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Artigo

Os Catadores do Lixo na construção de uma nova cultura: a de separar o lixo e da consciência ambiental, por Simone de Loiola Ferreira

Resumo
Desde a Segunda Guerra Mundial, a globalização, as novas tecnologias têm criado riqueza para alguns, e o desemprego tem aumentado para aqueles sem as habilidades necessárias para atender ao novo mercado. Para sobreviver, os excluídos criaram novas alternativas. Os “catadores do lixo” são um exemplo deste novo fenômeno. A cidade de Uberlândia, centro de negócios e importante referencial econômico do Estado de Minas Gerais, reconhecida nacionalmente, tem muitas pessoas vivendo em situação de exclusão. Algumas destas são “catadores do lixo”, encontraram uma maneira de sobreviver, mas também de fazer desenvolver uma atividade que forneça benefícios importantes à sociedade: reciclagem de papel, papelão, plástico, vidro. Não sendo lançados no solo, nem nos rios, colaboram à preservação ambiental. Seria interessante pesquisar se estas pessoas são conscientes de sua contribuição ao meio ambiente, e se seu exemplo incentiva a sociedade a separar os materiais recicláveis do lixo.
Palavras-chaves: Catador de lixo, Materiais recicláveis, Cooperados, Autonomia, Meio Ambiente

Abstract
Trash catchers constructing a new culture: separating the trash and ecological importance
Since the Second World War, globalization and new technologies have created wealth for a few, and increased unemployment for those without the needed, specialized skills. To survive, those left out have created new ways to earn a living. Trash catchers are an example of this new phenomenon. In Uberlândia, a nationally important and successful business center in the state of Minas Gerais, there are also people living a marginal existence. Some of these are trash catchers, who have found a way to survive, but in doing have also developed an activity that provides important benefits to society: recycling paper, cardboard, plastic, glass and fiberglass. Because these items do not end up in landfills and rivers, the ecology and society benefit. It would be interesting to determine whether these people understand their important contribution to the environment, and whether their example will encourage the greater society to recycle more materials.
Word-keys: Trash catchers, Recycle material, Cooperated, Autonomy, Environment

