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Mata Ciliar: Mitos e Verdades, por Osvaldo Ferreira Valente

No momento em que se fala muito sobre revitalização de bacias hidrográficas, em razão da polêmica sobre a transposição do rio São Francisco, vem sempre referência à mata ciliar ou ao reflorestamento ciliar, mas com muita confusão a respeito de suas verdadeiras funções. E como é importantíssimo que os agentes responsáveis pelos trabalhos de revitalização tenham a exata compreensão dos mitos e verdades em torno do assunto, é que estamos nos propondo, aqui, a abrir uma discussão em torno dele.

É verdade que a mata ciliar é capaz de criar um ambiente mais natural em torno dos corpos d’água, colaborando para o estabelecimento e o desenvolvimento de uma área com características interessantes de biodiversidade. É também verdade que ela pode funcionar como um anteparo às ações antrópicas mais diretamente agressivas e criar abrigos importantes para a fauna silvestre e para espécies vegetais típicas da região.

É só parcialmente verdade a decantada capacidade de a mata ciliar proteger as nascentes e os cursos d’água de assoreamentos e contaminações químicas. Isso porque as estreitas faixas de preservação permanente, ao longo de cursos d’água menores, principalmente em regiões montanhosas, não são suficiente para segurar todo o material arrastado por ações degradantes promovidas em toda a superfície da bacia. Por outro lado, o excesso de importância dada à mata ciliar para esse fim pode levar à falsa impressão de que a sua presença seja suficiente para sanar todos os problemas. Aliás, tal comportamento já pode ser facilmente observado em reportagens e entrevistas, quando a mata ciliar é apontada e sugerida como a salvadora de rios degradados. Com relação às contaminações químicas, por exemplo, as ações benéficas da mata ciliar na retenção de substâncias carreadas para as nascentes, córregos e rios são muito variáveis, dependendo tanto das características dos elementos poluentes quanto das propriedades físicas e químicas do perfil do solo até os lençóis subterrâneos. A solução para evitar tais contaminações deve estar muito mais no trabalho de capacitação de produtores rurais para o uso adequado de defensivos agrícolas do que nas especulações sobre as complexas relações entre poluentes e seus deslocamentos através do solo. É mais lógico, é mais técnico, é mais inteligente e mais eficiente, com certeza, pois tira do problema aquele risco de ser transformado em plataforma profissional daqueles que só sabem relacionar e tentar vender utopias.

É um mito a idéia de que a mata ciliar é capaz de aumentar vazões de nascentes e de cursos d’água nas épocas de seca. Tal impressão deve vir da observação de situações localizadas, onde a mata ciliar está integrada a uma bacia hidrográfica que tem a maior parte da superfície coberta de vegetação arbórea e com área de tamanho suficiente para não funcionar como um oásis energético. O ecossistema hidrológico, neste caso, tem um equilíbrio bem natural, com distribuição mais harmônica de energia e com menores possibilidades de sua concentração em superfícies de vegetação estabelecidas em áreas mais úmidas das partes baixas, o que poderia gerar altas taxas de evapotranspiração. Mas hoje os ecossistemas estão em contínua alteração e é utopia pensar em estabelecer grandes áreas de vegetação arbórea nativa na maior parte das regiões brasileiras, já ocupadas com sistemas econômicos de difícil alteração drástica. Há de se achar soluções tecnológicas para que tais sistemas possam ser também sustentáveis do ponto de vista hidrológico. E a verdade hidrológica a ser atendida é que as nascentes e os cursos d’água são alimentados, nos períodos de seca, pelas águas armazenadas nos lençóis subterrâneos que lhes dão suporte e que tais lençóis não estão concentrados abaixo das matas ciliares. Eles estão distribuídos abaixo de outras superfícies da bacia e são alimentados pelas águas de chuva que se infiltram por elas e descem até eles. Com o tempo, as águas dos lençóis equilibrados com as nascentes e com os cursos d’água vão se deslocando em direção aos mesmos, lentamente, o que garante suprimentos ao longo dos períodos de seca. Se a grande parte de um lençol estiver abaixo de uma encosta da bacia, por exemplo, ela passa a ser importante área de infiltração. Se estiver degradada e não for recuperada, de nada adiantará a mata ciliar. Esta, inclusive, poderá colaborar com a diminuição de vazões de seca, pois uma concentração de energia será capaz de manter altas taxas de evapotranspiração em um ambiente em que as raízes das árvores estarão se desenvolvendo em solo sempre úmido. Umidade garantida pelas águas que fluem dos lençóis que se estendem até abaixo das encostas.

Outro grande mito é a crença de que a umidade presente nas áreas ciliares, mesmo nos períodos de seca, seja uma condição originada ali mesmo. As áreas ciliares são, na verdade, áreas de passagem de águas que se deslocam das partes mais altas em direção às nascentes e aos cursos d’água. Ou seja, o ecossistema hidrológico está distribuído por toda a bacia e não é um privilégio das áreas ciliares, que são apenas componentes dos mesmos e assim devem ser tratadas.

Enfim, as pessoas que trabalham com ou falam sobre o assunto não podem incorrer no erro de adicionar, às funções ambientais das matas ciliares, comportamentos hidrológicos que elas não têm, evitando futuras frustrações.

Osvaldo Ferreira Valente, Professor titular aposentado da UFV e especialista em hidrologia e manejo de bacias hidrográficas, ovalente@tdnet.com.br

Publicado no Portal EcoDebate, www.ecodebate.com.br, em 20/01/2006