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Artigo

Resposta a Bernardo Kucinsk, artigo de Roberto Malvezzi (Gogó)

[EcoDebate] Diante das afirmações do jornalista Bernardo Kucinsk no artigo “Natal da discórdia”, publicado na ADITAL, particularmente porque cita a CPT várias vezes, decidi fazer uma resposta às suas afirmações, no sentido de esclarecer os leitores. Não nos interessa alimentar esse tipo de debate personalizado, porque ele retira o foco da questão principal. Por isso, vou responder apenas aquelas questões que podem confundir os leitores, evitando ao máximo qualquer resposta ao que me parece mais provocação que argumento. Faço isso de forma didática, ponto por ponto, nas questões que merecem ou exigem uma resposta.

1- Sei que não quero entrar na história como um dos linchadores de Lula e de um governo que eu ajudei a eleger. Como disse Maria da Conceição Tavares, parodiando a confusão que se estabeleceu no Chile no governo Allende: “É um governo de merda, mas é o nosso governo de merda.”

Resposta:

Essa colocação é fundamental para entender toda argumentação do autor posteriormente. Ele mesmo se coloca numa moldura governista que orientará todos seus argumentos. Para nós, o governismo incondicional e cego é inaceitável. Ao rei tudo, menos a dignidade. O exercício crítico da razão é sempre necessário.

Nós também votamos em Lula, também no segundo mandato. Aqui está nossa diferença: para nós, ter votado nele, não significa entregar-lhe carta branca para nada. Ele era o melhor no conjunto. Já sabíamos que a obra voltaria. E nós estamos novamente a enfrentá-la. Questões sérias e conflitivas como essa podem ser dirimidas com outros instrumentos democráticos, por exemplo, o plebiscito. Chávez e Morales, acusados de ditadores pela direita brasileira, têm usado esses instrumentos constantemente.

2 – Minha segunda divergência diz respeito à dimensão política da luta pela defesa do meio ambiente. Uma coisa é levar essa luta debaixo do tacão de um regime militar, outra coisa é no interior de um governo democrático, sensível às demandas populares e sobre o qual temos enorme influência, em especial nos aparelhos de Estado que cuidam do meio ambiente e dos programas sociais.

Resposta:

Aqui na região do sertão baiano enfrentamos o regime militar na construção da barragem de Sobradinho. Era área de segurança nacional, prefeitos nomeados, ACM governador da Bahia. Foram anos terríveis. Entretanto, nem naquela época vimos o que vimos agora: Infantaria do Exército nas estradas, tomando conta dos canteiros de obras, da barragem de Sobradinho, armada de três tanques de guerra para controlar pescadores, comunidades ribeirinhas, sem terra, enfim, gente do povo que vota em Lula. Portanto, foi inevitável sentir os calafrios do regime militar pela presença ostensiva do Exército. A obra está militarizada e essa presença nos dá o teor do governo.

3 – Divirjo também da doutrina de muitos movimentos ambientalistas. Quando fui procurado pelo Greenpeace para participar de sua fundação no Brasil, lá pelos anos 80, instintivamente recusei. Digo instintivamente porque somente há poucos meses topei com a teoria da minha recusa. Num pequeno artigo no Jornal do Brasil, Emir Sader dizia ser impossível tratar temas como a economia, sem considerar conceitos básicos da economia política, entre os quais o conceito de “imperialismo”.

É isso. Uma coisa é uma agenda ambientalista endógena, concebida por nós, que considere nosso estágio de desenvolvimento, nossas necessidades básicas e nossa correlação interna de forças. Outra coisa é aceitar acriticamente a agenda que vem de fora. Ou não perceber que também na luta ambientalista incidem o fator de classe e o fator imperialismo. O Norte com renda per capita de 30 mil dólares pode propugnar até mesmo crescimento zero ou de emissão zero de CO2. O Sul com renda per capita de 3 mil dólares tem que se orientar necessariamente pelo conceito do desenvolvimento sustentado, aquele que preserva o meio ambiente e os recursos naturais, mas garantindo as necessidades básicas da população presente.

