EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

agrocombustíveis: Palmeira toma o lugar da floresta virgem em Sumatra

É uma paisagem do que restou depois da batalha, uma batalha travada contra a natureza. O solo foi revirado, os troncos estão calcinados, as poças lamacentas… A terra foi transformada num deserto no qual apenas jovens palmeiras sobreviveram. Estamos caminhando em meio a um calor sufocante. Não se ouve nenhum canto de pássaro, não há um sopro de vento sequer. Um canal de água morta estende-se ao lado da pista amarela. Ao longe, uma espécie de escavadeira se move como uma barata depois da catástrofe. Logo na nossa frente, uma fina cortina escura revela ser uma floresta. A caminhada prossegue sem alegria, transformada num passeio fúnebre, até o grupo alcançar finalmente a própria floresta equatorial, que desponta como um jorro espantoso de vegetação, só que fatiada como se fosse por uma lâmina afiada. Por Hervé Kempf, do Le Monde, publicado pelo UOL Notícias, 09/01/2008 – 02h47.

As árvores, os fetos, os troncos derrubados, as silvas espinhosas, agora constituem obstáculos para a progressão da caminhada. A floresta virgem, ainda que luminosa – a canopéia (a parte mais elevada da vegetação) não a encobre por completo -, faz jus à sua reputação de impenetrável. Mal o grupo conseguiu adentrar na mata, com dificuldades, por alguns metros, e um aldeense que nos acompanha, que se mantinha calado até então, começa a descrever as árvores, derramando uma avalanche de palavras: vocês estão vendo um medang, com o qual se fabricam móveis; aqui, um jelutung, que fornece uma borracha vermelha; ali, temos o kempas, muito sólido, utilizado para fazer as fundações das casas; aquele lá, muito alto, é o sialang, que produz um mel delicioso, e olhem também deste lado: lá estão o simpo, o meranti, o bengku… Estas explicações poderiam ser complementadas por um inventário de frutas, de insetos, de pássaros, além de comentários sobre os cervos, os javalis, os tigres – “Nós conseguimos apanhar um deles recentemente” -, além dos macacos, muito numerosos segundo dizem.

Nós estamos próximos de Kuala Cenaku, a 40 km de Rengat, no distrito de Indragiri Hulu, na província de Riau, na ilha de Sumatra, na Indonésia. O que equivale a dizer no extremo limite do mundo. Aqui também continua sendo travada a luta ancestral entre o homem e a floresta, entre a civilização e a barbárie. Exceto que atualmente os papéis estão invertidos: os bárbaros são aqueles que vão arrasando a floresta equatorial, onde os aldeões tinham os seus costumes e buscavam os seus recursos: “Com freqüência nós entrávamos na selva para procurar o ratã (espécie de palmeira), a borracha, além de frutas para comer ou vender”, conta Pak Hitam, o nosso guia. “Nós pescávamos nos rios, o que nos permitia ganhar até 2 milhões de rupias por semana (cerca de R$ 370). Tudo mudou com a chegada das companhias, que cortaram as árvores e cavaram os canais. Agora, a floresta ficou longe demais da aldeia e, além do mais, os adubos que correm dentro dos rios provocaram a fuga dos peixes”.

Ou seja, cem quilômetros quadrados de floresta virgem destruídos, num canto desconhecido para o resto do mundo. Uma história de menor importância. Mas que está longe de ser um caso isolado: ela vem acontecendo na província de Riau, maior do que Portugal, onde ainda pode ser encontrado um derradeiro trecho da floresta primária que outrora encobria a maior parte dos 443.000 km2 da ilha de Sumatra.

