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Editorial

Ainda somos um país escravocrata, por Henrique Cortez

[EcoDebate] Mais de um século após a Lei Áurea , continuamos um país escravocrata. Mais de 20 mil pessoas foram libertadas de trabalhos forçados nos últimos dez anos em todo o país.

O governo federal está apertando o cerco aos escravocratas, tendo, em 2005, libertado 3.025 trabalhadores rurais escravizados ou tratados de forma degradante. O estado do Mato Grosso, em 2005, ocupou o primeiro lugar no ranking do trabalho escravo, passando o estado do Pará que mantinha “cativa” há anos a liderança escravocrata.

Em 25/6/2005, por exemplo, O fazendeiro Gilberto Andrade, de 60 anos, foi preso em Paragominas (PA) sob a acusação de manter 18 trabalhadores em regime de escravidão em sua fazenda, Boa-fé-Caru, localizada no município de Carutapera, distante 596 quilômetros de São Luís ( in http://www.estadao.com.br/nacional/noticias/2005/jun/24/149.htm ).

Observem o argumento do escravocrata – “O fazendeiro preso se defendeu dizendo que o regime de escravidão é prática comum no Maranhão e no Pará. “São mais de mil fazendas iguais a minha”, garantiu Andrade, quando era conduzido para a Pedrinhas.”

A defesa é inaceitável, mas o fato descrito pode ser verdadeiro, porque a cada dia surgem novos casos de trabalho escravo e degradante. No EcoDebate, por exemplo, no último ano, foram raras as semanas em que não noticiamos casos de trabalho escravo ou degradante.

Vejamos outro caso emblemático – Em duas usinas, Gameleira e Alcopan, MT, também em junho de 2005, foram libertados pelo Ministério do Trabalho mais de 1600 trabalhadores em condições degradantes. E isto ainda é lamentavelmente comum em usinas de açúcar e álcool e outros segmentos do agronegócio.

Os leitores que se recordam do Pró-Álcool, desde o regime militar, perceberão que muito pouco evoluiu em relação aos direitos dos trabalhadores rurais nos canaviais – dos bóias-frias ao trabalho escravo.

A “lista suja” é um passo importante para erradicar a irresponsabilidade empresarial. Como consumidores/cidadãos devemos exigir que estas empresas criminosas sejam eliminadas do cenário econômico nacional. Caso contrário, os automóveis continuarão a ser abastecidos com uma triste mistura de álcool e sangue. Mas, diante a atual legislação, os escravocratas continuarão impunes, porque apenas as multas não os inibem. É imperativo que sejam criminalmente responsabilizados.

E, como se isto não bastasse, mediante liminares judiciais, diversos escravocratas continuam imunes à lista suja.

Conheçam a lista suja através do site da ong Repórter Brasil (http://www.reporterbrasil.com.br/listasuja/index.php), através da qual e possível identificar as propriedades exploradoras do trabalho escravo através do nome do proprietário, estado, município, nome da propriedade, ramo de atividade ou por meio dos números de documentos como CPF (Cadastro de Pessoa Física) e CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica).

Há quem questione ou não compreenda a preocupação de ambientalistas para com o trabalho escravo, com o argumento que não é um tema ambiental. O assunto nos interessa e preocupa porque é evidentemente sócio-ambiental. Um verdadeiro ambientalista não aceita uma cidadania parcial ou direitos humanos pela metade.

O trabalho escravo, por outro lado, está associado às madeireiras ilegais e à grilagem de terras públicas na “amazônia sem lei”. Nas palavras do gerente do IBAMA em Belém, Marcílio Monteiro – “O crime ambiental é primeiro do iceberg. Atrás vem formação de quadrilha, falsificação de documento, trabalho escravo. Em síntese: é toda uma atividade ilegal que o Ibama, junto com outros órgãos federais que estão atuando na região buscam eliminar”.

Sempre insistimos nas nossas preocupações com o mais do que conhecido consórcio amazônico da devastação: grilagem-madeireiras ilegais-queimadas-pecuária-monocultura da soja. É igualmente importante destacar o crescimento das denúncias de trabalho escravo e degradante na mesma medida da expansão da fronteira agropecuária na amazônia, principalmente porque o trabalho escravo é intensamente utilizado na primeira fase do processo – o desmatamento ilegal.

É importante reafirmar que não falamos da agricultura sustentável e responsável, nem do agronegócio em si, mas dos agrobandidos que se escondem atrás daqueles que produzem de forma correta e responsável.

Defendemos a aprovação da PEC 438 que permite a expropriação, para fins de reforma agrária, das propriedades em que for comprovado trabalho escravo. Defendemos, inclusive, que seja criado uma marco legal igualmente firme com o trabalho escravo urbano. É necessário agir para que a PEC seja votada com urgência. O trabalho escravo é um perverso “subsídio” que a todos prejudica, inclusive os produtores rurais que cumprem a lei.

A imensa maioria dos produtores rurais é social e ambientalmente responsável. Neste sentido nada tem a temer com a PEC 438, que apenas atingirá os escravocratas. Seria importante que a bancada ruralista compreendesse que obstruir o andamento da PEC 438 resulta como contrário aos interesses da maioria dos produtores rurais, apenas servindo para subsidiar a uma minoria criminosa.

Há ainda a necessidade de ampliar o combate ao trabalho escravo nos grandes centros urbanos, com destaque para São Paulo, no qual a mão de obra de imigrantes ilegais é escravizada para fins de produção, destacadamente em confecções.

A exploração do trabalho escravo contamina toda a cadeia produtiva, levando às nossas casas a carne, a madeira e as roupas produzidas a partir do suor escravo. Não temos como saber, mas podemos exigir a partir da lista suja que a cadeia produtiva seja interrompida e que os frigoríficos e lojas não comprem produtos que tenham origem do trabalho degradante.

Aliás, já estamos enfrentando boicotes e restrições não alfandegárias, como a recente iniciativa de parlamentares norte-americanos em imporem restrições à importação de produtos siderúrgicos “contaminados” pelo trabalho escravo e do desmatamento ilegal. É evidente que é uma medida protecionista maquiada com a responsabilidade social, mas somos obrigados a reconhecer que os motivos realmente existem e por nossa responsabilidade.

Como cidadãos devemos pressionar o presidente da Câmara dos Deputados para que a PEC 438 seja retirada da gaveta e colocada em votação. Aliás, colocar a PEC em pauta era o mínimo que se podia esperar de um parlamentar eleito pelo PC do B, como o deputado Aldo Rebelo que, na presidência da Câmara dos Deputados, não fez qualquer tentativa neste sentido.

O país está combatendo o trabalho escravo e os avanços foram significativos, mas ainda há muito que fazer.

Henrique Cortez, henriquecortez@ecodebate.com.br
Ambientalista e coordenador do Portal EcoDebate