entre o presidente da República e sua ministra do Meio Ambiente, além das polêmicas entre esta e os governadores de Mato Grosso e Rondônia. Pode-se lembrar também que ainda recentemente instituições e ONGs que participaram das audiências públicas para definir políticas na área da Rodovia BR 163 – de modo a evitar que seu asfaltamento favoreça mais desmatamento – publicaram documento dizendo que, quase dois anos passados, nada foi feito. E tudo isso sem ainda chegar à desastrada fala em que o ministro das Estratégias de Longo Prazo propôs a construção de aquedutos para transpor águas da Amazônia para o Nordeste. Ou à incompreensível política governamental que concede juros subsidiados a projetos que têm como base o desmatamento.

É tudo muito preocupante. A pecuária está sendo apontada como responsável por 86% do desmatamento, com um rebanho bovino na área que corresponde a mais de um terço do total nacional, cerca de 75 milhões de cabeças. O próprio Ministério da Agricultura estima que a produção bovina ali cresça 31,5% até 2018 (já são abatidos mais de 10 milhões de cabeças por ano) e só 87 dos mais de 200 abatedouros na área são registrados. Que se espera que aconteça na área dos problemas com a exportação de carne bovina pelo Brasil, se um terço da produção na Amazônia tem esse destino, segundo a Amigos da Terra? O Imazon também afirma que, dos 30,6 milhões de hectares desmatados entre 1990 e 2006, nada menos que 25,3 milhões se devem ao avanço da pecuária, ante 5,3 milhões da soja e de reflorestamentos.

Além de definir uma estratégia para Amazônia, muitos outros avanços terão de ser feitos. É inconcebível que a União não consiga monitorar/fiscalizar os 47% das terras do bioma que são do seu domínio. É nelas, principalmente, que ocorre o desmatamento. E, somadas às reservas indígenas e a outras áreas protegidas por lei, chega-se a mais de 70% da Amazônia Legal. Também é preciso tirar do papel, da ficção, o monitoramento das reservas legais, que, em áreas de floresta tropical, precisam representar 80% das propriedades particulares. Da mesma forma, criar condições para que os assentamentos da reforma agrária deixem de contribuir com 18% para o desmatamento, segundo os levantamentos. Em parte dos assentamentos mais antigos não poderia acontecer outra coisa. Sem recursos, sem assistência técnica, sem transporte, sem mercado para nada, aos assentados não resta senão remover a floresta para implantar pastos e alugá-los a um pecuarista – ou vendê-los e sair em busca de outro lote, contribuindo para o chamado “desmatamento itinerante”, registrado desde 1997 pelo relatório de uma comissão especial da Câmara dos Deputados.

Não faz sentido, igualmente, prosseguir na atual política de repassar a governos estaduais a competência para licenciar desmatamentos. Se é difícil para o poder central resistir às pressões políticas e econômicas, imagine-se no âmbito estadual. Ainda mais lembrando que o poder político local sempre invoca o apoio da população mais pobre, que, por falta de alternativas, considera importantes fontes de geração de trabalho e rendimentos várias atividades ilegais – garimpo e desmatamento entre elas. Essas atividades há muito tempo são também um desaguadouro – pelas migrações – para problemas de regiões onde o desemprego é grave.

Se todos esses fatores não forem considerados na definição de uma estratégia adequada para a Amazônia, será pouco produtivo o espasmo regulatório mais recente, diante dos novos números. E podem ser esperados novos problemas na área das exportações de carne e grãos.

Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 08/02/2008