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Artigo

Amazônia – Violência e devastação, artigo de Carlos Walter Porto Gonçalves

Adital – O Complexo de Violência e Devastação da Amazônia Brasileira: o caso do sudeste do Pará [1]
Contextualizando

O debate acerca da Amazônia vem sofrendo uma inflexão, sobretudo a partir dos anos setenta. Desde então a problemática ecológica entra na agenda complexificando ainda mais o debate acerca dos destinos da região. A internacionalização que, desde sempre, marca a formação geográfica da Amazônia [2] se vê, agora, acrescido desta problemática nova [3]. Se, por um lado, esse novo agendamento vem sido imposto a partir de uma escala supranacional, ela ganha consistência interna quando se observa a mudança radical no padrão sócio-político de organização do espaço geográfico da Amazônia a partir dos anos 1960, com o projeto geopolítico que envolveu a mudança da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília. A partir de então, a geografia da Amazônia deixa de se organizar exclusivamente em torno dos rios, o que a caracterizava desde o período colonial, e, cada vez mais, passa a ser conformada a partir das estradas e toda logística associada aos grandes projetos de exploração mineral, sobretudo na sua porção meridional – de Rondônia à Amazônia Oriental (o leste paraense e o oeste do Maranhão) passando por todo o norte de Mato Grosso e Tocantins [4].

Todo esse processo não pode ser compreendido sem que se leve em conta o caráter ditatorial que comandou todo esse processo de ocupação, sobretudo pós 1964, que, geopoliticamente, procurava interligar a capital de cada unidade da federação a Brasília, assim como, sobretudo pós-anos setenta, com a interligação rodoviária entre o nordeste do país à Amazônia, com a Transamazônica, quando se procurava ligar uma região de homens sem terra, o nordeste brasileiro, a outra região de terra sem homens, a Amazônia, conforme a frase famosa atribuída ao ditador de então Emílio Garrastazu Médici. Todo esse processo, diga-se de passagem, foi embalado pelo “mito do desenvolvimento” em que a mídia cumpriu um papel protagônico quando revistas e cadernos especiais não cansaram de louvar a epopéia da ocupação da Amazônia. Enfim, se a Amazônia era o futuro do Brasil pelos imensos recursos que abrigava, o futuro parecia ter chegado. (O que não é qualquer coisa quando se sabe que o Brasil é o país do futuro). A censura oficial, em parte, impediu que a sociedade brasileira tivesse o necessário contraponto crítico, muito embora houvesse uma adesão voluntária dos grandes meios de comunicação em grande parte financiado pelos interessados e implicados diretamente no novo processo de ocupação. O mito do desenvolvimento e do progresso, invocado num contexto de guerra fria por um regime ditatorial civil-militar conformado por uma forte ideologia anticomunista, aparecia como salvação e redenção do país e, ainda, como resposta à miséria e ao subdesenvolvimento que, como se dizia à época, “era o solo fértil para o desenvolvimento de ideologias espúrias”. A guerrilha do Araguaia serviu de pretexto para reforçar todo o mito salvacionista do progresso e do desenvolvimento com o que os maiores beneficiários desse processo procuravam justificar a repressão e, assim, trazendo enormes dificuldades para qualquer forma de organização dos setores subalternos na região, o que não os impediu de lutar pela terra. Uma observação feita à época pelo sociólogo José de Souza Martins é sintomática da nova dinâmica do processo de ocupação quando afirmava que o primeiro contato com a modernidade de muitos camponeses da região foi o choque elétrico da tortura. Como se vê, a violência institucionalizada deixou raízes profundas grafando a região (geografando-a).

Não olvidemos, ainda, que todo esse processo contou com apoio de instituições multilaterais, como o Banco Mundial, que financiaram grandes projetos logísticos (rodovias, portos, hidrelétricas), assim como grandes investidores internacionais souberam tirar proveito de toda a violência institucionalizada com uma ditadura [5] que, como tal, não contava com o aval democrático da sociedade brasileira. O Estado além de garantir as condições gerais para esse novo padrão de acumulação de capital para e pelos setores privados, ainda agiu por meio de suas próprias grandes empresas, com destaque para a Companhia Vale do Rio Doce no Projeto Grande Carajás. Um setor da burguesia nacional que mais se beneficiou, em particular, da “ajuda internacional” e do regime ditatorial foi o da construção civil, onde grandes empreiteiras se arrogaram o papel de “novos bandeirantes” com a construção de grandes projetos de engenharia (estradas e hidrelétricas). Até hoje são enormes as implicações sociais, políticas e ambientais engendrados pelo bloco de poder que conformou todo esse padrão de organização do espaço geográfico.

