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Do que temos certeza, afinal? artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Vai-se esvaindo o tempo já curto em que a ciência considera ainda possível promover mudanças indispensáveis para reduzir a emissão de gases, antes que o aumento da temperatura planetária agrave muito o quadro de “desastres naturais”. Também pouco se avança – se é que se avança – em direção a modos mais sustentáveis de vida, compatíveis com a capacidade da Terra de repor recursos e serviços naturais. Continuamos perdidos em debates, com a ilusão de que temos todo o tempo que quisermos.

Ainda este mês haverá novas discussões entre 17 países, o Brasil incluído, convocados pelos Estados Unidos para um encontro no Havaí. E não é difícil prever o roteiro. O governo Bush continuará insistindo em que só é possível fixar compromissos de redução de emissões para os países industrializados se as nações “em desenvolvimento” (que serão as maiores emissoras nas próximas décadas) também os aceitarem – o que, até aqui, só acontece em tese, mesmo após a reunião de Bali. A Europa insistirá em novos compromissos imediatos dos industrializados, de redução até de 30%. É pouco provável que haja progressos reais, ainda lembrando que os norte-americanos não sabem quem será o presidente a quem caberão as decisões efetivas, no ano que vem.

Certamente voltará à mesa a proposta da Indonésia, apresentada em Bali, de que os países industrializados paguem pela conservação de florestas tropicais, já que os desmatamentos e queimadas que nelas ocorrem respondem por quase 20% das emissões globais. O Brasil também quer receber por reduções do desmatamento na Amazônia, como foi comentado neste espaço (21/12). São propostas difíceis. No caso brasileiro, porque, embora o País já seja o quarto maior emissor e desmatamentos e queimadas respondam por 75% das emissões, não definiu metas obrigatórias. No caso da Indonésia, porque o desmatamento não só já colocou o país como terceiro maior emissor do mundo, como porque ele está fortemente ligado a atividades econômicas de alto porte, como a produção de celulose para a indústria de papel e de biocombustível para ser vendido à Europa, que, assim, reduz suas emissões. E, pior ainda, o desmatamento na Indonésia acontece em grande parte em florestas encontradas em pântanos turfosos. Nesses lugares, a remoção da vegetação, acompanhada da drenagem da área úmida para plantio de acácia ou palma, acaba provocando a liberação intensa de dióxido de carbono, já que na turfa de áreas como essas, no Sudeste Asiático, estão armazenados cerca de 155 bilhões de toneladas de CO2 (seis vezes as atuais emissões anuais no mundo), segundo o impressionante relato de Fred Pearce na revista New Scientist (1/12/2007).

E aí começam interrogações. Vale a pena, por exemplo, desmatar uma área e drenar o terreno turfoso, se ele libera 30 vezes mais dióxido de carbono do que a redução que é conseguida com o biocombustível produzido naquela área? Mas o fato é que, por esse caminho, 130 mil quilômetros quadrados de florestas turfosas foram removidas no Sudeste Asiático, com a área parcialmente drenada. Na decomposição e na queimada, 2 bilhões de toneladas anuais de CO2 são liberados, que equivalem a cerca de 8% das emissões geradas por combustíveis fósseis.

Mas não é só para produzir biocombustíveis e celulose que isso acontece. O óleo de palma é utilizado numa vasta cadeia industrial, que vai de xampus a biscoitos. A madeira é outro item de alta importância na contabilidade dos grandes grupos que atuam nessa área, principalmente na Ilha de Sumatra. Um deles consome 22 mil toneladas de madeira por dia. Mas, juntamente com o governo indonésio, esses grupos argumentam que tais atividades respondem por grande parte da geração de trabalho e renda na região. E que as emissões por habitante no país são inferiores às da Europa ou metade das norte-americanas. Por essa mesma lógica, comenta a New Scientist (1/12/2007), seria possível argumentar que 500 milhões de pessoas que formam a população rica do mundo, embora sejam apenas 7% da população total, respondem por 50% das emissões de CO2 com a queima de combustíveis fósseis; enquanto isso, os 3 bilhões de pessoas que formam a parte mais pobre da população só emitem 7% do total mundial. Seria o caso de pensar em cotas de emissões por pessoa, pergunta?

É outra hipótese que provoca discussões acaloradas, com os países mais pobres lembrando que os ricos vêm contribuindo desde o início da revolução industrial para a concentração de gases que estão na atmosfera, enquanto os países “em desenvolvimento” só passaram a emitir muito mais tarde. Então, os ricos é que deveriam reduzir mais e primeiro. Outra argumentação: seria possível e justo calcular a contribuição de cada país para o que já foi emitido. Mas não resolveria o problema do crescimento das atuais emissões dos países mais pobres.

E assim vamos, com lógicas financeiras garimpando dúvidas para se sobreporem às recomendações da ciência. Mesmo estas, entretanto, enfrentam questionamentos. O cientista Andrew Baker, da Universidade de Tecnologia de Brisbane, na Austrália, por exemplo, tem escrito que muitos cientistas criam a ilusão de que é possível nos guiarmos por certezas científicas – e as incertezas acabam dando razão e tempo aos que duvidam ou se aproveitam das dúvidas. Deveríamos, por isso, guiar-nos pelo princípio da precaução. Mesmo que não haja certeza, se houver probabilidade de eventos indesejáveis, é preciso agir com cautela, estabelecer restrições. Esse, diz ele, é o caminho recomendado há séculos por luminares como David Hume e Karl Popper. O primeiro lembra até que não temos certeza sequer de que o sol se levantará amanhã; a crença deriva do hábito, não da lógica; mas pode sobrevir algo diferente.

Quem conseguirá fazer prevalecer esse pensamento no campo da lógica financeira?

Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 11/01/2008