Resposta:

Aqui está nossa divergência fundamental. Essa afirmativa é longa e no fundo defende o desenvolvimentismo do governo atual, primitivo e predador. A idéia que é “preciso destruir para desenvolver” não encontra eco mais em nenhum lugar do mundo, a não ser aonde as mentes ainda não entraram no século XXI. O próprio conceito de “desenvolvimento sustentável” está em crise. Foi apropriado pelo capitalismo. Estamos num momento da história onde a defesa da comunidade da vida se impõe, ou iremos ao caos. Diante da realidade debatida em Bali, do aquecimento global, da diminuição de solos e água per capta, da erosão da biodiversidade, por bem ou por mal, teremos que reinventar o modelo civilizatório. Não é mais escolha, é impasse objetivo.

O Brasil tem água, tem solos, tem biodiversidade, múltiplas fontes energéticas, mas tem uma inércia histórica predadora e concentradora de bens e riquezas. Precisamos de um desenvolvimento de outra qualidade, que invista em educação, no aproveitamento da biodiversidade, no manejo cuidadoso dos solos, em uma nova cultura da água. Sem esses elementos básicos iremos ao abismo.

4 – Uma parte do movimento ambientalista brasileiro não se orienta pelo conceito do desenvolvimento sustentado, e sim por um paradigma criado por sociedades já bem abastecidas em tudo, e que preferem atribuir ao nosso território o papel de uma gigantesca reserva florestal, indígena e de biodiversidade do planeta Terra. Não estão nem aí para as necessidades básicas da população brasileira.

Para atender essas necessidades e nos tornarmos uma sociedade minimamente civilizada, precisamos construir cinco milhões de moradias, e levar a elas água, eletricidade e esgoto. Precisamos criar pelo menos trinta milhões de empregos. Erguer dezenas de escolas, hospitais e postos do Ibama e da Polícia Federal. Implantar vastas redes de transporte de massa, metrôs, hidrovias e ferrovias, tudo isso obedecendo padrões avançados de controle ambiental.

Os números são todos grandes. Mas temos recursos para isso. Nunca se ganhou tanto dinheiro no país com as exportações. É preciso lutar por políticas públicas que aloquem esses recursos em benefício da população, Mas os ambientalistas foram tomados pela cultura do não. Nada pode ser feito e, se for grande, é ainda mais condenável. Temos uma frente nacional “contra” os transgênicos, outra contra o projeto do São Francisco, e logo, logo teremos, se é que já não temos, a frente nacional contra as barragens, contra o uso de células-tronco e contra as estradas de integração continental. É o autismo frente às carências do povão, o fundamentalismo na luta pelo meio ambiente e o ludismo na reação contra os avanços da biotecnologia.

Deveríamos ter, isso sim, uma frente nacional pelo zoneamento agrícola, outra pelo imposto sobre a exportação de commodities, e mais outra pela atualização dos índices de produtividade agrícola (sem o que é impossível a desapropriação para fins de reforma agrária). Uma frente nacional pela ocupação ordenada da Amazônia, outra pela integração continental. Tínhamos que pressionar pela recuperação das pequenas hidrelétricas, desativadas pelo regime militar, e lutar ao mesmo tempo pela construção das de maior porte, por gerarem energia limpa, renovável e barata, a um baixo custo social.

Resposta:

Em parte concordamos com o autor. Precisamos e queremos água, moradia digna, enfim, o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, tanto os civis, quanto os DHESCAs. Poderia acrescentar que temos enorme potencial solar de energia, de biomassa e eólica. Esse “mixer” de nossas fontes energéticas é necessário e inadiável. Aqui em Sobradinho vai ser construído o primeiro grande parque eólico brasileiro, com 100 torres. É privado, mas poderia ser da CHESF ou de outra empresa pública.

