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Artigo

Mudanças climáticas e segurança hídrica, artigo de Mikhail Gorbachev

[Valor Econômico] O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) divulgou recentemente dados alarmantes sobre as conseqüências do aquecimento global em algumas das regiões mais pobres do mundo. Em 2100, entre um e três bilhões de pessoas em todo o mundo deverão sofrer com a escassez de água. O aquecimento global intensificará a evaporação e reduzirá severamente a precipitação pluviométrica – em até 20% no Oriente Médio e na África do Norte -, sendo que a quantidade de água disponível por pessoa possivelmente terá caído à metade em meados deste século nessas regiões.

Essa repentina escassez de um elemento cuja importância simbólica e espiritual iguala a dimensão de seu caráter fundamental para a vida humana provocará tensões e agravará conflitos em todo o mundo. África, Oriente Médio e Ásia Central serão as primeiras a ser expostas. As repercussões, porém, serão sentidas no mundo inteiro.

Mas esse quadro sombrio não é desculpa para apatia ou justificativa para pessimismo. Conflitos podem ser inevitáveis; guerras não. Nossa capacidade de prevenir “guerras hídricas” dependerão de nossa capacidade coletiva de prever tensões e encontrar as soluções técnicas e institucionais para administrar conflitos emergentes. A boa notícia é que tais soluções existem, e estão comprovando sua eficácia diariamente.

Represas – desde que adequadamente dimensionadas e projetadas – podem contribuir para o desenvolvimento humano, ao combater as mudanças climáticas e regular o suprimento de água. Mas, em um novo contexto de escassez, projetos de infra-estrutura a montante em rios internacionais poderão impactar a qualidade ou disponibilidade de água em países vizinhos, provocando, portanto, tensões.

Instituições gerenciadoras de bacias fluviais, como as criadas para os rios Nilo, Niger ou Senegal, contribuem para o diálogo entre países que compartilham recursos hídricos. Ao desenvolver uma visão conjunta para o gerenciamento de cursos d’água internacionais, essas iniciativas de cooperação regional contribuem para uma responsabilidade comum pelo recurso natural, reduzindo, assim, o risco de que disputas envolvendo a água se agravem, a ponto de traduzir-se em violência.

Para a maioria dos cursos d’água internacionais, já existe esse tipo de instituição para o diálogo, embora em diferentes estágios de desenvolvimento e níveis de progresso. Se encararmos seriamente as previsões sobre as mudanças climáticas, a comunidade internacional deveria fortalecer essas iniciativas. Onde não existem, deveriam ser criadas, em parceria com todos os países relevantes. Ajuda Oficial para Desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês) pode criar incentivos à cooperação mediante o financiamento de ações de coleta de dados, proporcionando know-how técnico e condicionando empréstimos a negociações construtivas.

É preciso realismo, visão de longo prazo e força de vontade para que nosso planeta seja poupado de grandes guerras por água

Mas conflitos internacionais originados de disputas por recursos hídricos são apenas um lado da moeda. As mais violentas “guerras hídricas” acontecem, atualmente, no seio dos próprios países, e não entre diferentes nações. A escassez de água é combustível de conflitos étnicos, quando comunidades começam a recear por sua sobrevivência e buscam capturar o recurso. Em Darfur, uma seca recorrente envenenou as relações entre agricultores e criadores de gado nômades, e a guerra que estamos, impotentes, assistindo hoje, acontece na esteira de anos de escala do conflito. O lago Chad corre o risco de cair vítima do mesmo ciclo de violência.

É, portanto, urgente satisfazer as necessidades humanas mais básicas das populações mediante iniciativas de desenvolvimento local. Projetos hídricos rurais que assegurem a essas populações o acesso à água em grandes áreas de terras podem revelar-se instrumentos eficientes para prevenção de conflitos. Corredores garantidos onde o gado possa pastar estão sendo estabelecidos com a ajuda de modernos recursos de monitoração por imagens via satélite, para orientar povos nômades aonde levar seu gado. Tais iniciativas criam oportunidades raras de diálogo e colaboração entre comunidades rivais. A chave é prever a necessidade de ação, antes que as tensões cresçam até um ponto sem retorno.

É também preciso cuidar do consumo de água. A agricultura consome mais de 70% da água em uso no mundo. Pesquisas agronômicas e inovações técnicas são cruciais para maximizar a eficiência hídrica nesse setor – e precisam ser levadas bem mais adiante. Mas combater a escassez implicará, inevitavelmente, rever práticas e políticas agrícolas em todo o mundo para assegurar sua sustentabilidade.

O desafio do desenvolvimento já não consiste unicamente em trazer água para uso agrícola a áreas de escassez. Como demonstra a enorme diminuição do volume hídrico do Mar de Aral, do lago Chad e do Mar Morto, agora é preciso preservar recursos naturais escassos e assegurar sua distribuição eqüitativa para necessidades conflitantes. O uso responsável exige incentivos econômicos adequados. Seja na África Ocidental ou Oriente Médio, na Ásia Central ou na Índia, isso também pode contribuir para atenuar os conflitos em torno da água.

Dada a escala sem precedentes das ameaças, manter tudo como está não é uma opção. A Guerra Fria chegou a um fim pacífico graças a realismo, visão de longo prazo e força de vontade. Essas três qualidades deveriam ser postas em ação para que nosso planeta possa ser poupado de grandes guerras por água. Esse desafio mundial também exige inovações em gerenciamento mundial, sendo essa a razão pela qual defendemos a criação de uma Agência Ambiental da ONU, dotada dos recursos legais e financeiros necessários para enfrentar os desafios iminentes.

A humanidade precisa começar a solucionar esse dilema hídrico. Imobilidade não faz parte da solução.

Mikhail Gorbachev, ex-presidente da União Soviética, é presidente da Fundação Gorbachev, em Moscou, e preside a diretoria da Cruz Verde Internacional.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Valor Econômico – 05/06/2007