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Rio São Francisco: O movimento contra o projeto tem que ser politicamente ampliado e nacionalizado. Entrevista especial com João Abner

Conhecido como um dos maiores estudiosos da situação do semi-árido brasileiro, João Abner já manifesta há anos que o problema da região não é a falta de água, mas, antes de tudo, a má qualidade da gestão em relação a ela. “O balanço hídrico global do semi-árido brasileiro é superavitário quando se leva em consideração as vazões regularizadas pelos grandes açudes frente às demandas hídricas atuais e futuras da região. Os próprios números levantados nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) do Projeto de Transposição do Rio São Francisco comprovam essa tese”, afirma Abner, em entrevista concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line.

Marcada por inúmeras polêmicas, as obras de transposição do Rio São Francisco continuam. O governo insiste em dizer que o projeto finalmente levará água para aqueles que sofrem com a escassez deste recurso. Mas, então, por que com a transposição o rio ficará cada vez mais próximo dos produtores de frutas, flores e camarões para exportação? “No momento atual em que os movimentos sociais que atuam na região se tornam reféns do processo político, surge D. Cappio como uma liderança, sem vínculo partidário e projeto hegemônico, respaldado pela sua vivência e pelo conhecimento da realidade”, acredita Abner.

Doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento, João Abner Guimarães Junior é professor nos cursos de Engenharia Sanitária e Engenharia Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sobre a transposição do São Francisco, publicou diversos artigos, tais como “A transposição do Rio São Francisco e o RN”, “O lobby da transposição” e “O mito da transposição”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor afirma que o problema do semi-árido não é a escassez de água, mas sim a má gestão da água. Desde quando esse problema está instituído na região?

João Abner – O balanço hídrico global do semi-árido brasileiro é superavitário quando se leva em consideração as vazões regularizadas pelos grandes açudes frente às demandas hídricas atuais e futuras da região. Os próprios números levantados nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) do Projeto de Transposição do Rio São Francisco comprovam essa tese, mostrando um comprometimento com as demandas prioritárias de consumo humano, animal e industrial. As demandas urbanas e rurais apuradas para 2025 são de apenas 40% da vazão garantida regional, avaliada a partir de um cenário bastante pessimista, quando comparado com estudos e planos dos próprios estados receptores que, em conjunto, apresenta valor três vezes maior. A disponibilidade hídrica apurada no EIA refere-se a 85% das vazões regularizadas em 99% dos anos nos maiores reservatórios, de ponta, das bacias receptoras das águas do velho Chico.

Isto é: foram desconsideradas, por orientação da ANA (Agência Nacional de Águas), as contribuições de centenas de grandes reservatórios intermediários, assim como das águas subterrâneas largamente utilizadas na região. Além do mais, a demanda potencial de irrigação apurada no EIA do projeto não representa a realidade da Região, dado que foram incorporados no cálculo inúmeros projetos de irrigação inviáveis, planejados sem a devida sustentabilidade local, gerando um déficit hídrico irreal. Portanto, o hipotético déficit hídrico global largamente divulgado pelo Governo como justificativa do projeto de transposição é falso, tendo em vista que as águas da transposição irão aumentar os estoques de água dos maiores reservatório ociosos da região, sem alterar o quadro das secas que é uma realidade secular terrível para o povo do sertão, principalmente para a população difusa do campo, que não tem acesso à água dos maiores reservatórios e convive permanentemente com um elevado risco de insucessos nas atividades agropecuárias de sequeiro e de colapso no abastecimento hídrico humano e animal, quadro esse que se reproduz em todo o semi-árido brasileiro.

IHU On-Line – Como o senhor analisa o governo Lula no aspecto ambiental?

João Abner – A política ambiental reproduz o caráter conservador do governo Lula, que se revelou na estratégia de rolo compressor do licenciamento ambiental e hídrico do projeto de transposição do Rio São Francisco, maior obra do governo Lula. Nesses casos, o governo, com todo o aparato do Estado e sem a devida isenção, atuou em bloco, atropelando os processos de mobilização popular do licenciamento ambiental e da formulação do plano da bacia conduzido pelo Comitê da Bacia do Rio São Francisco, que foi desautorizado pelo Conselho Federal com a participação ativa da ANA na questão da outorga de água da transposição do Rio São Francisco.

IHU On-Line – O senhor pode nos explicitar como se dá a sua proposta de reforma hídrica em alternativa à transposição do Rio São Francisco?