Entretanto, não dá mais para justificar hidroelétricas, usinas atômicas, transgenia a qualquer preço. O mundo de hoje exige novos parâmetros ambientais e sociais e cada obra já exige que essa equação do econômico seja feita junto com o social e o ambiental. A economia isolada do raciocínio de conjunto já está superada na história, embora permaneça pela força inerte do capital e de quem o comanda.

5 – Igreja, Transposição, Apodi, Pecém, etc.

Resposta:

Aqui o texto é muito longo, as afirmações muito desconexas e de toda ordem. Em primeiro o autor repete a linguagem pronta do governo. Pessoalmente, tive debates com Ciro Gomes sobre o projeto, de 3 horas na Universidade Federal Fluminente. Só queria dizer que a linguagem da racionalidade moderna jamais foi capaz de decifrar a dimensão social e política de fenômenos ditos religiosos: Canudos, Caldeirão, Contestado, Pe. Cícero, Ibiapina, etc. Entretanto, o povo os entende. O gesto de Frei Luiz de sentar-se numa cadeira, com seu hábito franciscano, tomando apenas água do São Francisco, convulsiona o país como nenhum outro gesto. Ele não atenta contra a vida dos outros. Põe em risco a sua própria. E aponta para problemas maiores que o país terá que enfrentar agora como para o futuro. Cada pessoa que tem filhos, ao pensar em que planeta eles viverão, em que país eles viverão, em que Nordeste eles viverão, como será a situação do São Francisco e de todo o sertão, entende o gesto dele.

Questões geográficas virão e destino das águas virão à frente.

6 – Lembro ainda que, por ordem do presidente, o ministro Ciro Gomes agendou uma rodada de discussões com Dom Luiz , como parte do acordo para acabar com sua primeira greve de fome. Mas Dom Luiz não compareceu. Foi ele que não quis discutir.

Resposta:

É fácil repetir a cartilha governista. Tentamos inúmeras vezes colocar a sociedade brasileira ao par da questão, inclusive de sua conflitividade. O governo chegou com um projeto pronto, sem jamais discutir outras alternativas. Daí o impasse. Frei Luiz acordou com Wagner o debate sobre alternativas que nunca prosperou. Aguardou dois anos, protocolou nova carta ao Lula que sequer respondeu. Aqui mais uma diferença: o governo não está lidando com um mercenário que se compra e se vende em negociatas. Ele não é vinculado a nenhum grupo econômico, nenhum grupo político. Olha apenas para o rio, para o semi-árido e para seu povo. O governo não sabe com quem está lidando e tenta apenas desqualificá-lo. Num primeiro momento isso é até possível, mas o próprio processo da obra vai afunilando o conflito, que será permanente.

Frei Luiz não queria conversar com Ciro. Queria conversar diretamente com Lula, para não ter suas argumentações filtradas. Conseguiu apenas uma vez. O governo falou em prosseguir nos diálogos. Organizou um único evento, antes das eleições. Ganhou o tempo necessário e depois se esqueceu de todos os compromissos. Daí a volta de Frei Luiz.

Quanto aos diálogos, audiências, etc., cito apenas um exemplo. A audiência pública sobre a obra que deveria ser feita em Bom Jesus da Lapa, foi feita a 800 km, em Salvador, num hotel cinco estrelas, em plena quinta-feira de carnaval. Esse é o diálogo estabelecido pelo governo, essa foi a qualidade das audiências públicas.

7 – O bispo escreve e repete que 70% da água transposta vai para uso industrial, 26% para uso agrícola e 4% para a população difusa. Isso provaria que o projeto foi feito para servir grandes empreendimentos agropecuários e industriais. Mas a verdade é que as águas vão perenizar os mesmos rios e abastecer exatamente os mesmos sistemas municipais, açudes e sabespes, atualmente em operação, e que já sofrem crises periódicas de abastecimento mesmo na ausência de secas.

Não encontrei no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) os números do bispo, por mais que procurasse. Encontrei, sim, este trecho: “A demanda urbana das áreas que serão beneficiadas pelo empreendimento foi avaliada em aproximadamente 38 metros cúbicos por segundo no ano de 2025. Desse total, cerca de 24 metros cúbicos por segundo correspondem ao consumo humano e 14 metros cúbicos à demanda industrial”. Portanto, pelo menos em relação à proporção demanda humana-demanda industrial, o bispo está errado. Diz ainda o Rima: “o projeto foi planejado procurando atender o maior número de pessoas possível”.

Confira em www.mi.gov.br/saofrancisco/integracao/rima.asp

Resposta:

Procure nesse mesmo site a “Justificativa do Projeto”. Leia com atenção. Lá você encontrará os dados que costumamos citar, retirados do próprio projeto. Leia ainda mais atentamente e você encontrará no texto a justificativa última do projeto : “água para abastecimento humano há (na região), mas o capital não virá se o uso econômico não estiver garantido”.

Quanto às “sabespes”, claro que o autor quer dizer serviços de abastecimento urbano, já que essa é a empresa de São Paulo. Em todo caso, saiba que se as adutoras não forem feitas – e elas não estão previstas – a água apenas irá de uma calha de rio para outras calhas sem aproveitamento humano.

8 – A adutora não foi feita para abastecer nenhum projeto especifico de agrobusiness ou industrial; ela reforça as adutoras e açudes já existentes, dando ao Nordeste uma perspectiva de longo prazo de desenvolvimento econômico, urbano, agrícola. O bispo não menciona quais seriam esses projetos gigantes. Procurei exaustivamente e acabei encontrando a origem da desinformação: um documento da Comissão Pastoral da Terra, hoje a principal produtora de falácias contra o projeto, ao ponto de desbancar a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), que não admitia perder uma gota do rio que aciona seus geradores em Paulo Afonso.

A CPT alega que a adutora “vai servir para a siderúrgica do Pecém, vai servir para a agroindústria do Apodi”. Ora, a siderurgia do Pecém fica próxima ao litoral, no Ceará, distante centenas de quilômetros do ramo Norte do projeto, que mal entra no Ceará, desviando-se em direção à Paraíba e ao Rio Grande do Norte, depois de reforçar o Riacho dos Porcos. Desse riacho até Pecém são centenas de quilômetros de rios que até mudam de nome e passam por açudes diversos. Não tem nada a ver com a siderúrgica, que já tem abastecimento local assegurado de 2 metros cúbicos por segundo, para um consumo de apenas 1,73 metros cúbicos por segundo.

Esses dados foram admitidos pela Agência Brasil de Fato, do MST (www.brasildefato.com.br). Como contradizem o argumento da CPT, a agência alega que, no futuro, quando outras indústrias forem atraídas pela siderúrgica, “caso o complexo prospere, a demanda de água superará a oferta atual”. Notem o ato falho na utilização da palavra “prospere”. Eles não querem que nada prospere. Também omitem que a siderúrgica vai produzir placas grossas, para exportação, e não as placas finas que atrairiam empresas metalúrgicas de processamento.

Mais falacioso ainda é chamar a agricultura de Apodi de agrobusiness, ao modo de um palavrão que desclassifica tudo. Apodi é uma história de sucesso e exuberância agrícola e grande diversidade de produção e formas de propriedade. Ali cresce, graças à Embrapa, a mais produtiva variedade de acerola. Ali o governo federal está implantando um projeto específico de financiamento da agricultura familiar. Ali existem seis assentamentos agrícolas e três cooperativas de produtores. Ali o governo instalou também um projeto de três minifábricas familiares para o processamento da castanha do caju, e um outro que vai beneficiar 400 pequenos produtores de mel. Um único projeto de irrigação em andamento no Apodi, com água pressurizada, vai atender a mais de 200 agricultores.

Resposta:

Primeiro, não é uma adutora. Adutora é o que defendemos para suplementar a necessidade básica da Paraíba para consumo humano. Adutoras são as obras do Atlas do Nordeste que defendemos para todo semi-árido brasileiro. São dois gigantescos canais que vão levar águas do São Francisco para calhas de rios da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. O Pernambuco não pode ser considerado transposição, já que toda a região do sertão pernambucano está no Vale do São Francisco.

