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Artigo

Um balanço do jejum de Dom Frei Luiz Flávio Cappio, artigo de Frei Gilvander Moreira

[EcoDebate] Para fazermos um balanço, aprendemos já nos rudimentos da contabilidade que temos de analisar os ganhos e os prejuízos. O saldo é o resultado do lado bom menos o lado ruim das ações que não atenderam às nossas expectativas. Pois bem, é com este olhar que nos propusemos a avaliar o que vimos e sentimos, de longe e de perto, na luta do povo encabeçada por Dom Cappio contra a transposição e em prol do Rio São Francisco.

Durante os 24 dias de jejum e oração de frei Luiz quantas cartas, e-mails, telefonemas e manifestações de apoio dos quatro cantos do mundo: antenados e solidários. Quantas pessoas frei Luiz ouviu, aconselhou, confessou, abraçou, beijou, dirigiu mensagens, ou simplesmente olhou com carinho. Quantas pessoas participaram do “jejum solidário”, uma proposta que ganhou conotações – até certo ponto surpreendentes – de crítica a uma sociedade que tem abundância de comida, mas aumento da fome. Milhares de pessoas sentiram-se questionadas profundamente no seu estilo de vida cristã diante do valioso testemunho de frei Luiz, ainda que suas palavras e atitudes proféticas tenham sido ignoradas por autoridades que se fizeram surdas à voz do povo.

Na capela de São Francisco, na pequena cidade de Sobradinho, no sertão da Bahia, graças ao espírito divino presente nas águas do Rio, os 24 dias de jejum e oração de dom Cappio (de 27/11/2007 a 20/12/2007) revelaram o crescente compromisso de milhões de brasileiros com a preservação do São Francisco. O Rio não é mais algo fora de nós. È a nossa identidade. No princípio era a água; e a água se fez “carne”: criaturas todas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água. Somos água que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria.

O gesto de Dom Cappio desmascarou a ignorância e a omissão de muitos cidadãos. Desmascarou sobretudo a arrogância do Governo e o cinismo das instituições tidas como democráticas. Mostrou que os quatro poderes – midiático, executivo, legislativo e judiciário – continuam de joelhos diante do poder econômico nacional e internacional. Revelou que o Governo do presidente Inácio da Silva revestiu-se de autoritarismo, de arrogância e prepotência na corrupção. Ou nas palavras de Dom Tomás Balduino: “O Governo Lula esgotou-se”.

Politicamente, não se legitima a transposição do Rio São Francisco. OS movimentos populares, representantes legítimos do povo, levantaram-se na defesa das águas como bem comum. Denunciaram a mercantilização da água para o hidronegócio. O jejum de frei Luiz desnudou a verdade sobre a malfadada Transposição: uma obra faraônica. A maior da história do Brasil. Os Estudos oficiais mostram: 70% da água vai para a irrigação, 26% para uso industrial, somente 4% para população difusa.

O gesto de Dom Cappio fortaleceu a Via Campesina, os movimentos populares e as lideranças sociais, os setores religiosos e a consciência cidadã para prosseguirem na luta ecológica, o que significa luta contra injustiças sociais, políticas e econômicas. Internacionalmente, a repercussão gerou bons frutos. A Comissão Pastoral da Terra, Pastorais Sociais e parte dos movimentos populares que não mediram esforços na luta ao lado de Dom Cappio também saíram fortalecidos.

Frei Luiz irrompeu como uma forte liderança do Brasil atual. Será como uma “espada de Dâmocles” levantada sobre a cabeça dos quatro poderes, das Instituições, dos cidadãos, cúmplices do crime e acomodados. A voz e o testemunho de frei Luiz valorizaram o amor pela causa dos pobres.

O gesto profético de Dom Cappio curou a cegueira de milhões de pessoas. Jejum e oração foram instrumentos para desnudar a mentira. Mobilizou a CNBB, a Igreja Católica, os cristãos, boa parte do clero e dos religiosos. Nas mentes e corações de milhares de pessoas despertou a indignação.