Os seus últimos blocos de selva atraem as plantações de palmeiras, que se desenvolveram de maneira muito rápida na Indonésia e na Malásia nos últimos trinta anos: a produção de óleo destes dois países passou de cerca de 5 milhões de toneladas em 1976 para 34 milhões de toneladas em 2006. Isso se deve ao fato de a palmeira (Elaeis guineensis) proporcionar um excelente rendimento energético e fornecer um óleo muito procurado nos países emergentes da Ásia, aonde as populações vêm modificando a sua dieta alimentar. Há alguns anos, um novo interesse passou a estimular o seu consumo: o óleo constitui um bom biocombustível, que a Europa, a China e a Índia querem utilizar. Tudo isso se traduz por uma intensa pressão sobre as terras livres. “Nesta região, foram recenseados em 2005 cerca de 200 conflitos entre aldeões e companhias exploradoras”, diz Halim Irsyadul, da associação indonésia Kaliptra Sumatera.

Em Kuala Cenaku, a luta remonta aos anos 1990. As aldeias situadas nas ribanceiras do rio Indragiri haviam então travado uma batalha contra a companhia estatal Inhutani, que cortava as árvores, tanto aqui como em outros lugares, sem se preocupar em preservar nada. Várias manifestações de protestos foram necessárias para que o governo aceitasse mudar o regime de exploração florestal. “Mas, após estarmos na boca do tigre, nós acabamos sendo jogados para dentro da boca do jacaré”, diz Mursyid M. Ali, o chefe da aldeia de Kuala Cenaku. Uma outra companhia, a Duta Palma, chegou na região em 2004, apresentando as licenças oficiais para a criação de plantações de palmeiras de óleo. Ela começou então abrindo a floresta, queimando tudo até conseguir plantar mudas de palmeira. Em Sumatra, não existe nenhum título de propriedade da terra, e sim apenas títulos costumeiros, que não têm importância alguma diante das licenças que são outorgadas pelo governo regional. A BBU e a BAY, que são filiais da Duta Palma, devastaram por sua vez não só as florestas mais afastadas, como também aquelas que os aldeões costumavam utilizar.

As aldeias são constituídas por casas que se sucedem ao longo de quilômetros, à beira da estrada estreita que é percorrida num fluxo incessante e perigoso por motocicletas, bicicletas, carros, caminhões, pedestres. No quintal de cada uma das habitações ficam as plantações de cada família; mais adiante estão as terras comunitárias onde os camponeses cultivam, geralmente por conta própria, palmeiras de óleo; e, mais distante, fica a floresta. “Quando nós percebemos que as companhias estavam tomando conta das terras, apresentamos um relatório para o chefe do distrito”, explica Raja Anis, um líder cultural de Kuala Melia, uma aldeia vizinha de Kuala Cenaku. “Nós não obtivemos nenhuma resposta. Então, nós escrevemos para outros oficiais, no Parlamento regional. Mas a resposta também não veio. Um outro relatório foi enviado para Jacarta. Novamente sem nenhum sucesso. Concluímos disso que este é um sistema de poder colonial. As autoridades deveriam supostamente cuidar das pessoas e do bem-estar comum, mas elas não o fazem”.

Enquanto isso, a BBU e a BAY continuavam ocupando inexoravelmente as terras e queimando as árvores. Uma vez que o terreno é constituído por turfa, o fogo nele pode durar algumas semanas. Em várias ocasiões, a fumaça cobriu as aldeias, irritando os olhos dos motociclistas e provocando surtos de tosse nas crianças. Finalmente, os aldeões conseguiram obter, em janeiro de 2007, uma carta do chefe de um distrito – situado em Pekanbaru, a capital da província de Riau, a 185 km de Kuala Cenaku: ela intimava as companhias a não usurparem as terras em prejuízo dos camponeses. Mas isso não resultou em mudança alguma.

Esta batalha do pote de terra contra o pote de ferro conheceu o seu ápice em 16 de abril de 2007. O seu principal ator foi um homem de rosto emaciado, que articula lentamente as suas palavras, que nos recebe em sua casa de pranchas, cujo teto é feito de chapa de ferro ondulada, iluminada por duas lâmpadas, as quais são alimentadas por um gerador a diesel. Em várias oportunidades, os aldeões haviam levado a carta do chefe de distrito para as companhias, as quais haviam instalado o seu acampamento nos terrenos florestais. Inicialmente, a única resposta que eles receberam era de que ninguém havia recebido aquela carta. Mais tarde, foi-lhes dito que apenas o patrão poderia responder e que era preciso esperar até que ele chegasse. No final de três semanas, o patrão ainda não havia chegado.