Quanto ao Pecém, ele receberá água do Castanhão, feito para receber parte das águas transpostas. Dele sai um canal (Eixão) que levará a água até o Pecém. Ali a água será consumida pelo complexo industrial a ser instalado, inclusive a siderurgia.

A Chapada do Apodi também receberá água do São Francisco para irrigação. Chamar o que existe no Apodi de “maravilha” é questão de gosto. Aliás, em todo rio Grande do Norte, várias empresas estão falidas porque esgotaram os recursos hídricos do subsolo. O maior exemplo é a MAISA.

Curioso, o próprio autor reconhece que a obra tem finalidade econômica, ao dizer “dando ao Nordeste uma perspectiva de longo prazo de desenvolvimento econômico, urbano, agrícola”. Entenda essa confusão!

9 -Todas essas falácias e mais algumas foram inventadas pela CPT depois que se desmoralizou o argumento principal anterior de que a adutora ia secar o Rio São Francisco. Ocorre que, em julho de 2004, depois de intensos debates técnicos, o governo inverteu a lógica do antigo projeto pelo qual as águas do São Francisco seriam transpostas para os sistemas do semi-árido sempre que seus açudes estivessem baixos, sem levar em conta o nível da represa de Sobradinho. Ficou decidido que será retirada uma quantidade mínima para garantir o consumo humano, e só quando Sobradinho tiver excesso de água, a captação será maior. Na sua nova formulação são retirados 26,4 metros cúbicos por segundo, cerca de 1% da vazão no local da captação, e somente quando Sobradinho estiver vertendo, ou seja, botando fora excesso de água, a captação pode aumentar, mesmo assim até o limite de 87,9 metros cúbicos. O Rima estima que, na média anual, a perda do rio vai ficar em 65 metros cúbicos por segundo.

Resposta:

Em primeiro, a CPT nunca afirmou que o rio vai secar. Agora, sem transposição, o lago de Sobradinho está com apenas 13% de sua capacidade. As termoelétricas tiveram que ser acionadas para garantir a energia que o rio já não sustenta. No ano do apagão chegou a 6%. Mais 1% e todo sistema CHESF teria entrado em colapso. Queremos apenas que seja feito o estudo de impacto ambiental da obra na calha do rio. Não foi feito. O EIA-RIMA citado estudou apenas o impacto da obra da tomada de água para frente, não na calha do rio.

Esses números citados pelo jornalista são os números do marketing do governo, repetidos exaustivamente, “até que se tornem verdade”, como já dizia Goebbels.

Na verdade o governo não diz que dos 1.850 metros cúbicos em média emanados de Sobradinho, aproximadamente 1.500 pertencem à Chesf para gerar a energia que abastece todo o Nordeste. Só o Ceará recebe, em forma de energia, cerca de 500 metros cúbicos de água por segundo do São Francisco. É uma transposição, em forma de energia. Se a água não passar por todas as turbinas, de Sobradinho a Xingó, essa energia não será gerada. Quando cai em Xingó, não tem mais retorno. Portanto, o que resta para todos os outros usos, em média, são 350 metros cúbicos por segundo. Desses 335 já estão outorgados. Restam apenas 25, concedidos em outorga (26), para a transposição, podendo chegar em média a mais de 60 e nos picos a 127 metros cúbicos por segundo. Essa é a capacidade dos dois canais juntos. Repare que quando o cálculo é sobre os 350 metros cúbicos restantes, 60 metros cúbicos em média da transposição representam quase 20% da água disponível no São Francisco.

Existem muitos outros números que podem ser citados que não cabe aqui e agora. O autor, como já se situara no início, repete linha por linha toda argumentação governista.

