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Outro megaprojeto de alto risco social e ambiental: A Ferrovia Leste-Oeste, artigo de Marcos Arruda

Adital – Nos anos 70 os governos Médici e Geisel lançaram uma série de projetos faraônicos, que prometiam um Brasil-Primeiro Mundo. Da Transamazônica às usinas nucleares, estes cogumelos gigantes fizeram crescer a dívida externa ao ponto de ela se tornar impagável. O que entrou como sangue novo na economia, pela via do cateter do endividamento externo, propiciou uma sangria que nunca mais parou, pela via de uma mangueira que flui no sentido oposto, e une as veias abertas do Brasil e da América Latina aos cofres dos grandes bancos internacionais. O Macroprojeto IIRSA atualiza a abordagem da ditadura brasileira, com uma semelhante lógica eufemisticamente chamada de ‘desenvolvimentista’. E, seguindo a tradição dos governos anteriores, o governo Lula também propõe realizar obras faraônicas em nome do crescimento econômico, como é o caso da controvertida transposição do Rio São Francisco e, a partir de 2008, a Ferrovia Leste-Oeste.

IIRSA quer dizer Iniciativa para a Integração Regional da Infraestrutura Sul-Americana. Consiste num conjunto de 350 projetos, vários deles bilionários, nas áreas de transporte, energia e comunicação, que visa construir uma infraestrutura adequada para que a América do Sul se torne coletivamente uma imensa plataforma de exportação de matérias-primas e bens de baixo valor agregado, em primeiro lugar para os Estados Unidos (foi concebido no contexto do Projeto ALCA). Coube ao governo Lula viabilizar a IIRSA no espaço brasileiro através do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. O próprio nome do PAC já indica o grave erro de concepção: crescimento, subentendido como sinônimo de desenvolvimento.

A integração da América do Sul é um sonho de quase dois séculos e, certamente, é desejo comum dos povos do continente. Por isso, não há que confundir a crítica que fazemos a IIRSA com oposição principista a projetos de infraestrutura que promovam a integração do nosso sangrado continente. Existe uma questão de fundo, que antecede qualquer proposta ou projeto: integração para que tipo e modo de desenvolvimento? Podemos afirmar sem risco de erro que a IIRSA não está calcada num projeto de integração nem de desenvolvimento que tenha as características essenciais para garantir a emancipação e a democracia participativa para os povos do continente – e este deveria ser o grande sentido da integração e do desenvolvimento da América do Sul. A IIRSA está concebida como um conjunto de projetos cuja escala e custos os colocam muito além das possibilidades de controle e gestão das populações afetadas. Elas nunca foram nem serão consultadas sobre esses projetos, nem terão benefícios diretos, consistentes e sustentáveis, da maioria deles.

Os investimentos estão, muito provavelmente, subestimados. Como realizar 350 projetos de grande ou média escala com apenas US$ 38 bilhões, que é o investimento total previsto? Se comparados com o orçamento previsto para o PAC brasileiro – R$ 504 bilhões até 2010 – aquela quantia é literalmente irrisória. Em 2003, o projeto de Reforma Agrária previa investimentos de R$ 24 bilhões em três anos para assentar de forma produtiva um total de um milhão de famílias sem terra. O presidente Lula rejeitou o projeto com o argumento de que não havia dinheiro disponível. Que faz com que o Presidente disponha de R$ 126 bilhões por ano para os projetos de transporte, energia e infraestrutura urbana previstos no PAC, ou de R$ 275 bilhões só em 2006 para os credores da dívida financeira pública, e não tenha disponibilizado R$ 8 bilhões por ano em três anos para a Reforma Agrária?

