EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Trilha de fogo: a rota da soja, por Lúcio Flávio Pinto

Quem se der ao trabalho de examinar sucessivas imagens de satélites que captam fontes de calor, não terá dúvida: é de fogo a rota de expansão da soja na Amazônia. Enquanto o desmatamento na região diminuiu 31% do verão de 2004 para o verão de 2005, os focos de queimadas cresceram 1%. A discrepância já é um paradoxo. Mas há outro, muito mais grave: enquanto em Mato Grosso houve uma diminuição de 34% nas queimadas, em todos os Estados que fazem divisa com o maior produtor de soja do mundo, as taxas foram positivas.

O fogo, que encolheu em Mato Grosso, se expandiu por Rondônia, Pará e Acre, seguindo como diretriz as estradas. Quase 10% de todos os 159 mil focos de calor registrados na Amazônia até novembro deste ano se situaram em áreas onde, em 2004, não houve um único incêndio. Isto quer dizer que no ano passado nessas áreas houve grandes desmatamentos. No verão de 2005 a área desmatada, mas ainda “suja” por árvores, galhos e folhas, foi queimada. Logo surgirão os plantios de soja, ocupando enormes extensões contínuas onde, antes, havia floresta.

Mas não apenas soja: certamente essas frentes econômicas também estão à cata de madeira e à formação de pastagens. Visam ainda a apropriação ilegal de terras públicas. Os focos de fogo no interior de reservas indígenas e unidades de conservação cresceram 6%, mesmo ainda sendo as áreas menos suscetíveis à invasão e depredação. Não são invioláveis. Mas se não existissem o drama seria ainda maior. Infelizmente, a questão na Amazônia não é destruir ou não destruir, mas sim a escala e o tempo da destruição. O mestre de obras da região é a irracionalidade.

O sertão que cresce

Em 1972 foi proibida a exportação de madeira em toras da Amazônia. Na mesma época – como ainda hoje – a nação mais poderosa do mundo, os Estados Unidos, ainda se permitia mandar para outros países suas árvores em bruto. Vi com meus próprios olhos, no extremo noroeste, no Oregon, a destruição das últimas grandes concentrações de floresta nativa do país. As toras eram exportadas para o Japão. E ninguém achava nada de anormal nesse fato.

Significava que tínhamos e temos muito melhor consciência do problema? Talvez. Ou nem tanto. Dados estatísticos do IBGE mostram que 55% de toda madeira em tora que circulam pelo Brasil têm origem no Pará. E que apenas 10% dos municípios paraenses respondem por mais de 37% da produção de madeira bruta nacional. Esses municípios estão em áreas do chamado “Arco do Desflorestamento” (que já foi “Arco do Desmatamento” e parece a meio caminho, na sucessão de batismos, de acabar se consagrando como “Arco do Defloramento”).

Mas Óbidos já faz parte dos 14 municípios paraenses com maior produção de toras (em 20 do ranking nacional). Isso significa que a investida sobre novas áreas de floresta continua, ignorando a tal da consciência. Se não mandamos madeira bruta para os estrangeiros, a enviamos para nossos irmãos do Sul, que a processam e nos devolvem na forma de produtos acabados. Como são mercadorias mais caras, se com o exterior nossa balança comercial é altamente superavitária, com nossos irmãos do Sul é extremamente deficitária. O que ganhamos do Japão ou da Europa, transferimos para o Sul Maravilha. Sem que essa sangria seja considerada motivo para discursos em defesa da soberania nacional, of course.

A expansão do desmatamento é tão acelerada que às vezes só nos damos conta de sua expressão quando ela já é realidade pronta e acabada. Na década de 70 um dos debates no Estado era se o primeiro trecho da PA-279 então aberto, entre Xinguara e São Félix do Xingu, devia ser concluído ou não. Mesmo sem a rodovia estadual, já havia intensa ocupação humana ao longo do traçado previsto. Mas se sabia que uma vez aberto o caminho, o processo se tornaria incontrolável. Como São Félix possuía muita floresta nativa e muitas áreas indígenas, pensava-se num plano, bem estruturado, que evitasse que a expansão continuasse a ser desordenada.

Hoje, São Félix do Xingu é o segundo município brasileiro em rebanho bovino, ocupando liderança destacada no Pará, com seu efetivo de mais de 17 milhões de cabeças, ou 17% do total do país. Se na época fosse realizado o levantamento de aptidão de uso em São Félix, como se pretendia, ninguém indicaria a pecuária como vocação. Agora que a situação está criada, o que não faltam são explicações para essa anomalia. Claro: ela se explica por causa do desmatamento. A Amazônia deixou de existir nessas áreas. A Amazônia propriamente dita está sendo acuada nos espaços que ainda não adquiriram valor de mercado. Enquanto isso, cresce o Centro-Oeste. Quer dizer: o sertão.

João Guimarães Rosa é quem tinha razão: não há porteiras para o sertão. O Brasil, que na letra de Chico Buarque e Ruy Guerra se tornaria um imenso Portugal, está condenado a ser um grande sertão. Só veredas.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado por Lúcio Flávio Pinto – Editor, in Jornal Pessoal (Belém-PA), 29/12/2005, jornal@amazon.com.br