10 – Sem o argumento de que o rio vai secar, os padres passaram a argumentar que há um outro projeto, o Átlas do Nordeste, elaborado pela ANA, mais barato, custando apenas R$ 3,6 bilhões, metade do custo do São Francisco, e beneficiando três vezes mais gente, 44 milhões. É tudo falso, no atacado e no varejo. Ou um “equívoco”, como diz educadamente o presidente da ANA, José Machado: “Em primeiro lugar o Átlas não pode ser considerado um programa ou projeto. É, na verdade, um portfólio de eficientes soluções técnicas para serem eventualmente financiadas. Não visou equacionar o problema da segurança hídrica do Nordeste, uma vez que não se tratou do atendimento de usos múltiplos da água, como a produção de alimentos e irrigação. Também não foi considerado o abastecimento das sedes municipais com menos de cinco mil habitantes, dos distritos, vilas e núcleos rurais. Por outro lado, o projeto de Integração do São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF) é um projeto de desenvolvimento regional com perspectiva de conseguir benefícios que se estendam para além de 2025. O Átlas e o PISF são, pois, iniciativas distintas, em sua gênese, seus objetivos e em sua área de abrangência. Não são conflitantes”.

Resposta:

Em primeiro, nunca dissemos que o rio vai secar. Apenas exigimos que seja feito o estudo de impacto ambiental na calha do rio. O EIA-RIMA realizado aborda apenas da tomada de água para frente. Por isso, nem nós sabemos, nem o governo sabe, qual será esse impacto. Essa é uma das ações do Ministério Público pendentes justiça.

Em segundo, estive pessoalmente em vários debates com técnicos da Agência Nacional de Águas sobre o Atlas. A última vez foi na sede da CNBB, em Brasília, já que eles vieram a convite do próprio governo. Mais uma vez a sutileza dos técnicos predominou e constrangeu o Executivo. A sutileza da ANA não é captada pelos defensores da transposição. Talvez nem possam considerar o Atlas com a devida seriedade. A fala do Professor Lotufo, coordenador do Atlas é sempre clara: “a transposição tem finalidade econômica, o Atlas tem a finalidade de abastecimento humano”. Oras, não era transposição que iria acabar com a seca e a sede? Por que então a necessidade do Atlas? Qualquer pessoa de bom senso pode se fazer essa pergunta.

O Atlas, embora ainda não atinja a totalidade dos municípios abaixo de 5 mil pessoas – será refinado agora para todos os municípios e inicia-se o Atlas da região Sul – abrange 1356 municípios do semi-árido e fora dele, contra apenas 397 alcançados pela Transposição. Está no Atlas que esses 1356 municípios, nos noves estados do Nordeste e mais o Norte de Minas, abrangem 34 milhões de Nordestinos (www.parnaiba.ana.gov.br/atlas_nordeste/) Somados aos 10 milhões que alcançamos com as obras de captação de água de chuva no meio rural, totalizamos 44 milhões de pessoas. Portanto, os beneficiados são quase 4 vezes mais que os da transposição. É ou não é um fator a ser considerado? Pois o próprio Gilberto Carvalho, sem abrir mão da transposição, na sede da CNBB, afirmou que “sim” e que assinaria em baixo esse debate.

Vale lembrar ainda que na ótica dos direitos humanos, dos princípios de Dublim, em nossa Lei de Recursos Hídricos de 97, a prioridade no uso da água deve ser “saciar a sede humana e a dessedentaçào dos animais”. É apenas isso que estamos exigindo. Não temos medo do uso econômico da água, mas há que se fazer um debate profundo sobre esse uso, particularmente numa região onde apenas 5% dos solos são irrigáveis e temos água para irrigar apenas 2%. Vamos, coerentemente, continuar defendendo a prioridade da sede humana e da dessedentaçào dos animais. Priorizar, significa investir. Diga-me onde está teu orçamento e te direi onde está a tua prioridade.