O problema de fundo é este: a IIRSA não faz parte de uma visão integrada de desenvolvimento socioeconômico e humano da América do Sul; nem está concebido para servir a um desenvolvimento soberano, endógeno, democrático, solidário e sustentável dos países do continente. Contempla, prioritariamente, o modelo já implantado, que é concentrador de capitais, centralizador de poder, alimentador de profundas desigualdades sociais, se apóia nos capitais estrangeiros e no poder financeiro e tecnológico de corporações transnacionais, e é voltado mais para gerar mercadorias para os mercados globais do que para responder às necessidades dos povos do continente. Em resumo, como está concebido, a IIRSA tende a promover desenvolvimento para as transnacionais e os países ricos, subserviência e empobrecimento para as economias e os povos da América do Sul. E é por isso que conta com o estímulo das instituições financeiras multilaterais e os recursos do BID. Certamente, para a alegria dos especuladores financeiros carregados de “liquidez excessiva”, a IIRSA vai resultar em lucros seguros para quem nela investir, provenientes de mais endividamento para os países do continente.

Praticamente, a pergunta é “Como é que a IIRSA, e cada projeto que a compõe, vai contribuir para a desconcentração dos capitais, para o combate à pobreza e às desigualdades, para a geração de maior bem viver, para a distribuição eqüitativa dos benefícios do crescimento, e para um maior controle da sociedade sobre o seu próprio desenvolvimento econômico, social e humano?” A esta se agregam duas perguntas indispensáveis: “Os investimentos previstos da IIRSA e dos projetos que a compõem incluem apenas os custos econômico-financeiros, ou também os custos sociais e ambientais? Existem estimativas de custo-benefício com base nesses estudos relacionados ao custo total de cada obra?”

Guilherme Carvalho, da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, é incisivo na sua crítica ao IIRSA: “O PAC é a IIRSA brasileira, assim como a IIRSA é um PAC sul-americano, porque o objetivo fundamental é integrar aquelas áreas que produzem mercadorias com grande aceitação no mercado internacional. Na nossa visão, essa perspectiva tende a provocar maiores desigualdades entre as regiões”. E cita como exemplo a Amazônia. “A Amazônia vai se fortalecer como mero exportador de produtos primários, como corredor de exportação e produtor de energia elétrica para os centros mais dinâmicos da economia nacional. É isso que está reservado para a Amazônia a partir do PAC e da IIRSA”.[1]

O destino do Brasil está profundamente ligado ao do resto da América Latina. O Banco do Sul tem o potencial de ser uma iniciativa capaz de gerar autonomia financeira a fim de financiar o desenvolvimento soberano, sustentável e solidário do continente. O Banco do Sul está proposto como uma das dimensões de uma nova arquitetura financeira para o continente, capaz de viabilizar a concepção e implementação de projetos de infraestrutura a serviço de um projeto de desenvolvimento próprio de cada país e de um projeto de integração continental baseado numa autêntica cooperação entre os países e os povos.

A Ferrovia Leste-Oeste, a ser lançada em janeiro de 2008 pelo presidente Lula, é mais um projeto bilionário que terá forte impacto social e ambiental. [2] Ferrovias num país-continente com o Brasil são bem-vindas. Estradas de rodagem teriam impacto bem pior sobre os ecossistemas do trajeto. Empregos e ampliação de acesso dos produtos aos mercados também são bem-vindos. Porém, há perguntas anteriores que precisam de resposta: Quem serão os principais beneficiários da Ferrovia? O projeto está sendo objeto de estudos para avaliar os custos totais – financeiros, sociais e ambientais – nele envolvidos? Está sendo objeto de consulta às populações que serão por ele afetadas? O trajeto coincidirá com áreas indígenas cujas comunidades têm, por lei, direito de posse sobre suas terras? De que forma o projeto irá impactar o desenvolvimento das localidades por onde a ferrovia irá passar? Qual a sustentabilidade dos custos e dos benefícios do projeto, não somente para os investidores e seus usuários comerciais, mas também para as populações afetadas e para os ecossistemas?