A Dinâmica sócio-geográfica nacional-regional pós-anos 60/70

A interligação logística da Amazônia ao resto do país por meio do desenvolvimentismo de caráter mítico, pró-empresarial e anti-popular do “milagre brasileiro” substituiu a reforma agrária pela colonização e, por meio de subsídios aos grandes fazendeiros e a liberalidade do estado com seu patrimonialismo para com a apropriação das terras públicas por meio da grilagem de terras, favoreceu a chegada de grandes fazendeiros do centro-sul do país, assim como toda uma vaga de sem-terra expropriados pelo modelo concentrador de terras e de capital da modernização conservadora do campo brasileiro. Assim, a região sudeste do Pará viria se caracterizar pela tensão de territorialidades distintas, a saber: (1) camponeses expropriados de todo o país; (2) fazendeiros também de todo o país, sobretudo do centro-sul, mas também de fazendeiros da própria região que deixaram as atividades tradicionais de extrativismo e se associaram aos recém-chegados nas ações de apropriação ilegal das terras públicas para exploração de madeira, derrubada da mata e criação de gado e; (3) os povos da floresta e ribeirinhos cujas terras e demais recursos passam a ser disputados. Enfim, a partir da década de 1970 uma dinâmica sócio-geográfica nacional-regional se instaura no sudeste do Pará conformada por essa tensão de territorialidades acima esboçada onde a expropriação/grilagem, exploração madeireira, queimadas e estabelecimento de grandes fazendas de gado onde a violência foi fator estruturante de todo o processo, sobretudo contra a resistência dos povos tradicionais da região e dos camponeses nacionalmente expropriados e que buscavam se re-territorializar num contexto que era, para eles, completamente adverso.

A Dinâmica sócio-geográfica global-regional Pós-anos 80

Um dos impactos imediatos do segundo pico da crise do petróleo dos anos 1970 foi a reconfiguração divisão internacional do trabalho, sobretudo das indústrias eletro-intensivas. O Japão, por exemplo, fechou todas as suas 145 fábricas de alumínio. O seu capital deslocou-se para Barcarena, a mais de 20 mil quilômetros do Japão nas cercanias de Belém. “Hoje a fábrica da Albrás, garantindo 15% do consumo japonês de alumínio, é a 8ª do mundo e a maior consumidora individual de energia do Brasil, respondendo por 1,5% de toda a demanda nacional” [6].

A partir dos anos oitenta, com a implantação do Projeto Grande Carajás, – outro enclave explorando o maior complexo mínero-metalúrgico do mundo – se instaura e, com ele, uma nova dinâmica sócio-geográfica na região que viria agravar, ainda mais, o padrão socialmente injusto e ambientalmente devastador que já estava em curso na região. Trata-se de uma dinâmica que se sobrepõe a acima descrita – nacional-regional – e que bem pode ser caracterizada como sendo uma dinâmica sócio-geográfica global-regional. Esclareça-se que essa nova dinâmica complexifica a dinâmica sócio-geográfica já em curso, posto que agrega novos processos aos já existentes tendo muito de continuidade nessa descontinuidade do novo padrão sócio-geográfico que se instaura a partir dos anos 80. Apesar do alerta de várias entidades nacionais como a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil -, a ABI – Associação Brasileira de Imprensa – e a AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – e de várias entidades e movimentos sociais da região que apoiadas em análises científicas sobre os danos que esse grande projeto traria para a região, sobretudo com o agravamento da derrubada da floresta para fazer carvão vegetal para purificar o ferro a ser exportado, não foi suficiente para evitar a dilapidação daquele enorme patrimônio de recursos naturais [7]. O desmatamento na região em apreço atingiu níveis alarmantes e até mesmo uma significativa mudança climática regional se faz notar com períodos secos mais prolongados apontando para um clima cada vez mais tropical em lugar do clima sub-equatorial que a caracterizava. As mudanças no regime hídrico da região podem ser observadas nos córregos, igarapés e rios que, simplesmente, deixaram de existir. O nível de umidade relativa do ar vem caindo a níveis semelhantes a regiões desérticas facilitando a auto-propagação do fogo como, recentemente, em setembro de 2007, pudemos apreciar em Colina – MA, o triste espetáculo de famílias fugindo do fogo desesperadas lembrando as cenas de vietnamitas fugindo do bombardeio de napalm. Sem sombra de dúvida a transformação dessa fantástica biomassa em carvão [8], o consumo elevadíssimo de água na transformação do minério de ferro, assim como a barragem do rio Tocantins para fazer a hidrelétrica de Tucuruí [9], alimentaram a purificação do ferro para exportação, agora sob o tacape da “crise da dívida externa”, dívida essa que, diga-se de passagem, foi contraída, em grande parte, para construir a logística desse mesmo processo de ocupação feito à revelia da sociedade brasileira, sobretudo dos seus setores subalternos.

