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Nem para divertir a platéia, por Washington Novaes

[O Popular] Em telefonema ao autor destas linhas, o ministro da Agricultura, Reinold Stephanes, esclarece que não é a favor de incentivar o plantio de cana-de-açúcar para produzir álcool em “áreas degradadas” na Amazônia (referia-se à transcrição de uma divergência entre ele e a ministra Marina Silva a propósito desse tema). Mas confirma que o zoneamento ecológico/econômico anunciado pelo presidente da República – para criar regras na expansão do plantio de cana – só deverá acontecer mesmo no segundo semestre de 2008, “porque envolve a Embrapa e outros órgãos”.

É preocupante, por muitas razões. Primeiro, porque os pronunciamentos do presidente da República já implantaram muitas dúvidas. Ele já se referiu à permissão para plantio nessas áreas desmatadas (e quem fiscalizaria a não-expansão fora delas?). Já disse que quem conhece a Amazônia sabe que ela não serve para o plantio de cana. Já afirmou que nada seria permitido na Amazônia e no Pantanal. E enquanto isso, a safra de cana ali já está crescendo (O Globo, 29/7/7), passou de 17,6 milhões de toneladas na safra de 2006 para 19,3 milhões na mais recente. Talvez chegue atrasada a “prioridade máxima” que o ministro Mangabeira Unger quer definir para o “zoneamento econômico/estratégico”, ao mesmo tempo em que diz, na Câmara dos Deputados, que o bioma amazônico “precisa ser um laboratório de experiências biológicas e ambientais”. Um indício está na notícia desta semana, segundo a qual o desmatamento em Mato Grosso aumentou 107% em três meses, comparado com igual período do ano passado – e devido à retomada da expansão da agricultura.

Muita pressa tem a coligação de nove ONGs, liderada pelo Greenpeace, que lançou há poucos dias um pacto para chegar ao desmatamento zero na Amazônia, estabelecendo metas de reduzi-lo em 25% no primeiro ano, outro tanto no segundo, 30% no terceiro e ir aumentando a porcentagem até chegar a zero no sétimo ano. Os proprietários de áreas florestais receberiam compensação de 100 reais por hectare a cada ano que não utilizem a faculdade que a lei lhes dá de desmatar até 20%. E o dinheiro viria de um fundo de R$ 1 bilhão por ano, do qual 70% com recursos da União. O governo não disse o que pensa a respeito. A proposta se seguiu à divulgação de um levantamento do Greenpeace, segundo o qual 90% do desmatamento na Amazônia são ilegais – tomando por base que o Ibama autorizou em 2006/2007 o desmatamento em 936 km2 e ele efetivamente atingiu 9,4 mil km2, segundo estimativa do Ministério do Meio Ambiente.

Talvez o panorama até se agrave. As queimadas em Mato Grosso aumentaram em maio, junho e julho 200%, comparadas com igual período do ano passado. No conjunto da Amazônia, cresceram 30%. E segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) na verdade 47% das áreas florestais já foram desmatadas, ocupadas ou alteradas – quando até aqui só se apontavam 17% de áreas desmatadas. E o avanço da pecuária é a causa principal, segundo estudo divulgado pelo Conselho Estadual de Economia do Distrito Federal. No período 1990 a 2005, a pecuária ocupou ali mais 34,66 milhões de hectares, contra 5,40 milhões da soja, 933 mil do milho, 500 mil do arroz e 430 mil do algodão. Mas a exportação de produtos de madeira também avança: mais 7,8% no primeiro semestre deste ano, embora os números não se refiram apenas à Amazônia e incluam florestas plantadas.

Thomas Lovejoy, uma das principais autoridades em matéria de políticas ambientais, escreveu (Folha de S.Paulo, 25/9/7) que o desmatamento no bioma precisa cessar imediatamente. Não apenas por causa da perda da biodiversidade, mas também para estancar a contribuição do desmatamento e das queimadas ali para as emissões de dióxido de carbono e metano (esse desmatamento de florestas no mundo já contribui com quase 20% das emissões totais de gases que intensificam o efeito estufa). Já o secretário de Meio Ambiente do Amazonas, Virgílio Viana, agita a tese – justa – de que os Estados amazônicos deveriam ser pagos pela conservação de recursos e serviços naturais (Eco 21, agosto de 2007). Que sentido faz, nesse contexto, a notícia de que o BNDES está submetendo a investidores estrangeiros um projeto de implantar uma “ferrovia transamazônica”?

Retorna-se, então, à problemática expansão da cana, na Amazônia ou fora. Num simpósio em Goiânia, promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o representante da Secretaria de Indústria e Comércio do Estado lembrou que é preciso “disciplinar o processo”, fazer um zoneamento socioeconômico, estabelecer distância mínima entre as usinas, evitar a queima de canaviais. Já o ex-ministro Delfim Netto, também em Goiânia, disse que é contra o zoneamento, deve-se deixar que haja “regulação pelo mercado”. Repete resposta que deu em 1971, quando era ministro da Fazenda do governo militar e lhe foi perguntado o que se deveria fazer para conter o desmatamento em larga escala que as políticas do Polocentro e Polonoroeste estavam estimulando. “Nada” – respondeu ele. “Você está querendo inverter a ordem natural dos fatores: primeiro deve vir o faroeste; só depois é que chega o xerife”.

Provavelmente é o que vai acontecer. Segundo a Única, a cooperativa dos produtores da área em São Paulo, se todos os 86 projetos de novas usinas e ampliações chegarem à prática, com investimentos de R$ 17 bilhões, vai haver excedente de 6 bilhões de litros de etanol em 2012/13. De qualquer forma, prevê a Petrobrás que em 2015 estará exportando 4,75 bilhões de litros de álcool.

Há razões, assim, para preocupação. No Centro-Sul, a previsão é de mais 90 usinas. Em Goiás, a área plantada já está crescendo 19% (279,5 mil hectares) e estão aprovados 84 projetos de usinas de álcool; no Brasil, a expansão de área é de 12,3%. Só um dos grupos que está se implantando em Goiás receberá R$ 4 bilhões em incentivos fiscais.

Mas ainda não é tudo. O Estado do Rio de Janeiro está proibindo a queima de canaviais para a colheita. São Paulo tende a seguir o mesmo caminho. Que fará Goiás? Lembra o professor Arnaldo Alves Cardoso, da Unesp (Araraquara), que a queima de palha de cana só no Estado de São Paulo libera 46 mil toneladas de nitrogênio ativo (cada hectare de cana recebe 100 toneladas anuais de fertilizantes por hectare). E ele contribui para a chuva ácida, a contaminação de águas, a perda de biodiversidade, a liberação de gases pelo solo, a contaminação de rios e lagos a grande distância, a proliferação de algas (estudo da ONU diz que chegam aos oceanos 100 milhões de toneladas de nitrogênio por ano).

Portanto, há muito o que discutir, muito a regular. A teoria do xerife já não serve, nem mesmo para divertir platéias incautas.

Washington Novaes é jornalista

(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo jornal O Popular, GO – 18/10/2007