A conquista das conquistas: Dom Cappio continua vivo entre nós. Mais do que nunca será, um grande profeta no meio do povo a encorajar a luta dos pequenos na denúncia de arbitrariedades e desumanidades dos quatro poderes que, travestidos de Estado de Direito, insistem em imperar sobre os pobres e sobre o ambiente natural.

O gesto profético de Dom Luiz sacudiu a Igreja, o Governo e pessoas de tantas instituições. A força cristalina do testemunho de profeta tocou feridas profundas, encobertas por discursos fáceis, palavras jogadas ao vento. Dom Cappio retomou uma modalidade de luta assentada sobre a fina flor da tradição cristã: jejum e oração. Resgatou no coração de muitos militantes uma espiritualidade nova. Jejuar e orar continua sendo expressão da resistência contra os faraós de hoje.

A continuidade do debate fará com que caiam outras máscaras! Muitos neófitos no debate sobre a transposição, tema que já está em pauta há pelos menos 10 anos, expressam incongruências, desinformação e o velho preconceito em mal pensar, a partir do Sul/Sudeste, o que se generalizou chamar “Nordeste”. Não dá mais para ignorar a revolução silenciosa que se expressa no paradigma da Convivência com o Semi-árido.

Com Roberto Malvezzi somamos: “O saldo do gesto de frei Luiz Cappio demarca as margens e estabelece um abismo moral entre companheiros que até ontem bebiam da mesma água. O rio que nos separa é mais profundo que o São Francisco. O que está em jogo é o futuro deste país, do próprio planeta, da própria humanidade. Será que o caminho do governo está mesmo “livre” para prosseguir com o projeto após a decisão do STF de liberar as obras? Uma obra de longo prazo, que envolve bilhões de reais durante sucessivos governos, nunca está garantida antes de sua conclusão. A preocupação fundamental demonstrada pelo governo foi “não fazer concessões ao bispo”, como demonstração de “autoridade”. Muitas vezes, a expressão corrente foi que “ceder liquidaria o Estado”. Ou: “Agora é o São Francisco, depois podem querer barrar usinas no rio Madeira”. Portanto, o governo sabe que o gesto de frei Luiz aponta não só contra o governo e seu PAC – Programa de Aceleração do Crescimento das empresas, não do povo – mas também contra o modelo de desenvolvimento que está sendo imposto sobre a natureza, as pessoas e as comunidades mais pobres do país.”

Não podemos perder de vista que o nosso projeto é muito maior. Queremos água para 44 milhões, não só para 12. Para nove Estados, não apenas quatro. Para 1.356 municípios, não apenas 397. Tudo pela metade do preço da Transposição. O Atlas do Nordeste (da ANA – Agência Nacional de Águas) e as iniciativas da ASA – Articulação do Semi-árido – (sociedade civil) que lutam pela construção de 1 milhão de cisternas e a implementação de 144 tipos de tecnologias alternativas, sustentáveis ecologicamente, são muito mais abrangentes e têm finalidade no abastecimento humano. A transposição é econômica, neoliberal. Um camponês do Ceará alerta: “Nenhum projeto faraônico beneficia os pequenos. O que beneficia os pequenos são as pequenas obras multiplicadas aos milhares”. Por isso a luta continua! As reflexões oriundas do testemunho de Dom Cappio fizeram e ainda farão borbulhar o Espírito para suscitar e dinamizar muitas outras lições como testemunho de autêntica cidadania.

Queiram os opositores e o governo ou não o saldo é positivo! Com Dom Cappio vivo e a verdade gritando mais forte – após o jejum e oração não apenas de um, mas de tantos -, temos hoje a certeza ainda maior de estarmos do lado certo desta história. Ou como profetizou Leonardo Boff, a transposição já está amaldiçoada!

Frei Gilvander Moreira, Frei Carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBs, SAB, CEBI e Via Campesina, colaborador e articulista do EcoDebate. E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br , http://www.gilvander.org
Belo Horizonte/MG, 20/01/2007