Ainda hoje, “todos os dias o trem, o maior trem de minérios do planeta, recebe 700 mil toneladas, que são transportadas, por quase 900 quilômetros até o porto da Ponta da Madeira, na ilha de São Luís, no litoral do Maranhão. Daí, o mais puro minério de ferro do mercado segue para o mundo; 60% dele rumo à China e ao Japão, os maiores compradores, a 20 mil quilômetros de distância”. Segundo o mesmo autor, a mina N4, “projetada para operar com até 25 milhões de toneladas anuais de minério de ferro (…), vai atingir 100 milhões de toneladas neste ano (2007) e chegará a 130 milhões em 2008, quase metade da produção recorde que a CVRD está planejando para todo país, de 300 milhões de toneladas”, conforme Lucio Flavio Pinto [10].

É interessante observar como a dinâmica nacional-regional, mais antiga, e a global-regional, mais recente, se imbricam pela complementaridade dos novos interesses com os antigos. A grilagem de terras é o fenômeno-chave para entender a violência estrutural que se configura na região conformando um padrão de organização do espaço geográfico que se reproduz por meio de atividades como a exploração ilegal de madeira, a produção de carvão com a queima da floresta para purificar o ferro e a formação de pastos para pecuária. Um estudo realizado em 2004 pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM – e pelo Museu Emílio Goeldi, assinala que só no Estado do Pará ainda há 30 milhões de hectares de terras grilados e 67% das terras não têm registro ou têm registro fraudulento. Trata-se de um modo de produção/reprodução de uma estrutura de classes sociais profundamente desigual, a começar pela estrutura fundiária extremamente concentrada, conformando um Complexo de Violência e Devastação cuja dinâmica regional de reprodução é funcional à sua integração à divisão internacional do trabalho enquanto “uma geografia desigual dos rejeitos e dos proveitos” [11]. A violência, vê-se, é estruturante das relações sociais e de poder [12].

Nesse contexto, até mesmo as heróicas conquistas de terra sob a forma de assentamentos têm pouca opção no contexto desse Complexo de Violência e Devastação, haja vista (1) o desconhecimento da dinâmica daquele ecossistema pela maior parte desses camponeses que ali procuram se re-territorializar e (2) o pífio desempenho dos órgãos de pesquisa agropecuária que, apesar da enorme contribuição que vêm dando na tropicalização de espécies de regiões temperadas para exportação, como a contribuição da Embrapa na aclimatação da soja, não consegue dialogar com as demandas de uma população que só em assentamentos soma mais de 80.000 famílias assentadas na região. Muitas dessas famílias, por absoluta falta de opção, acabam por derrubar a floresta para fazer carvão e passam a criar gado e, assim, alimentam todo o complexo de devastação e violência que vimos analisando [13]. Enfim, o projeto de exploração mineral do Grande Carajás se ajustou como uma luva aos interesses dos grandes grileiros-madeireiros-guseiros-pecuaristas do complexo de violência e devastação ao se configurar como um novo atrator. Hoje, em São Paulo e Rio de Janeiro, se consome carne bovina proveniente de mais de 4.000 quilômetros de distância, vindos do Pará com caminhões frigoríficos com custos energéticos e ambientais que só fazem aumentar a própria demanda de energia.