“Naquele dia, as pessoas perderam a paciência”, conta Sucipto, que foi o chefe do distrito de Kuala Mulia de 1995 até 2005, “e todos resolveram marchar até o acampamento. Aquele ato não contou com nenhuma organização. Eles seguiram andando, decididos. No caminho, outros aldeões se juntaram a eles. Eu estava atrasado quando os alcancei, e vi que formávamos então um grupo de 200. No acampamento, quase todos os operários haviam fugido. Nós tomamos a decisão de remover as escavadeiras até a aldeia. Os operadores daquelas máquinas obedeceram, eles as dirigiram e nós os acompanhamos andando”. Na aldeia, os camponeses optaram por manter as máquinas sob vigilância durante a noite. Eles organizam turnos de guarda, fazem fogueiras, enquanto as mulheres lhes trazem comida.

No dia seguinte, eles deixam os operadores levarem as suas máquinas de volta para o acampamento. A polícia chega: uma vez que Sucipto havia liderado o ato, os policiais lhe pedem para assinar uma carta na qual ele reconhece que os aldeões roubaram os equipamentos e “conduziram atividades anárquicas”. “Para nós”, explica Sucipto, “a polícia é uma enorme besta”. Os aldeões estão com medo, pois ela está do lado dos oficiais e, portanto, das companhias. Dois dias mais tarde, Sucipto é convocado a se apresentar no posto de polícia de Rengat, onde ele é encarcerado. Uma mobilização consegue fazê-lo sair de lá depois de cinco dias. Mas, nesse meio tempo, a sua mulher, que sofria de uma doença no coração, é acometida de um ataque cardíaco ao ser informada de que o seu marido está preso. Ela morre no hospital, um dia depois da sua liberação.

Desde então, Sucipto retomou a sua vida de camponês. Ele segue criando os seus três meninos e costuma ir até a sua plantação de bicicleta. E as companhias prosseguiram as suas atividades como antes. Entretanto, o caso chamou as atenções das associações ecologistas indonésias, e depois de Greenpeace, que esteve na região durante algumas semanas para instalar um posto de observação, durante o outono. Mas, em dezembro, a ONG internacional foi embora. Com isso, os aldeões estão prevendo, movidos pelo fatalismo que caracteriza as pessoas desprovidas de qualquer poder, que as companhias irão concluir a sua empreitada. Então, quando esta reportagem resolve telefonar para um representante da companhia, que desliga na sua cara. Os oficiais recusam-se a responder a perguntas, ou a atender às ligações.

Sem dúvida, deve ser possível encontrar outras maneiras de cultivar a palmeira de óleo, assim como outros tipos de relacionamento com as populações. “Nós precisamos desenvolver o nosso país”, explica assim Daud Dharsono, um diretor da PT Smart, uma importante companhia que cultiva 350.000 hectares em Sumatra, recorrendo a métodos que permitem limitar o impacto ecológico das plantações. “Mas é possível fazer isso sem destruir tudo”. A PT Smart participou, junto com outras companhias, de uma mesa redonda sobre a palmeira de óleo, durante a qual foi tomada a decisão, em novembro, de não mais desenvolver as culturas em detrimento das florestas primárias, mas sim, apenas em florestas que já vêm sendo exploradas ou em terras deterioradas. Mas, nem todas as companhias participaram daquela mesa redonda. A demanda é tão forte que essas palmeiras agora passaram a ser desenvolvidas em Bornéu e na Papuásia. Em Kuala Cenaku, a Duta Palma continua com a sua obra.

matéria enviada pelo Fórum Carajás