11- Outro argumento falacioso é o de que o governo preferiu o grande para favorecer as empreiteiras e, por isso, abandonou o projeto das cisternas. Trata-se da falácia da falsa premissa. Não é verdade que o governo preteriu o projeto das cisternas. O governo apoiou com entusiasmo desde o início a proposta da Articulação do Semi-árido, que reúne 700 ONGs, incluindo-a no seu programa de Combate à Fome. Foi criada uma entidade especial para gerir o programa, que recebe recursos do governo e de empresas privadas. Lula inaugurou a primeira cisterna, justamente para dar força ao projeto. Trata-se de um projeto sofisticado, em que os moradores mesmo constroem as cisternas, recebendo treinamento e suporte de uma rede de ONGs. Quando as ONGs, para as quais foram repassados os recursos, se revelaram vagarosas demais, o governo entrou de sola para acelerar o programa, e no último mês de julho o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome lançou o edital 13/07, oferecendo mais R$ 10 milhões a entidades que queiram entrar no programa. A meta de construir um milhão de cisternas está em pé. Já foram construídas 220 mil. Cada cisterna consegue armazenar pelo menos 10.500 litros de água, o suficiente para necessidades básicas de uma família de cinco pessoas. Mas não o bastante para uso agrícola, mesmo no caso da agricultura de subsistência. As cisternas são a solução para água de beber, de banho, de cozinhar e lavar em residências isoladas, esparsas, na área rural, onde os sistemas municipais de abastecimento não chegam. Não podem ser construídas nas cidades. Um projeto complementa de forma ideal o outro.

Resposta:

Francamente, o autor deveria ser mais cuidadoso em suas afirmações, sobretudo num assunto onde revela conhecimentos superficiais e equivocados. Nem quero comentar erros primários, como afirmar que a capacidade é de 10.500 litros. Na verdade, é de 16 mil litros nossa cisterna padrão. Pode chegar a 50 mil, no caso de captação para produção.

Como pessoa – também como CPT – participo do projeto “Um Milhão de Cisternas” desde seu primeiro lote, quando ainda não era projeto. Foi na década de 90, em Campo Alegre de Lourdes, sertão da Bahia, vale do São Francisco, quando não havia mais água sequer para beber. Então soubemos dessa tecnologia “cisterna de placas” inventada por um baiano que agora mora em Sergipe: Nel. Com dinheiro da Oxfam foi construído o primeiro lote de 50. A tecnologia já existia, decidimos massificá-la. Tem sido a luta de nossas vidas, enquanto pessoa e enquanto movimentos sociais. A CPt está em sua gênese. Depois virou programa diocesano (Juzeiro), em 99 virou emblema de todas as ONGs, pastorais e movimento articulados na ASA.

A primeira cisterna não veio do governo Lula, mas de FHC, quando Sarney Filho era ministro do Meio Ambiente. Guardo essa foto comigo, porque no ato da inauguração, ao fundo, está o rio São Francisco. Portanto, se aquela família – exatamente no município de Sobradinho -, apenas dois quilômetros do rio, quis ter água, precisou de uma cisterna de captação de água de chuva.

Nosso trabalho é lento porque vem junto todo processo educacional. As pessoas precisam entender o que é o semi-árido, reaprendê-lo, em todo seu potencial – sugiro meu livro lançado pelo CONFEA/CREA ainda esse ano chamado “Semi-árido: uma Visão Holística”. Está disponível no site www.confea.org.br –. Reaprender o semi-árido é uma de nossas lutas, que gostaríamos que chegasse às escolas, à mídia, ao próprio governo. Infelizmente, a concepção de semi-árido do governo atual é do século passado, das oligarquias nordestinas, onde a “seca” ainda é posta como a questão decisiva. Para nós essa questão já está superada. O Nordeste, particularmente o semi-árido, é uma construção política, social, ideológica, feita pelas oligarquias a partir da indústria da seca, onde se manipula a sede e a fome das multidões como acesso e manutenção de poder. Se a terra concentrada já é poder, terra mais água será poder ao quadrado.

O governo Lula prosseguiu no financiamento do projeto. Não queremos retirar seu mérito nessa questão, nem devemos. Nos assusta retirar esse projeto, num ano eleitoral, das mãos de um trabalho sério e entregá-lo a prefeitos e governadores. É a volta do coronelismo em seu estado puro, ou seja, a manipulação da sede para fins eleitorais. Vamos combater essa opção de forma contundente.

