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Com estímulo oficial, floresta vira capim

Motor do desmatamento, pecuária explode na Amazônia e torna Brasil maior exportador mundial de carne, diz novo estudo. Região Norte responde hoje por 36% do rebanho do país e um terço das exportações, turbinada por subsídios e pela falta de fiscalização. Por Marta Salomon, Enviada Especial a São Félix do Xingu (PA), Folha de S.Paulo, 13/01/2008.

O município amazônico que mais derruba floresta vende filé mignon mais barato do que carne de segunda no resto do país. Dono do maior rebanho bovino brasileiro, São Félix do Xingu, no Pará, dá um retrato extremo da expansão acelerada da pecuária na Amazônia Legal. Estimulada por terra barata e crédito oficial a juros subsidiados, a atividade está diretamente associada ao desmatamento.

Nesta década, grande parte dos 14,5 mil quilômetros quadrados de mata derrubados no município – quase dez vezes a área da cidade de São Paulo- deu espaço a pastos. Eles abrigam 1,7 milhão de cabeças de gado. São 30 bois por habitante, relação quase dez vezes maior que a média da Amazônia, que já é o triplo da média nacional.

Os recordes de São Félix do Xingu ecoam na região. No ano passado, quando a área desmatada alcançou 19% da floresta, a Amazônia Legal passou pela primeira vez a marca dos 10 milhões de abates, segundo projeções da ONG Amigos da Terra -Amazônia Brasileira.

No relatório “O Reino do Gado”, lançado hoje, a entidade estima aumento de 46% nos abates entre 2004 e 2007. A concentração cada vez maior do crescimento do rebanho brasileiro na Amazônia (que entre 2003 e 2006 concentrou 96% do crescimento do rebanho nacional) fez com que a região bancasse um terço das exportações brasileiras de carne, assegurando a liderança mundial do país nesse mercado.

“A pecuária está sendo empurrada para cá”, constata Carlos Xavier, presidente da comissão para assuntos da Amazônia Legal da CNA (Confederação Nacional da AGRICULTURA) e da federação local, numa referência à substituição de pastos no Sudeste e Centro-Oeste por culturas de cana-de-açúcar e grãos. “A pressão [sobre a fronteira agrícola] é muito forte.”

Não há quem discorde desse diagnóstico, endossado pelo fluxo de fazendeiros vindos sobretudo de Goiás -daí a piada de que capital do Pará é Goiânia, e não Belém.

O aumento do preço das commodities é a hipótese mais forte para explicar por que o ritmo do desmatamento voltou a crescer a partir do segundo semestre de 2007. O crescimento foi detectado por imagens de satélite.

Um novo alerta deverá ser divulgado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) nesta semana, com base nas medições entre outubro e dezembro. O último deles fez o governo mobilizar a Força Nacional de Segurança contra a ação dos tratores.

Ao mesmo tempo em que se mostra preocupado com os sinais de novo avanço do desmatamento na Amazônia, o governo Luiz Inácio Lula da Silva aposta no crescimento da pecuária. Relatório do Ministério da AGRICULTURA prevê aumento de 31,5% da produção de carne bovina nos próximos dez anos.

Segundo o ministério, as exportações brasileiras passariam nesse período do equivalente a 29% a pouco mais de 39% do mercado mundial. Não se cogita reverter o papel da Amazônia nessas cifras.

Pasto subsidiado

A expansão da pecuária de corte na região conta com duas linhas de financiamento operadas pelo Banco da Amazônia, com juros subsidiados, entre 0,5% e 10,5% ao ano -os mais baratos do país.

De micro a grandes, os pecuaristas do Pará receberam R$ 80 milhões em empréstimos em 2007 do PRONAF (Programa Nacional de AGRICULTURA Familiar) e do FNO (Fundo Constitucional do Nordeste), estima João Miranda, superintendente do Basa.

Um estudo ainda inédito, a ser divulgado no mês que vem pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), estima que entre 2003 e 2007 os pecuaristas da região Norte tenham recebido R$ 1,89 bilhão só do FNO. Apesar de ser proibido usar o fundo para desmatar, ele acaba estimulando a derrubada, diz o Imazon. “Um fazendeiro pode desmatar novas áreas sem empréstimo, pois sabe que obterá bons rendimentos usando o empréstimo subsidiado para comprar o rebanho.”

Embora o discurso oficial iniba o desmatamento, uma norma interna do Basa manda dispensar comprovação de reserva legal de florestas na contratação dos empréstimos. Questionado se o banco fiscaliza o desmatamento em propriedades financiadas, o gerente do Basa em São Félix, João Batista Gonçalves, disse: “Não temos como fiscalizar, não somos fiscais do Ibama. Se [o cliente] desmatou mais do que podia, o governo que puna”.

Subsídios públicos estão na origem da pecuária na Amazônia. A atividade foi patrocinada pelos governos militares, preocupados em colonizar a região, a partir do final dos anos 1960, sob o lema “Integrar para não entregar”. A floresta pouco povoada era entendida como ameaça à soberania nacional.

Na época, o desmatamento foi estimulado e a ele esteve vinculada a posse da terra. A legislação permitia então a derrubada de árvores em metade da extensão das propriedades.

Só em 1996 a regra mudou e passou a exigir 80% de reserva legal de florestas nas propriedades da região. O percentual ficou no papel: “Ninguém respeita [o limite]”, atesta o prefeito de São Félix, Denimar Rodrigues (PR). Sai muito mais barato desmatar do que investir na recuperação de pastos, justifica. Eis a lógica da principal -e praticamente única- atividade econômica do município.