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Artigo

Política Indigenista do Governo Lula é mera retórica. Artigo do vice-presidente do Cimi, Roberto Antonio Liebgott

O ano de 2007 foi marcado conjunturalmente pelo anúncio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que nada mais é do que um amontoado de obras de infra-estrutura e de grandes investimentos agroindustriais da iniciativa privada, com financiamento de recursos públicos. No entanto, este programa serve como uma espécie de chapéu, que faz sombra aos pés de barro das estruturas nas quais estão alicerçadas as políticas públicas direcionadas para a população brasileira que, na sua ampla maioria, é composta de gente que vive abaixo da linha da pobreza. A fórmula de “aceleração” do crescimento parece ser essa: investimentos volumosos em obras que asseguram lucratividade a grandes aglomerados financeiros e um conjunto de ações compensatórias (bolsa escola, bolsa família) para diminuir o impacto causado pela falta de políticas sérias e voltadas para a população.

O foco das obras do PAC não é a população empobrecida, não são aqueles que dependem de assistência pública em saúde, educação, habitação, seguridade social, que deveriam ser entendidas como direito social e não como mercadoria ou produto de consumo. O PAC está direcionado para favorecer setores da agroindústria, dos agro-combustíveis; os setores que pretendem explorar a energia hidráulica (hidrelétricas); o latifúndio da soja, da cana, do gado; a indústria de celulose, como Aracruz e a Votorantim; os grandes bancos como Bradesco, Itaú, HSBC, os que cada vez lucram mais no país. Expandir investimentos, assegurar infra-estrutura para acelerar o crescimento tornou-se quase uma “lei universal” e, para tanto, não são questionados os caminhos e nem mesmo os impactos sociais, ambientais, econômicos e políticos que estas ações irão provocar.

Além dos incentivos às empresas que praticam o plantio (em larga escala) do eucalipto, do pinos e da cana-de-açucar, promovendo um verdadeiro “deserto verde” em amplas regiões do sul, sudeste e centro-oeste do país, o governo está agora oficializando a privatização das florestas na Amazônia, entregando-as para a exploração de grandes madeireiras. O argumento é de que esta exploração será feita através de planos de manejo auto-sustentáveis. De saída, poderíamos indagar sobre as estruturas que o governo pretende colocar a serviço desse controle e manejo, ou será que devemos confiar no bom senso e na consciência ambiental de empresas que visam acima de qualquer coisa, assegurar os próprios lucros e os de seus acionistas? Nestas florestas habitam diversos povos indígenas, alguns deles vivendo em situação de isolamento, devendo, portanto, ser protegidos pelo governo. Suas vidas são inegavelmente ameaçadas pelo avanço descomunal da exploração madeireira, que está sendo oficializada pelo Ministério do Meio Ambiente.

O que isso tem a ver com a política indigenista do governo Lula? Vale lembrar que o Conselho Indigenista Missionário divulgou recentemente um balanço da política indigenista em 2007. Neste balanço, o Cimi aponta os graves problemas que afetam os povos indígenas e todos estão diretamente relacionados ao PAC. O primeiro diz respeito à questão fundiária: existe uma completa paralisação nos procedimentos de demarcação e desintrusão das terras indígenas, tendência que se observa desde o início do primeiro mandato do presidente Lula, e que se intensifica agora, porque muitos dos investimentos do PAC incidem sobre essas terras de norte a sul do país. Diante disso, o governo se omite, negligencia e descumpre o que determina a Constituição Federal e deixa de aplicar os recursos que deveriam ser destinados à demarcação, proteção e fiscalização das áreas indígenas. No ano de 2007 o investimento federal, no que tange a esta demanda, foi quase zero. Some-se a isso o fato da Funai estar completamente sucateada em termos de infra-estrutura e de pessoal qualificado para o exercício das obrigações administrativas, técnicas e de execução de serviços junto às comunidades indígenas.

O segundo grave problema é a violência que tem assolado dramaticamente os povos indígenas. Neste ano, até o final do mês de novembro, foram assassinadas 61 pessoas e somente no Mato Grosso do Sul foram mortas 38, sem contar as tentativas de assassinatos, as agressões, o confinamento em pequenos acampamentos na beira de estradas, ou no interior de fazendas. E ainda há de se destacar a exploração da mão de obra indígena nos canaviais onde, recentemente um grupo móvel de fiscalização de trabalho escravo encontrou 820 indígenas que trabalhavam em situação degradante, nas propriedades da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (Agrisul, CBAA e Usina Debrasa). No que se refere à Debrasa, o programa “Globo Rural” da Rede Globo fez propaganda como sendo modelo de empreendimento. Depois se confirmou que a propaganda era enganosa porque nesta usina, os índios não são tratados como cidadãos.