O autor certamente não conhece nosso outro projeto “Uma Terra e Duas Águas”, onde propomos o aproveitamento da água de chuva para produção, com acontece no semi-árido chinês. Nosso semi-árido tem uma pluviosidade anual de 750 bilhões de metros cúbicos e temos infra-estrutura para armazenar apenas 36 bilhões. O resto se perde por evaporação ou por ir diretamente ao mar. Só esse país pode se dar ao luxo de desperdiçar tamanha quantidade de água. O aproveitamento melhor de 2% dessa água, segundo cálculos do Professor Aldo Rebouças, da Usp, seria muito mais vantajoso que qualquer transposição.

12 – Nos últimos documentos da CNBB, em textos de Frei Betto, de Leonardo Boff e outros, surgiu um novo argumento, o de que o projeto “não vai levar água aos índios e quilombolas”. Tanto quilombos quanto aldeamentos indígenas por definição se situam em regiões isoladas, mas com boa oferta de água. Foram os locais onde se fixaram, fugindo dos bandeirantes assassinos e capitães de mato. A esses locais o Luz para Todos está levando eletricidade, que não havia. Mas água já tem.

Resposta:

Nesse parágrafo o autor revela seu total desconhecimento da realidade aqui vivida. Venha conhecer a situação dos índios e quilombolas da Bahia e sertão pernambucano. Talvez seja melhor ver.

13 -Termino perguntando: será que, por trás dessa campanha contra a adutora do São Francisco, não está o ressentimento pela perda do rebanho dos pobres, que hoje tem um cartão Bolsa Família? Ou dos pobres que se libertariam da opressão da falta de água no Nordeste? Ou será que estamos testemunhando o enquadramento da Igreja de Libertação na encíclica Spe Salvi, lançada pelo papa e ex-corregedor da fé, Ratzinger, o mesmo que pediu a expulsão de Leonardo Boff da Igreja? Essa encíclica reafirma a renúncia à libertação terrena em nome de uma salvação na dor e na morte. Além de lembrar vivamente a tragédia de Dom Luiz, é imobilista e reacionária. Deixa o campo da história para as forças conservadoras deitarem e rolarem, impedindo a Igreja de Libertação de disputá-lo com um projeto secular de transformação social.

Resposta:

Vamos perdoar mais uma vez a “adutora”. Nós é que propomos as adutoras do Atlas para todos os estados nordestinos e norte de Minas. Nossas propostas não excluem ninguém nem dividem o Nordeste, nem dividem o Brasil.

Acho essas últimas afirmações mais provocação que argumento. O autor revela profundo desconhecimento da Teologia da Libertação e do que propomos. Queremos água para todos. É nossa luta. O governo Lula – esse sim – desde a Campanha da Fraternidade da Água de 2004 se recusou em admitir a água como direito humano. Já dava os sinais evidentes que prefere a água com finalidade econômica.

Estamos em margens opostas. Continuaremos nossa luta diante de qualquer governo. A CPT apanhou no regime militar, de Sarney a Fernando Henrique e agora do governo Lula. Permaneceremos em nosso lugar, isto é, no meio do povo. Acompanharemos todos os governos a partir desse ponto. Não moramos em palácios, não vivemos em gabinetes, não trabalhamos com verbas públicas para fins institucionais. Queremos uma nova “cultura da água”, do seu aproveitamento minucioso, como bem público, a serviço de todo povo, com prioridade na saciedade da sede humana e da dessedentaçào dos animais. As gerações futuras saberão distinguir perfeitamente quem estava ao lado delas nesse momento da história.

Paro aqui.

Roberto Malvezzi (Gogó) é Assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT, colaborador e articulista do EcoDebate

Nota do EcoDebate: o artigo “Natal da discórdia”, de Bernardo Kucinskin, está disponível in http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=31138