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O Velho Chico e o ingrato retorno a Roma, artigo de Letícia Fernandes Malloy Diniz

[EcoDebate] Os primeiros séculos do Cristianismo são lembrados pelo testemunho de milhares de homens, mulheres e crianças que aceitaram o flagelo em cárceres, nos circos, nos postes, nas fogueiras e nas cruzes. Para os patrícios de então, aquela massa de criaturas resignadas à morte do corpo mais se assemelhava a uma falange de feiticeiros ou de seguidores enfeitiçados, ou mesmo a uma rebelião que reivindicava a igualdade entre senhores e escravos.

Em luta silenciosa, os primeiros representantes da fé cristã renunciavam a si próprios em favor de uma causa que ultrapassava suas vidas e seu tempo. O trabalho silencioso e persistente do Cristianismo primitivo é, até hoje, rememorado, e parece inspirar a conduta de algumas figuras virtuosas que nos são contemporâneas. Dentre estas figuras, está a de Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra (BA) que, há pouco mais de três semanas, entregou-se ao jejum, apelando ao governo federal que arquive, em definitivo, o projeto de transposição das águas do rio São Francisco.

A atitude de Dom Cappio é extrema, como é extrema a lucidez com que vem conduzindo suas escolhas e suas palavras. O religioso escolheu sacrificar-se por uma causa que transcende seus sofrimentos. Optou por calar as necessidades de seu corpo e dar voz à necessidade de revitalização do Velho Chico, à sobrevivência das comunidades ribeirinhas e dos povos indígenas, que retiram das águas de um rio cansado, sua sobrevivência e seu alento. Dom Cappio ultrapassou os protocolos da instituição a que pertence, e fez do rio e do povo sua igreja. Nota-se a semelhança de seus passos com aqueles dos primeiros cristãos, que prescindem de dogmas e de templos erguidos. A fé de Dom Cappio está em seu coração e no coração dos peregrinos que o visitam às margens do rio, sob o Sol que testemunha o ato de renúncia.

Muitos tomam Dom Cappio por alucinado ou pouco solidário aos irmãos do Nordeste Setentrional. Peço-lhe aqui, leitor, o vagar dos olhos e a calma da reflexão. O movimento deflagrado pelo jejum de Dom Cappio está longe de associar-se a propósitos messiânicos, e afasta-se radicalmente do egoísmo no que toca ao compartilhamento das águas. A atitude do bispo é não apenas ponderada como política e técnica, baseada em seu profundo conhecimento do vale do São Francisco, assim como das soluções pertinentes ao sofrimento imposto pela seca. Dom Cappio bem sabe que há possibilidade de distribuição de água para todos, desde que adotadas políticas eficientes e racionais, que não impliquem o martírio do rio.

O escárnio e desprezo com que Dom Cappio vem sendo tratado pelas autoridades responsáveis pelo projeto de transposição do rio São Francisco assemelha-se à atitude de tribunos romanos, sentados à sombra das estátuas de mármore da ambição e da intransigência. Difícil é acreditar que nestas autoridades depositamos tanta esperança. Hoje precisamos conviver com o medo das tropas do exército que se encontram em localidades próximas ao rio São Francisco, como legionários dos primeiros tempos de nossa Era.

Dom Cappio, em sua situação de jejum, já sente a fraqueza do corpo, embora o sorriso não lhe abandone o rosto. Flores de sangue já brotam de suas narinas, denotando sua fragilidade. A situação, grave como se impõe, pede ações prementes. Dos crentes – não importando o nome da fé que alimentam –, espera-se a vigília na oração. Da militância que segue os passos de Dom Cappio, espera-se a voz e a eficiente divulgação de fatos e argumentos que sustentem a luta do frei. E da “águia romana” de Brasília, espera-se competência e sensibilidade para resolver a questão a tempo.

Letícia Fernandes Malloy Diniz, Projeto Manuelzão, UFMG

Artigo enviado por Apolo Heringer Lisboa, Projeto Manuelzão, UFMG