O terceiro problema diz respeito à própria política indigenista, que deveria estar amparada numa legislação que assegure a ampla participação indígena nas discussões, planejamento e execução dos serviços. Para isso, é necessária a aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, que se encontra engavetado no Congresso Nacional desde 1994. A principal razão para que o Estatuto não seja colocado em votação parece ser a opção preferencial que a casa legislativa insiste em manter pelos setores que têm interesses na exploração das terras indígenas, tais como as madeireiras, mineradoras, latifundiários da soja, cana, eucalipto e gado. Os povos indígenas, na ótica dos referidos segmentos, devem ser tratados como empecilhos e/ou como penduricalhos (expressão do presidente da República) a serem removidos pelo poder público e não como sujeitos merecedores de garantias constitucionais.

Com essa concepção em curso, as terras indígenas ficam vulneráveis a aprovação de legislações específicas ou grandes projetos que permitem atividades e ações meramente exploratórias e sem compromisso com a preservação da vida, da natureza e dos direitos dos povos que milenarmente ocupam o território brasileiro. Grave exemplo disso é o que vem acontecendo na região nordeste com a implantação do projeto de transposição do Rio São Francisco. A transposição afronta a legislação ambiental, porque causará impactos irreversíveis ao meio ambiente, afeta a legislação indigenista porque desrespeita a Constituição Federal em seu artigo 231, no qual se determina que as obras planejadas sobre terras indígenas precisam de uma regulamentação especial, além do consentimento do Congresso Nacional e ouvidas as comunidades indígenas. É necessário considerar, principalmente, que a transposição do Rio São Francisco afeta diretamente a vida e os interesses das populações ribeirinhas, das comunidades pobres que dependem dele para a sua subsistência e dos povos indígenas que mantém vínculos históricos, místicos, sagrados e cotidianos com o Rio.

O quarto problema que afeta diretamente a vida dos povos indígenas relaciona-se à política de atenção á saúde. A terceirização e municipalização das ações e serviços na assistência às comunidades é uma afronta a Lei Arouca (Lei 9.836/99) que define pela implementação de um Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, tendo por base os Distritos Sanitários Especiais com autonomia administrativa e financeira. O Subsistema deve estar intrinsecamente ligado ao SUS e que seja gestionado por uma Secretaria Especial vinculada ao Ministério da Saúde, mas com responsabilidade exclusiva pela saúde indígena. Ao contrário disso, o governo insiste em manter convênios terceirizados com ONG’s e prefeituras causando descontentamento nas comunidades indígenas, causando danos administrativos, financeiros e de acompanhamento as necessidades e anseios dos povos indígenas e, acima de tudo, impedindo a efetiva participação destes povos no controle, planejamento e execução dos serviços. Registram-se, em função disso, o alastramento de doenças como hepatite, malária, tuberculose, parasitoses, desnutrição e mortalidade infantil.

Os povos indígenas e as entidades indigenistas propuseram ao governo a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista, mas a proposta foi rejeitada. Em seu lugar, depois de muita pressão do movimento indígena, foi constituída a CNPI (Comissão Nacional de Política Indigenista) que acaba por ter um caráter meramente de discussão e debates. Tanto é assim que, no que se refere à saúde indígena, o Ministério da Saúde emitiu a Portaria de número 2656/2007 sem que o assunto fosse discutido na CNPI. Outro aspecto que demonstra a falta de compromisso do atual governo com a CNPI é o fato de sua base de sustentação no Congresso Nacional ter instalado uma Comissão Especial para discutir o projeto de mineração em terras indígenas, (o PL 1610/96 do senador Romero Jucá) sendo que havia um acordo na CNPI de que esta matéria seria remetida à discussão na proposta de Estatuto dos Povos Indígenas.

Diante de todas essas questões podemos concluir que o atual governo não tem interesse em se indispor com os segmentos que ele considera estratégicos para a sua sustentação enquanto governo, nem com os grupos econômicos que vislumbram grandes rentabilidades financeiras com a política brasileira. Portanto, nesta conjunção de forças entre o capital e o social, os povos indígenas não passam de retórica (em discursos esporádicos) para agradar a alguns segmentos internacionais preocupados com a defesa dos Direitos Humanos no Brasil.

Porto Alegre (RS), 27 de novembro de 2007

Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi