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Notícia

A Terra Mãe e a gestão dos limites

A água, o ar, a fertilidade dos solos, as florestas, a biodiversidade do mundo animal e vegetal estão sempre mais ameaçados pelo fato de a natureza ter-se tornado um objeto de domínio. Os países do Norte e os do Sul, divididos também pelo modo com que lêem a crise dos recursos. Os nossos bens comuns que devemos defender. O artigo é de Carlo Petrini e publicado pelo jornal La Repubblica, 16-11-2007.

“A terra possui recursos suficientes para prover às necessidades de todos, mas não à avidez de alguns”; esta afirmação de Mahatma Gandhi centraliza o coração do problema dos recursos e, ao mesmo tempo, é tanto mais profética. A raiz do termo recursos (em italiano risorse) encontra-se no verbo latino surgere e, como a água brota da terra, a Terra Mãe distribui copiosamente bens para a nossa vida comum.

É evidente que estes bens devem ser utilizados com juízo e parcimônia, não só porque são um patrimônio comum, mas porque a renovabilidade da natureza necessita de períodos mais longos. Mas, o bom senso e a responsabilidade com os processos naturais deixaram o campo para um desfrutamento ilimitado em nome do desenvolvimento e da economia de mercado. O ensinamento de Francis Bacon condicionou durante séculos e até hoje os nossos comportamentos: “A natureza é uma prostituta; nós devemos domá-la, penetrar nos seus segredos e encadeá-la segundo os nossos desejos”. Ter concebido a natureza como um amontoado de matérias-primas a transformar em “riquezas” conduziu-nos a um dramático empobrecimento dos recursos naturais.

Com estas premissas, os maiores queixumes e temores referem-se à perda daqueles recursos que garantem o atual sistema produtivo e energético. O progressivo depauperamento de jazidas de petróleo, carvão e gás natural faz pressagiar uma nova Idade Média. O debate dirige-se, justamente, às energias renováveis, à moderação no consumo, à implementação das pesquisas ou à reproposição de velhas escolhas, como a nuclear.

Existe, em suma, uma predominância dos recursos fósseis tão forte e determinada que põe em segunda linha aquele mundo natural e aqueles bens comuns que estão na base de nossa vida biológica. Enquanto nos países ricos a atenção é direcionada para a crise dos recursos fósseis, nos países do Sul do mundo, ao invés, apavora sobretudo a crise dos recursos vivos.

A contraposição sobre a utilização dos produtos agrícolas para produzir carburantes ou alimentos é significativa. A metade dos postos de trabalho no mundo está ligada à pesca, à agricultura, à economia de colheita e produção do alimento: os recursos vivos são fundamentais para as assim chamadas economias de subsistência.

A água, o ar, a fertilidade dos solos, para não falar do estado de saúde das florestas, dos oceanos, dos rios e da biodiversidade do mundo animal e vegetal estão sempre mais ameaçados pelo fato de a natureza ter-se tornado um objeto de domínio. O balanço final começa a dar-se conta dos ingentes danos provocados aos recursos naturais e ao ecossistema. Há uma teoria que descreve como o homem, convencido de poder dominar a Natureza e de tê-la à sua completa disposição, utilize a técnica para encontrar soluções aos problemas singulares; mas, para cada resposta tecnológica que excogita, eis que se apresentam novos e mais graves problemas, causados precisamente por aquela que devia ser uma solução. Tudo isso é hoje tanto mais adequado ao planeta e parece que nos tenha feito chegar ao limite extremo. A situação impõe bem mais do que uma simples mudança de rota: impõe uma radical mudança de mentalidade, um pensamento mais complexo, mas humildade e sensos de responsabilidade diante do ambiente, dos ecossistemas, da Terra Mãe. Violar os limites de regeneração da natureza significa agravar a escassez dos recursos: os rios vão secando, os solos perdem fertilidade, o ar torna-se irrespirável, as florestas desaparecem. Por que insistir em superar os limites que a terra nos impõe? Assim não se faz senão criar novos problemas e limites, até que será mais possível remediar.

Assim escrevia Ungaretti:

O homem, monótono universo, / crê ampliar seus bens / e pelas suas mãos febris / só saem limites sem fim.

A gestão dos limites torna-se o primeiro exercício de sustentabilidade, não somente ambiental. Mas, para fazê-lo, é preciso renunciar ao crescimento econômico como único critério de progresso humano. Neste quadro, o uso despreocupado dos recursos genéticos abre novas fronteiras, novos riscos e levanta um problema de justiça. Vinte por cento da população mundial utiliza 75 por cento dos recursos globais.

Adquirida, portanto, a consciência dos limites biofísicos, não se pode manter como equânime e justa a atual repartição dos recursos e a crescente privatização dos bens comuns. De um lado, o material genético se tornou um recurso a patentear; do outro lado, após a privatização das terras comuns, assiste-se hoje à privatização maciça dos recursos hídricos e das sementes. Combater contra a privatização dos bens comuns e por sua tutela e valorização é uma escolha de civilização e democracia. Muitos destes bens e destes recursos pertencem de direito às comunidades locais e indígenas, são parte integrante das culturas tradicionais. Dos recursos naturais estas comunidades hauriam alimentos, ervas medicinais, materiais para suas vestimentas e suas habitações; os mesmos recursos naturais assinalaram sua história, sua cultura e sua espiritualidade. Os saberes tradicionais são desde sempre os verdadeiros tutores da biodiversidade, da regeneração e da poupança dos recursos. Quantas vezes os saberes das comunidades indígenas revelaram propriedades naturais utilizadas depois para a produção de medicamentos e cosméticos, sem que se lhes reconhecesse a primogenitura dessas descobertas ou que a indústria lhes pagasse o tributo por deles ter se apropriado… Grande parte da pobreza no mundo é devida a essas formas de apropriação indébita. Patentear as sementes e a biodiversidade, privatizar a água, confiar a agricultura ao monopólio das multinacionais significa dar o golpe de misericórdia às economias de subsistência e ao trabalho feminino nas imensas lavouras do mundo.

Muitos grupos de pessoas no Terceiro mundo, em particular as mulheres das áreas rurais e os povos indígenas, possuem conhecimentos e práticas produtivas absolutamente sustentáveis, capazes de renovar a fertilidade da terra, de conservar a água, de selecionar as sementes. A prosperidade dessas comunidades é diretamente proporcional à capacidade dos seus membros de compartilhar dos recursos com eqüidade e parcimônia.

O desfrutamento ilimitado das tecnociências e do mercado com respeito aos recursos naturais e à sustentabilidade impor-nos-ão refletir sobre o nosso universo cultural ocidental e modernista.
A superioridade da economia sobre a natureza e sobre a cultura está na base da crise dos recursos e da sustentabilidade. Como diz Vandana Shiva: “Num mundo finito, ecologicamente interconectado e sujeito às leis da entropia, os limites naturais precisam ser respeitados. Não podemos depender dos caprichos e das conveniências do capital e das forças de mercado”.

Para entender quanto o dinheiro não seja convertível à vida, talvez seja oportuno recordar a sabedoria dos Nativos americanos, quando afirmavam: “Somente quando tereis abatido a última árvore, pescado o último peixe e contaminado o último rio, só então entendereis que não podeis comer o dinheiro”.

(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo IHU On-line, 27/11/2007 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]