João Abner – A reforma hídrica tem como princípio a democratização do acesso à água e dos benefícios da infra-estrutura hídrica pública da região, com ênfase na questão do abastecimento humano e animal, prioritário. A água do semi-árido deveria ser encarada menos como um insumo econômico e cada vez mais como um fator de sustentabilidade socioeconômico e ambiental para o campo e cidades, ao contrário da transposição do Rio São Francisco, que reproduz a política hidráulica de ampliação dos estoques de água da região, na lógica capitalista de crescer o bolo para depois dividir. A política de pólos de irrigação deveria ser entendida como exceção e não regra, tendo em vista que o semi-árido só tem água para irrigar permanentemente 2% do seu território. Portanto, no geral, deveriam ser fortalecidas as atividades econômicas urbanas, envolvendo 75% da população, e a agropecuária de sequeiro no restante da região dentro de uma política sustentável de convivência com o semi-árido. Dado as incertezas no clima da região, o grande desafio consiste no desenvolvimento de um planejamento governamental dinâmico e otimizado para a região, diferenciado para os períodos chuvosos e secos. Nesse caso, a solução dos períodos secos passaria pelo bom aproveitamento dos excedentes dos períodos chuvosos, tal como nos ensina a Bíblia com a história de José do Egito. Um bom exemplo dessa estratégia é a cisterna que assegura água de boa qualidade durante os períodos normais. O projeto de transposição encontra-se na contramão da história, e os seus idealizadores não enxergam as profundas transformações vivenciadas no Brasil e no Mundo que tornaram a água um insumo globalizado. Nesse contexto, o NE exporta água pelo hidronegócio e importa muito mais via produtos de várias regiões do Brasil num contexto de viabilidade econômica, ao contrário do projeto de transposição que contará com um enorme subsídio cruzado do setor urbano politicamente inserto.

IHU On-Line – Como o senhor analisa o papel que Dom Luiz Cappio tem desempenhado em relação às obras de transposição?

João Abner – No momento atual em que os movimentos sociais que atuam na região se tornam reféns do processo político (em relação aos governadores dos estados), surge D. Cappio como uma liderança, sem vínculo partidário e projeto hegemônico, respaldado pela sua vivência e pelo conhecimento da realidade e a experiência das pastorais da igreja com grande atuação na região há bastante tempo. É importante destacar que há algum tempo esse importante movimento extrapolou a problemática da transposição do Rio São Francisco tendo como alvo um projeto de desenvolvimento regional efetivo e pleno.

IHU On-Line – Qual é a importância da luta contra a transposição para o povo do semiárido? E para aqueles que, como o senhor, estudam essa região?

João Abner – A transposição será um verdadeiro presente de grego para todos os nordestinos: irá inviabilizar o frágil pacto da bacia do Rio São Francisco com reflexos terríveis para o seu povo que também vive no semi-árido; provocar a cizânia da região mais pobre do Brasil; encarecer bastante o custa da água da região e induzir o subsídio cruzado do setor urbano para o agro-negócio exportador de frutas tropicais; e perpetuar as políticas emergências de combate aos efeitos das secas no Brasil. O projeto irá chover no molhado, as águas escoarão no leito dos maiores rios já perenizados pelas maiores barragens da Região e passarão distantes dos locais mais secos. O projeto irá paralisar as ações governamentais na região durante muito tempo pela força do lobby alimentado pelos grandes investimentos da obra de transposição, fortalecendo, dessa forma, o paradigma da obra como um fim em si mesmo – a verdadeira indústria das secas no Brasil.

IHU On-Line – De que forma a transposição do Rio São Francisco irá alterar a matriz energética da região?

João Abner – A obra será uma grande consumidora de energia do sistema CHESF (Companhia Hidroelétrica do São Francisco), que se encontra no limite de operação, devendo, por isso, aumentar significativamente a freqüência de apagão do sistema, e, em conseqüência, alterar a matriz energética da Região, requerendo o uso freqüente de usinas termo elétricas, encarecendo o custo de energia do sistema elétrico nacional unificado.

IHU On-Line – Quais são suas perspectivas para a região agora que a obra foi retomada, mesmo depois das fortes manifestações contrárias a ela?

João Abner – O movimento contra o projeto tem que ser politicamente ampliado e nacionalizado. A estratégia do lobby da transposição que se encontra encastelado no poder é tornar a obra irreversível qualquer que seja o governo em vigor, e daí viabilizar o acesso permanente de recursos via orçamento da união, disputando com todos os programas governamentais durante muitos anos. Talvez esteja aí o calcanhar de Aquiles da transposição.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]