A reprodução ampliada do Complexo de Violência e Devastação pela nova dinâmica nacional-globalizada na região sudeste do Pará

Uma nova articulação de interesses está em curso nesse momento cujos efeitos tendem a alimentar, e agravar ainda mais, esse perverso Complexo de Devastação e Violência na região conformando uma nova dinâmica nacional/globalizada protagonizada pelos mesmos poderosos interesses que vêm operando na região. Tal como nos anos 1970, é a questão energética que vai reconfigurar a divisão internacional do trabalho, seja pela redistribuição espacial das atividades de mineração, seja pelas implicações geográficas da expansão do plantio da cana e da soja e o remanejamento espacial do rebanho bovino, conforme veremos adiante.

Algumas implicações geográficas do setor mineral na nova dinâmica nacional/globalizada da região

Tudo indica que a recente derrota eleitoral dos republicanos nos EUA, partido onde se aninhou a direita religiosa ligada ao complexo corporativo dos combustíveis fósseis (os próprios Bushs, Dick Cheney entre outros), a derrota política da intervenção militar no Iraque e Afeganistão, a perda de influência política sobre o petróleo venezuelano e o gás boliviano, a humilhação da imagem dos EUA diante da pobreza e abandono trazidos pelo furacão Katrina em Nova Orleãs e Luisiânia, além de uma escassez do petróleo que pode estar sendo exagerada venham influenciando mudanças na estratégia geopolítica global norte-americana. Agregue-se a tudo isso o “fenômeno China” com todo o alento que vem dando á reprodução ampliada do capitalismo com seu teimoso crescimento de dois dígitos. “Se nos anos 70 os japoneses fecharam fábricas que em conjunto produziam 1.2 milhão de toneladas de alumínio (quase três vezes a capacidade da Albrás), os americanos deverão fechar usinas com produção de 50 milhões de toneladas de chapas de aço. Essa demanda se deslocará para outros lugares do planeta. Outras produções eletro-intensivas também estão migrando, em escala chinesa”. Já em 2004, “os chineses ultrapassaram os japoneses como maiores clientes do minério (de ferro) da Companhia Vale do Rio Doce, responsável por um quarto das vendas desse produto no mundo. A empresa já anuncia a meta de 300 milhões de toneladas de minério de ferro para daqui a menos de dois anos. Parauapebas se consolidará como o maior município minerador de ferro do mundo. Quando a ferrovia de Carajás começou a operar, 20 anos atrás, seu horizonte não passava de 20 milhões de toneladas. Hoje, está na perspectiva de cinco vezes mais, ou 100 milhões de toneladas, substancialmente para exportação (ao contrário do destino da produção do Sistema Sul da CVRD, que atende principalmente o mercado interno)” (Pinto, 2007).

Minério de ferro, já o vimos, implica não só uso de energia. Na Amazônia, no sudeste do Pará em especial significa, sobretudo consumo da biomassa da floresta para fazer carvão que, como vimos, começa com a grilagem de terras e a exploração da madeira para as serrarias e, na ponta final, tem o pasto se formando para a satisfação dos grandes pecuaristas, fechando o Complexo de Violência e Devastação.

Os agrocombustíveis e o remanejamento do rebanho bovino.

Trata-se da reordenação do espaço geográfico brasileiro que vem sendo engendrada a partir da aliança das oligarquias de agronegociantes (cana e soja, sobretudo) com os grandes complexos de poder ligados ao setor energético mundial por meio do que vem sendo chamado como “transição energética” com os agrocombustíveis [14]. Todo um complexo de forças parece estar convergindo para, mais uma vez, nos oferecer mais do mesmo. Tudo indica que o Complexo de Violência e Devastação pode estar ganhando um novo impulso que permitirá que se reproduza por mais tempo, agora com o aprofundamento da nova dinâmica nacional/globalizada na região. Se a dinâmica anterior havia sobreposto uma dinâmica de enclave global-regional à dinâmica nacional-regional, agora estamos diante de uma dinâmica nacional/globalizada onde, mais uma vez, a região se inscreve de modo subordinado, com graves conseqüências, sobretudo para os setores subalternos da região. Afinal, os setores dominantes regionais estão fortemente articulados à dinâmica seja nacional, seja nacional-globalizada. A burguesia e as oligarquias latifundiárias locais não sobrevivem sem esses aliados nacionais cada vez mais nacional-globalizados. A recíproca é verdadeira: o Complexo de Devastação e Violência traz dentro de si essa imbricação dessas diferentes escalas de poder do sistema mundo moderno-colonial (Lander [15]; Casanova [16]; Lafont [17]). As lutas dos setores subalternos haverão de considerar essa complexidade que envolve as alianças políticas que conformam essas escalas de poder ao mesmo tempo locais-regionais-nacionais-globais.

O discurso de um novo ciclo de desenvolvimento que, mais uma vez, vem de fora, volta a ser brandido pelas lideranças políticas locais/regionais e pela mídia. Destaque-se que os grileiros-madeireiros-guseiros-pecuaristas, assim como as grandes empresas, como a Vale do Rio Doce, a Albrás, a Alunorte, conformam esse poderoso bloco de poder (Gramsci) do Complexo de Violência e Devastação. Acrescente-se ainda que esses setores detém a concessão da maior parte das emissoras de rádio e televisão locais/regionais que, sabemos, depende de negociação política para ser obtida, conformando corações e mentes, criminalizando os críticos e por meio da violência simbólica contra os que se insurgem, antecipam e justificam a violência física, conforme os dados da Comissão Pastoral da Terra assinalam.

È interessante observar como a nova dinâmica nacional-globalizada se encaixa como uma luva na dinâmica do Complexo de Violência e Devastação reproduzindo, assim, ampliadamente a dinâmica dos dois períodos anteriores. Independentemente do fato de a cana de açúcar vir ou não a ser plantada na Amazônia [18], como o governo vem se antecipando e procurando garantir que não vai, a nova dinâmica que está em curso a partir do avanço do cultivo de cana e da soja no território nacional, assim como da nova redistribuição das pastagens para criação de gado bovino, não poupará a região e, pior, agravará a violência e a devastação ao mesmo tempo em que reafirmará as relações sociais e de poder já profundamente desiguais na região, na medida em que vem ao encontro dos interesses dos mesmos protagonistas que encimam esse bloco de poder.

Segundo a ÚNICA [19], entidade que representa os grandes agronegociantes do setor sucroalcooleiro, já estão sendo implantadas no país, 77 novas usinas de produção de álcool combustível que entrarão em produção ao longo dos próximos anos até 2012, sendo que todas essas 77 novas unidades estão situadas na região de melhor infra-estrutura do país, a saber, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul. Está sendo previsto um aumento anual de 1 milhão de hectares de cultivo de cana nos próximos 20 anos, o que já vem modificando completamente o mercado de terras não só nas regiões indicadas mas em todo o Brasil. Como indicam os documentos da ABAG – Associação Brasileira de Agribusiness [20], da ÚNICA [21] e do ICONE – Instituto de Estudos e Comércio Internacional – são as áreas de pastagens as que estão sendo visadas para serem substituídas pelo cultivo de cana de açúcar. Considerando que o Brasil dispõe do maior rebanho bovino do mundo, com aproximadamente 200 milhões de cabeças de gado, o destino desse rebanho tende a avançar sobre a região amazônica, como pudemos observar em julho de 2007 em pesquisa de campo no vale do Médio Araguaia, onde o arrendamento de terras por parte dos retireiros para o pastejamento do gado teve um aumento entre 25% e 30%, de 2006 para 2007. Como assinalamos anteriormente, grande parte da carne bovina consumida nas principais cidades do centro-sul do país está vindo dessa região do sudeste do Pará [22] sendo que o estado do Pará conta, hoje, “com 14 frigoríficos registrados no Serviço de Inspeção Federal -SIF – que abatem diariamente mais de nove mil animais”, segundo o jornalista paraense Lucio Flavio Pinto. Recentemente abriu-se uma disputa entre pecuaristas e donos de frigoríficos cujas conseqüências tendem a impulsionar a reprodução ampliada desse Complexo de Violência e Devastação. O imbróglio Pecuaristas X Frigoríficos é emblemático do modo perverso como se reproduz regionalmente essa nova dinâmica nacional/globalizada. Trata-se de um novo mercado que vem se abrindo para exportação de boi em pé. “Inicialmente, o comércio era realizado apenas com o Líbano, em pequena quantidade. Mas neste ano abriu-se o mercado venezuelano, numa escala muito ampliada. No ano passado a exportação foi de 160 mil animais, rendendo 45 milhões de dólares, 200% acima dos US$ 14 milhões do ano anterior Neste ano, mais do que dobrará. Só no primeiro semestre a receita foi de US$ 48 milhões. A venda de boi em pé, que estava em 17º lugar na pauta de exportações do Pará, pulou para o 10º lugar. Em 2008 as transações poderão chegar a 600 mil cabeças, o que representará quase um quarto da capacidade de abate anual da indústria” [23]. Tudo isso, diga-se de passagem, graças à nacional/globalizada Lei Kandir, de 1997, que isenta de pagamento do Imposto de Circulação de Mercadorias, os produtos primários voltados para exportação. Com isso, os frigoríficos estão na iminência de ficarem sem gado para o abate, haja vista que os pecuaristas estão obtendo melhores preços com as exportações. Diante da mentalidade colonizada dos protagonistas desse modelo, a que chamam de moderno, tudo indica que a floresta será, mais uma vez, oferecida em holocausto para o lucro de alguns poucos para comportar a demanda por terras de pecuaristas e frigoríficos. Não olvidemos que a demanda por terra de milhares de sem-terra venha a ser instrumentalizada para criar assentamentos que, sem que se ofereça a menor infra-estrutura como vem sistematicamente sendo feito, acabem por reproduzir ampliadamente no espaço geográfico regional o mesmo Complexo de Violência e Devastação.

Com isso, todo o Complexo de Violência e Devastação tende a avançar sobre a floresta por meio da grilagem de terras, da exploração madeireira para serrarias, da queima da floresta para carvão para as guseiras depois limparem o ferro para exportação, e a consolidação da pecuária [24], para o gozo dos mesmos setores que sempre se beneficiaram desse complexo para se afirmar. Assim, a nova dinâmica nacional/globalizada se reproduz reforçando a dinâmica perversa do Complexo de Devastação e Violência da região sudeste do Pará.

Sudeste do Pará

Fonte LASAT/UFPA. In: MICHELOTTI et al. O Agrário em questão: Uma leitura sobre a criação dos assentamentos rurais no Sudeste do Pará. Inédito. 2007

Notas:

[1] Publicado originalmente na Revista Proposta, Ano 31 – n° 114 – Out/dez 2007. Fase/Rio de Janeiro.
[2] Porto-Gonçalves, Carlos Walter 2001 Amazônia, Amazônias, São Paulo, ed. Contexto.
[3] De tal forma a problemática ecológica vem se impondo que a questão da exploração da enorme riqueza do subsolo amazônico pouco seja mencionada, o que nos impede, inclusive, de entender os gravíssimos problemas socioambientais da região.
[4] Porto-Gonçalves, Carlos Walter 2001 Amazônia, Amazônias, São Paulo, ed. Contexto.
[5] Insisto em não usar a expressão ditadura militar posto que tende a associar a ditadura aos militares. Os militares, sem dúvida, tutelaram a ditadura que, todavia, foi articulada pelas oligarquias empresariais e latifundiárias civis com apoio internacional, sobretudo dos Estados Unidos. Portanto, não basta tirar os militares para que nos livremos do caráter autoritário que sempre comandou nossa formação social, bastando observar o lugar que hoje ocupam no cenário político nacional os grandes grupos do setor da construção civil e dos bancos que apoiaram a ditadura.
[6] Cálculos efetuados por Lucio Flavio Pinto nos dão conta da magnitude do valor do subsídio de energia concedido a Albrás e à Alumar: “a diferença entre a tarifa privilegiada que essas empresas receberam durante 20 anos e o custo de geração da energia que lhes foi fornecida pela Eletronorte representa mais do que o investimento na implantação de duas novas fábricas de alumínio. Elas começaram, em maio de 2004, novos 20 anos de energia subsidiada, graças a um contrato quase tão lesivo quanto o anterior, como se tivessem recebido novas fábricas de graça”. Consultar texto “Mineração e desenvolvimento no sudeste do Pará: há mesmo?” de Lucio Flavio Pinto no endereço http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=19307. O texto é de 13/10/2005 e foi acessado em 28 de setembro de 2007.
[7] Como é sabido, de cada 100 kg de rocha extraída das minas de Carajás, 60% aproximadamente é ferro e 40% são outras substâncias minerais que, para a exploração de ferro, são considerados rejeitos. Assim, a queima da floresta para fazer carvão vegetal serve para purificar o ferro. Deste modo, o ferro é exportado puro, ficando os rejeitos e a devastação na região enquanto os proveitos vão, literalmente, para os de fora que recebem não só o ferro purificado, como os maiores lucros financeiros de toda essa operação. Um dado alarmante: calcula-se que somente 5% do ferro exportado passou pelo processo de purificação, apesar do desmatamento da enorme biomassa da região.
[8] Em nenhuma região do mundo a natureza oferece uma média de 500 toneladas de biomassa por hectare, como a Amazônia dispõe e que está sendo simplesmente queimada, seja para formar pastos, seja para fazer carvão vegetal para purificar o ferro para exportação.
[9] Considere-se que essa exportação de ferro ainda usa energia subsidiada da hidrelétrica de Tucuruí cuja construção não só desalojou milhares de camponeses ribeirinhos como também diminuiu significativamente os cardumes a jusante da barragem inviabilizando populações tradicionais que viviam da pesca no rio Tocantins.
[10] Conforme Lucio Flavio Pinto – “Alerta no Horizonte: mais pecuária no Pará”. Consultado em 24 de outubro de 2007 em http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=30187
[11] Porto-Gonçalves, Carlos Walter 2006 A Globalização da natureza e a natureza da globalização, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
[12] Porto-Gonçalves, Carlos Walter 2004 Geografia da Violência no Campo Brasileiro em 2003. In Cadernos de Conflitos 2004, Ed. CPT, Goiânia.
[13] Dados de amostragem do ano de 2005 analisados a partir de 585 projetos de crédito de um universo de 5.163 projetos para a agricultura familiar na região revelam que 78,5% deles são voltados exclusivamente para a pecuária. Fonte: LASAT/ Equipe de Articulação – ATES. Dados da Câmara Técnica para discussão dos projetos de crédito.
[14] Tenho aqui como referência a criação da Associação Interamericana de Etanol presidida pelo agronegociante brasileiro Roberto Rodrigues e por Jeb Bush, esse reconhecido por ser parte do complexo de poder fossilista (petróleo) em crise e que busca se perpetuar por meio do controle das novas fontes. Insisto sobre os riscos políticos de associarmos o destino dos brasileiros a uma aliança com esse complexo de poder ligado ao petróleo, sobretudo por se tratar de um setor tão estratégico como o de energia em que esses aliados já demonstraram suficientemente o que são capazes de fazer para controlar as fontes de energia. Mentir como razão para a guerra, por exemplo. O Iraque está aí todo o dia a nos lembrar da tragédia que nos aguarda.
[15] Lander, Edgardo 2005 A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Ed. Clacso, São Paulo.
[16] Casanova, Pablo Gonzalez 2006 In La teoria marxista hoy. Ed. Clacso, Buenos Aires.
[17] Lafont, Robert 1971 La revolucion regionalista. Ed. Ariel, Barcelona.
[18] Muitos cientistas alegam que sendo a Amazônia uma região onde chove praticamente o ano todo, não é uma região favorável ao cultivo da cana que precisa de um período seco para desenvolver qualidades consideradas economicamente lucrativas. Todavia, alertamos para o fato de o clima da região está passando por mudanças tais provocadas pelo Complexo de Violência e Devastação que esse período seco está se configurando e, assim, o plantio da cana de açúcar torna-se viável com a tropicalização do antigo clima sub-equatorial.
[19] Consultar o portal da ÚNICA em http://www.portalunica.com.br/portalunica/
[20] Consultar o portal da Abag em www.abag.com.br
[21] Consultar o portal do ICONE em www.iconebrasil.org.br/
[22] Em Niterói, onde moro, os mercados locais vendem carne do Frigorífico Margem, de Xinguara no Pará, um dos municípios de maior violência e devastação do país.
[23] Conforme Lucio Flavio Pinto – “Alerta no Horizonte: mais pecuária no Pará”. Consultado em 24 de outubro de 2007 em http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=30187
[24] Em outras regiões da Amazônia o fechamento do círculo do Complexo de Violência e Devastação vem sendo disputado pela soja, como é o caso da Rodovia Cuiabá-Santarém.

Carlos Walter Porto Gonçalves, Professor da Universidade Federal Fluminense e membro de Clacso

Artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para América Latina – ADITAL