A ferrovia está estimada em R$ 9 bilhões, pouco mais do que seria necessário investir em um ano para realizar o projeto de reforma agrária mencionado acima; suficiente para assentar produtivamente na terra mais de 300 mil famílias de trabalhadores sem terra. Se compararmos os dois projetos, qual deles teria maior e melhor impacto econômico, social e ambiental? Qual teria maior efeito redistributivo? Notemos que ambos são projetos econômicos, embora o segundo tenha uma dimensão social mais evidente. A reforma agrária gera poder produtivo no setor da agricultura familiar, aumenta a oferta de produtos agrícolas tanto para a alimentação quanto para agroenergia, e tende a reduzir os preços de alimentos e aumentar o poder de compra das famílias rurais. São efeitos duráveis e de múltiplos impactos positivos. A reforma agrária pode ser realizada com base na agroecologia e pode fazer parte de um projeto de equilibra a produção de alimentos com a produção de agrocombustíveis, a produção que atende às necessidades da demanda interna com a produção para a exportação.

A principal motivação para a construção da Ferrovia Leste-Oeste é o transporte de produtos do Centro-Oeste para os mercados do hemisfério Norte. E ela vai facilitar o crescimento do agronegócio e dos investimentos nacionais e estrangeiros no setor de mineração. “O projeto prevê também a criação de diversos pólos industriais nos últimos remanescentes intocados do bioma Cerrado nos estados de Goiás e Bahia, ameaçando ainda as águas do Alto Tocantins, entre outras bacias hidrográficas”, diz Álvaro de Angelis, da Rede de Integração Verde. Isto quer dizer que, todas as vantagens que este projeto anuncia devem ser colocadas lado a lado com as desvantagens e os custos que vai implicar para as regiões e as populações afetadas e para quem vai pagar a conta.

A Valec, Engenharia, Construções e Ferrovias, empresa controlada pelo governo federal, responsável pelo projeto, afirma “a preocupação já demonstrada com o efetivo cuidado ao se definir o traçado da Ferrovia Norte-Sul, para que os seus trilhos não cortassem reservas indígenas, parques ecológicos e outras áreas de conservação ambiental. Assim sendo, a iniciativa da VALEC de adotar uma política ambiental foi uma decorrência natural desta cultura empresarial”.[3]

De Angelis argumenta que a nova ferrovia vai atravessar o município de Alto Paraíso e a Chapada dos Veadeiros, que é uma das principais áreas estratégicas de conservação da biodiversidade do Cerrado e centro de endemismo de espécies do planeta. “Levada adiante, a ferrovia afetará drasticamente as condições de sustentabilidade ecológica para o desenvolvimento socioambiental da região, rica também na diversidade cultural de seus povos. A ferrovia prevê a distribuição de impactos ambientais de efeito dominó por todo o seu traçado. É a descaracterização do potencial alternativo de economia de suas comunidades tradicionais, e a pá de cal no tão combalido bioma Cerrado”. Segundo De Angelis, o projeto da Ferrovia Leste-Oeste prevê também a criação de diversos pólos industriais nos últimos remanescentes intocados do bioma Cerrado nos estados de Goiás e Bahia, ameaçando ainda as águas do Alto Tocantins, entre outras bacias hidrográficas.[4]

A população precisa de esclarecimento, e nada mais desejável que a promoção, pelo Governo federal, de um debate público amplo e transparente sobre mais um projeto estratégico, de grande escala, com inevitáveis impactos econômicos, sociais e ambientais para diversas regiões, com uma diversidade de interesses e perspectivas em conflito.

Lugano, 2 de janeiro de 2008

Notas:

[1] http://www.mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/selecao_detalhe3.asp?ID_RESENHA=367505
[2] http://www.valec.gov.br/clipping/20071229-1.htm
[3] http://www.valec.gov.br/politica-ambiental.htm
[4] Nota eletrônica de 30.12.2007.

Marcos Arruda, Socioeconomista e educador do PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Rio de Janeiro, e sócio do Instituto Transnacional.

Artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – ADITAL, enviado por Mayron Régis, colaborador e articulista do EcoDebate