EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Luis Cappio, por que vieste incomodar-nos?, artigo de Pe. Paulo Suess

No conto “O grande inquisidor” de Dostoievski, o cardeal-inquisidor atravessa a praça de Sevilha para prender um sujeito no qual o leitor logo reconhece Jesus. “És tu?”, pergunta o inquisidor e responde rapidamente pelo outro: “Não digas nada, cala-te. Por que vieste incomodar-nos?”. Depois segue uma reflexão do inquisidor sobre as respostas que Jesus deu ao demônio, no fim de seu jejum de 40 dias, rejeitando o pão como privilégio, o prestígio na fachada do templo e o poder como idolatria. “Tu querias um povo em liberdade e abriste mão das três únicas forças que podem subjugar o povo: o milagre em benefício próprio, o mistério para confundir o outro e a autoridade para subjugar os pobres!” No contexto do governo Lula, o cardeal diria: o milagre causado pelas cestas básicas, o mistério da governabilidade para selar a parceria entre a modernidade e o retrocesso social, e o autoritarismo de uma suposta infalibilidade dos tecnocratas.

Por que vieste incomodar-nos? Em tempo de Natal e fim de ano, época de mesas fartas, a greve de fome de dom Luís Cappio realmente incomodou o clima geral do consumismo. Logo, a legitimidade desse jejum em nome da democracia e da doutrina cristã foi questionada. Aliás, até hoje não está decidido se o gesto do bispo franciscano da diocese de Barra (BA), que visava um projeto alternativo à transposição do Rio São Francisco, era uma greve de fome ou um jejum quaresmal em tempo de Advento, cujos 23 dias ainda estavam longe dos 40 de Jesus no semi-árido da Palestina.

Seja como for, jejum bravo ou greve de fome, todos ficaram incomodados e procuraram “saídas honrosas” atravessadas pelo cinismo governamental e o oportunismo de alguns romeiros políticos, pela piedade dos movimentos sociais e o espírito combativo de algumas pastorais que, segundo sociólogos da primeira linha teórica, não saberiam corretamente manejar as mediações entre fé e política. Falar da cátedra é mais fácil do que dialogar na esteira. Quem ouviu os 22 povos indígenas que serão atingidos pela transposição das águas muda seu “manejo das mediações”. Descobre que não são os povos indígenas nem os ribeirinhos, os pescadores ou os quilombolas da Bacia do São Francisco, como apareceu na propaganda do governo, que se recusam a dar aquele copo de água, de que a Bíblia fala, a seu irmão sedento. Pelo contrário, é o governo do agro e hidronegócio, que lhes negou até hoje o saneamento básico e os pressiona agora a entrar na lógica do mercado neoliberal, que sufoca qualquer solidariedade. De 100 copos que o projeto do governo retira do São Francisco, oferece apenas 4 à população rural pobre. Setenta copos servirão ao agronegócio e 26 às atividades industriais das cidades. O projeto dos movimentos sociais e de D. Cappio oferece pela metade do preço água para quatro vezes mais pessoas.

O que está em jogo nessa transposição de uma parte das águas do Rio São Francisco? No melhor dos casos, a transposição vai abastecer com o pão dos famintos os mortos de fome, ou seja, já que se trata de água, com a água dos cronicamente desidratados, os sedentos sazonais. Digo, no melhor dos casos, porque se têm notícias de que essa transferência das águas entre desidratados e sedentos é um mero pretexto e que essa água, antes de molhar a garganta dos pobres, vai “molhar as mãos” das empreiteiras, do agronegócio e do caixa dois das próximas eleições.

Sem entrar em pormenores técnicos, o jejum de dom Cappio, em sua radicalidade e simplicidade, tem um significado muito além do Rio São Francisco. Aponta para a prática democrática, para meios e fins do desenvolvimento e para a relevância eclesial nos conflitos sociais.

Prática democrática

Vivemos numa sociedade determinada pelo modo de produção capitalista, que visa à maximização do lucro e impõe como valor supremo o dinheiro. A democracia formal tornou-se a peça fundamental para a acumulação do capital e a reprodução da injustiça estrutural. Ela respalda legalmente a visão economicista do mundo com seus eixos de utilidade, consumismo, individualismo e competição. O megaprojeto da transposição do Rio São Francisco (R$ 6 bilhões) deve ser visto nesse contexto. Surgiu no tempo do Império e até hoje tem resquícios imperiais. As decisões são tomadas em segredo, com promessas mirabolantes, sem nenhuma participação efetiva dos destinatários do projeto. A audiência pública, uma espécie de simulação de participação democrática, foi feita pro forma numa quinta-feira de carnaval em Salvador. Para sufocar qualquer resistência e realçar o caráter nacional, Lula chamou o Exército para dar início ao projeto autoritário de transposição do Rio São Francisco.

Dizer, como porta-vozes do governo fizeram, que a greve de fome seria um gesto autoritário, significa confundir o bombeiro com o incendiário; significa confundir autoridade moral com autoritarismo e fechar as possibilidades de resistência além do dia das eleições. Votos de senadores e deputados podem ser comprados. O jejum de frei Cappio, que estava disposto a dar sua vida para impedir o projeto que prejudica os pobres, é um dom. E o dom não se pode transformar em mercadoria como a transposição do Rio. O DOM (Cappio) não se vendeu! Tudo o que não se pode comprar, dizia Kant, tem dignidade. Na sua perplexidade diante dessa rara dignidade, o governo recorreu ao Vaticano para intervir. Na hora do pega, as autoridades se lembram que são “compadres” que se devem favores.

Qual é a possibilidade de movimentos sociais, operários e da sociedade civil intervirem na roda de um governo a serviço das elites, se não a repolitização da coisa pública através de gestos simbólicos, como o jejum de Dom Cappio? Diante da decadência e dos sinais de irracionalidade da democracia formal, o gesto do franciscano representa uma crítica profunda à nossa tímida prática democrática” e aponta para a necessidade de avanços em direção a uma democracia mais participativa capaz de resgatar o princípio da soberania popular que está na base do contrato social. A Constituição de 1988 prevê a possibilidade de plebiscitos, greves, audiências públicas, mas a presença mais expressiva do povo permanece rudimentar. Precisamos radicalizar a democracia. A transformação da democracia representativa não significa a ruptura com a democracia. Significa sim a ruptura com as forças elitistas, antidemocráticas e corruptas que dominam o País. Trabalho de base significa trabalhar para que cresça a base popular capaz de produzir as transformações sistêmicas necessárias.

Fins e meios do desenvolvimento

O que movimenta o projeto da transposição do Rio São Francisco não é a sede do povo, mas a demanda hídrica do agronegócio e da indústria. O desenvolvimento em torno de grandes projetos, que são grandes negócios para poucos, incorpora cada vez mais recursos naturais (terra e água). Esse modelo despreza os saberes das comunidades locais, empobrece os solos, contamina as águas, desemprega as pessoas e as obriga a assistir a transformação da biodiversidade de sua região, de suas terras e de sua produção familiar de subsistência, em território para a pecuária e a monocultura. A maioria é obrigada a migrar para as periferias das cidades. O modelo hegemônico do desenvolvimento se baseia em grandes extensões de terras, no maquinário, nos insumos químicos e nas sementes geneticamente modificadas; produz para o supermercado e o mercado exterior. O gesto de frei Cappio procurou mobilizar a resistência contra esse modelo do latifúndio em permanente expansão, da monocultura, da exportação, da industrialização da miséria (“indústria da seca”), do lucro privilegiado e da destruição socioecológica. O frei Cappio e o povo da região propõem a convivência previdente com o semi-árido (captação da água de chuva em cisternas e barragens subterrâneas). Ensaios desse novo modelo são feitos pela CPT e o MST, que lutam pela diversificação agrícola, a economia familiar, a reforma agrária, o reequilíbrio entre o mundo rural e o urbano, o fortalecimento dos mercados locais e regionais e pela soberania alimentar.

Relevância eclesial

A Igreja aprendeu de Jesus de Nazaré a compaixão com os pequenos e os que sofrem. Ela conhece os pobres e os outros e reconhece a sua autoridade teológica. “A Igreja é a casa dos pobres”, diziam os bispos em Aparecida (DA 8, 524). A compaixão eclesial com os pobres emana de seu campo próprio, que é o campo simbólico e imaginário. Ela não é construtora de um paraíso terrestre, mas emite, como Jesus, sinais concretos de abertura, justiça e transformação. Ela não substitui a luta por um mundo melhor por uma “cesta básica celeste”, que faria desnecessário o próprio esforço de ação e reflexão. Ao apresentar-nos imagens de esperança (“ressurreição”), ela recolhe a nossa liberdade e não decifra para nós todos os enigmas da existência humana. Os demônios continuam soltos. E as nossas certezas são apenas probabilidades da fé.

Quem começa uma greve de fome, que é um instrumento de luta da não-violência, não sabe como vai terminar. O objetivo não é “ganhar” a luta. Quem ganha são os outros. O objetivo é fazer avançar uma causa. Com a visibilidade de sua figura quase invisível, Frei Cappio fez avançar a causa dos ribeirinhos, dos povos indígenas e dos quilombolas do Rio São Francisco. Ao partilhar simbolicamente a austeridade de sua vida e lutar por água para os sedentos, Luís Cappio se tornou ícone de esperança e sinal de justiça maior. Através do silêncio, da oração e do jejum na Igrejinha de São Francisco, em Sobradinho (BA), ele nos motivou novamente a acreditar na presença de um Deus que se despojou para caber ao lado dos pequenos. Vivemos desses pobres sinais que reforçam nossas lutas, das Romarias da Terra, do Grito, do jejum e da oração, da mística nos assentamentos do MST, das celebrações dos nossos mártires, da eucaristia.

A luta continua porque os demônios continuam soltos. Por hora, a Cobra Grande, que se escondeu nos rios São Francisco, Araguaia, Xingu/Amazonas, encontrou em Luís Cappio, Pedro Casaldáliga e Erwin Kraeutler guerreiros valentes, que nos convocam para a construção de um mundo no qual não haverá mais necessidade de gestos heróicos, porque nesse mundo o desespero coincide com a esperança.

Pe. Paulo Suess – suess@uol.com.br

Artigo publicado por franciscanos.org.br, Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil