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Artigo

Ameaça internacional: quem tem medo dela?, por Lúcio Flávio Pinto

A Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Pará acusou o governo federal de se submeter à pressão do capital estrangeiro, interessado em “engessar economicamente” a Amazônia, com o objetivo de manter a região “como reserva estratégica para o futuro suprimento de suas necessidades de matérias-primas”. O órgão de representação dos produtores rurais está vendo fantasmas ao meio-dia, não a realidade. A sempiterna cobiça internacional tem sido um fantoche, um Judas ou um habeas corpus preventivo para as elites locais, que transferem suas responsabilidades e culpas para fora dos limites territoriais da região e do país. É sempre mais fácil atribuir sua incompetência a um hipotético manietamento imposto a partir de fora do que admitir a própria culpa e procurar corrigi-la.

Obviamente, as grandes potências e corporações estão de olho na Amazônia. Não só de olho: muitas delas já firmaram o pé na região. Essas, não estão nem um pouco interessadas em congelá-la para, dessa forma, guardá-la para o futuro. Querem é que sua produção se incremente, o que está ocorrendo. Nesse ponto, o clamor da Faepa só contribui para aumentar sua satisfação.

Por causa da extração intensivíssima, as reservas de Carajás, previstas inicialmente para durar 400 anos, não chegarão a 100. A fabulosa mina de ouro do igarapé Bahia, que rompeu o domínio secular da mina de Morro Velho, em Minas Gerais, não passou dos primeiros 10 anos. O manganês de Carajás tem seus anos contados com essa escala incrível, de dois milhões de toneladas ao ano. O ritmo da produção de bauxita é tal que logo teremos quatro minas em atividade avassaladora (hoje, apenas uma está em operação), dobrando a produção atual, que coloca o Pará no terceiro lugar mundial.

O Pará garante 15% do alumínio primário consumido pelo Japão e 15% do minério de ferro que alimenta os altos-fornos japoneses. Logo estará respondendo por uns 10% da demanda de ferro da insaciável China. Por um terço da alumina do mundo. Algo equivalente em caulim para revestimento de papéis especiais. Uns 5% do cobre consumido internacionalmente. E por aí em diante.

As grandes corporações querem que esses valiosos bens minerais fiquem dormindo no subsolo? Ora, essa é uma conversa para boi dormir.

O mundo quer uma trégua para que a biodiversidade amazônica, incomparável no planeta, possa ser mais bem estudada. É o que pretende a indústria farmacêutica, uma das mais poderosas do mundo dos negócios (mas, enquanto isso, vai se apossando de informações e conhecimentos). Nós, ao invés de reagir primitivamente, destruindo essa biodiversidade, que, para existir, depende da floresta nativa (só assim ela não se internacionalizará, segundo essa ótica caolha), devíamos estar fazendo a mesma coisa.

Ou seja: investindo maciçamente em pesquisa (o que implica melhorar notavelmente a qualificação humana) para tirar proveito maior desse patrimônio genético centrado na maior massa vegetal da Terra (ainda). Mas preferimos pensar rasteiro e de imediato, fazendo o jogo de terceiros mais espertos (e ferozes). A retórica pode ser de cão-cão de fogo (como dizíamos, quando moleques), mas o raciocínio é infantil, induzido pelo jogo do mercado. Não honra nossa inteligência.

O tom incisivo do documento que a Faepa encaminhou ao “Sul” foi motivado por reportagem do “Fantástico”, da TV Globo, veiculada no dia 11, contra os sojeiros de Santarém. Mas se a Globo entra na onda do Greenpeace, é legítimo deduzir que nossa federação acoberta uma multinacional, a Cargill, e imigrantes empenhados em substituir a diversificada floresta nativa por uma única planta exótica, nessa troca cometendo um insofismável crime de lesa-matemática, já que o bem introduzido vale muito menos do que o potencial do bem eliminado.

Pela lógica da Faepa, não interessa a aritmética: o que importa é produzir cada vez mais matéria-prima, gerando renda e emprego, ainda que vendendo barato o almoço para comprar caro o jantar – e desfalcando a dispensa, eliminando o almoxarifado. Acaba por servir aos interesses daqueles que diz combater: os compradores das matérias-primas amazônicas (vendidas, em regra, como matérias primas, insumos básicos e semi-elaborados, de baixo valor relativo).

A questão essencial, porém, não é de saber quem manipula quem e qual o interesse oculto, seguindo no rastro das inumeráveis teorias conspirativas, que dissipam energias e desviam o raciocínio correto. O fundamental é obrigar os atores e contendores a colocar suas cartas na mesa, impondo-lhes um jogo aberto, leal, em benefício do país e da região. Quem quiser fraudar será afastado desse jogo.

Para criar esse processo demonstrativo, durante o qual a verdade acaba se revelando, é preciso que os brasileiros (e os amazônidas) saibam tanto ou mais sobre a Amazônia quanto os estrangeiros. Não é essa a situação atual. Nem poderia ser diferente, com o ridículo investimento que o governo brasileiro faz em ciência e tecnologia na Amazônia (1% do orçamento nacional, o menor dentre os países emergentes).

Como esse investimento tem retorno mais lento do que um plantio de soja, muitos empresários, bons na retórica e sofríveis na sua aplicação, não lhe dão a atenção devida, que deveria ser ainda maior porque numa região de fronteira como a Amazônia. Daí, talvez, o encanto da federação patronal da agricultura com o zoneamento ecológico-econômico do governo do Estado. Além de ser também para inglês ver, esse zoneamento, tecnicamente, teve como ponto de partida um nível tecnológico que a cartografia brasileira alcançou meio século atrás, com o primeiro mapa do país ao milionésimo.

É verdade que o governo federal é autoritário, arrogante, presunçoso e auto-suficiente quando trata de Amazônia. Mas não é menos verdadeiro que o zoneamento da administração Jatene foi atropelado por Brasília porque se move com a velocidade de uma pocdonemis expansa, nossa muito zen tartaruga, quando caminha em terra. O fundamento teórico do documento de virulento protesto da Faepa guarda semelhança com essa comparação. E vai além, incorporando a lenda do Curupira, não por sagacidade, mas pela inversão real dos pés: quando caminha buscando o futuro, anda para trás.

www.EcoDebate.com.br – artigo originalmente publicado no Jornal Pessoal (Belém-PA), do qual Lúcio Flávio Pinto, jornal@amazon.com.br , é Editor