O mundo mudou muito ao longo do século XX. A partir da Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se um amplo processo de globalização das relações, processos, estruturas de dominação e apropriação; antagonismo e integração. Todas as esferas da vida social, coletiva e individual, de certa forma, são alcançadas pelos problemas e dilemas de tal era.
O desemprego é uma questão importante, pois é conseqüência histórico-social de um modo de produção que é eficiente na geração de riqueza para uns na medida que é eficiente na exploração do trabalho, precarização da mão-de-obra e o empobrecimento da população. Há ainda desobrigação crescente do Estado em competências, como saúde e educação, marcas do neoliberalismo.
A introdução de novas tecnologias nos processos produtivos em muitos países, com objetivo de elevar os níveis de produção e a redução de custos, é um elogio ao saber técnico e racional, peculiar à sociedade capitalista. Estas por sua vez são apropriadas pelos detentores do meio de produção, que as utilizam com o intuito de melhorar a qualidade de seus produtos e reduzir seus custos para competir no mercado. Exigem, com isso, a qualificação e escolaridade mínima. E, àqueles que não têm acesso a essa especialização, resta a marginalização ou exclusão do sistema, resultado do progresso econômico, não acessibilidade aos bens de consumo e serviços. Soma-se a tal processo a insuficiência de oportunidades que possibilite um movimento contrário a este cenário.
O desemprego é um dos problemas mais sérios apresentado neste estudo, assolando de forma trágica principalmente aqueles que possuem baixa escolaridade, pouca ou nenhuma qualificação técnica: mulheres, negros, idosos e deficientes físicos, uma vez que são os mais afetados neste processo de restrição de oportunidades. A resposta encontrada por esses atores, por não terem condições de competir por vagas no mercado formal, é o subemprego, a ocupação precária do espaço urbano e o ‘inchaço’ da economia informal.
“Coletar lixo” é uma alternativa encontrada por alguns desses excluídos. Como não atingem a qualificação exigida pelo mercado, vêem nessa função uma estratégia de sobrevivência. Ainda sendo uma forma de trabalho vista como degradante pela sociedade, os “catadores de materiais recicláveis” fizeram do lixo uma forma de obter a renda para o próprio sustento.
O talento desses homens e mulheres para viver é inquestionável, mas ainda assim encontram dificuldades e discriminação social. Podemos notar ao caminhar nas ruas, o olhar da maior parte das pessoas em relação aos “catadores do lixo”, algo que perpassa de sentimentos humanitários a repulsa aos mesmos. A imagem do “catador do lixo” é provocadora por expor de forma pública a pobreza. São os marginalizados, restritos às encostas, circulando nos bairros comerciais e espaços centrais da cidade. É esse o confronto travado, o desconforto causado por passantes. São estereótipos e modelos retificados que impedem a superação e o amadurecimento das relações cotidianas na cidade.
Entretanto, apesar de estarem buscando uma forma de inserção no mundo social e do trabalho, e serem discriminados, os “catadores do lixo” realizam uma atividade muito importante para a sociedade e o meio ambiente.
Destacando o sentido ecológico de tal atividade, a readequação dos materiais selecionados, devido a sua natureza diversa, impedirá a contaminação do solo, dos lençóis freáticos e nascentes de rios, pois alguns desses materiais levam anos ou mesmo décadas para serem consumidos pela natureza, oferecendo assim uma alternativa aos “lixões”.
Nesse contexto, os “catadores do lixo” despontam como atores indispensáveis, afinal eles são os responsáveis pela separação e triagem do material que sai do lixo e que é vendido às indústrias de reciclagem. A partir daí, transforma-se em matéria-prima para novos produtos, poupando os recursos naturais. Reconhecer a diferença dos materiais que normalmente são jogados indiscriminadamente no lixo (como plásticos, vidros, papéis…) é imprescindível para a coleta racional e seletiva do lixo. Com essa atitude, o gesto cotidiano de descartar o lixo seletivamente e entregá-lo à reciclagem torna-se um fator importante na conservação do meio ambiente. Sob essa forma de percepção todos são agentes modificadores no processo de degradação ou conservação da natureza. Contudo a coleta seletiva não é habitual entre a população, muitas vezes pelo desconhecimento do processo e seus benefícios. Sendo assim, seria interessante destacar o papel do “catador” como disseminador de uma nova cultura e buscar analisar a sua própria consciência enquanto importante agente ambiental do meio social e um possível trabalhador que pode mudar a consciência de indivíduos alienados lutando pela autonomia de ser.
A pesquisa em Uberlândia
A cidade de Uberlândia foi tomada por base para testes empíricos por ser uma cidade de médio porte, com cerca de 539.162 habitantes urbanos (IBGE 2000), e ser um pólo de influência regional. Tem ótimas referências universitárias, possuindo boa infra-estrutura comercial, o que resulta em um grande fluxo de pessoas com possibilidades de trocas de experiências. Conseqüentemente, Uberlândia desfruta de uma posição favorável no cenário nacional e de Minas Gerais. Inserida nessa conjuntura, a população uberlandense enfrenta problemas com a grande quantidade de lixo produzido e a não disponibilidade de uma coleta seletiva de lixo satisfatória.
A pesquisa foi executada no período de 15 de Agosto a 30 de Outubro de 2004 no centro da cidade e nos bairros: Brasil, Santa Luzia, Tibery, Santa Mônica, Planalto, Daniel Fonseca e Jaraguá. Estes bairros foram escolhidos por serem onde se concentra a classe média uberlandense, e que, segundo o depoimento dos próprios “catadores”, é onde se encontra maior número de lixo reciclável, como garrafas PET, caixinhas de leite, frascos de iogurte e outros.
Os “catadores” foram abordados aleatoriamente não importando o sexo ou a idade, cooperados ou não. Previamente foram levantados os horários em que ocorria maior incidência da presença dos “catadores” nas ruas (no período da manhã, às segundas, quartas e sextas-feiras, dias em que o caminhão do lixo faz coleta, razão pela qual há muitas “lixeiras cheias” nas ruas) facilitando assim o encontro, a abordagem e a entrevista.
A amostra de entrevistados, 53 catadores, corresponde a 2% da população destes em Uberlândia, que atualmente somam com aproximadamente 2.500 pessoas (Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Uberlândia – MG, 2004).
As questões norteadoras para a abordagem desta problemática foram as seguintes: Sendo a coleta de lixo pouco freqüente em Uberlândia, mas de fundamental importância para a preservação ambiental, como a prática dessa modalidade é compreendida pelo catador de lixo e por esta sociedade? O Trabalho dos “catadores do lixo” então pode ser visto como elemento disseminador de uma cultura (separar o lixo) ambientalista e econômica que pode levá-los à autonomia, a partir de uma estratégia que do ponto de vista do catador é, muitas vezes, apenas de sobrevivência?
Do grupo de entrevistados, os homens são maioria na coleta seletiva do lixo, representando 70% do total, enquanto as mulheres são 30%. Entretanto, no trabalho da coleta seletiva do lixo, as mulheres apresentam qualidades diferenciadas em relação à atividade praticada pelo homem. “(…) As mulheres são muito caprichosas, é possível aproveitar quase tudo o que elas catam, por isso elas ganham mais do que os homens (…)”, diz o presidente da Cooperativa dos Catadores do lixo de Uberlândia, Sr. Francisco. Para o novo setor isso significa rentabilidade para que continue funcionando a todo o vapor.
É imprescindível que o material a ser reciclado esteja em boas condições de reaproveitamento. Por exemplo, é preferível que o papelão esteja seco e não muito rasgado, que as garrafas PET não estejam muito sujas e nem danificadas, e que os objetos coletados estejam separados por material. E isso, segundo o Sr. Francisco, as mulheres fazem com muito rigor (CORU- Cooperativa de Reciclagem de Uberlândia-MG, 2004).
Para a indústria de reciclagem, esta especialização caracterizada no trabalho da mulher – que tem muito a ver com o trabalho doméstico e a sensibilidade de cuidar dos detalhes – tem sido uma nova forma de extrair a mão-de-obra de pessoas que antes estavam confinadas ao espaço privado dos lares e agora se encontram nas ruas buscando alternativas de sobrevivência. Algo que, já de imediato, coloca-nos a pensar que apesar destas mulheres estarem buscando alternativas de sobrevivência fora do mercado formal de trabalho estabelecido pelo capitalismo, ainda seguem o mesmo padrão de exploração sob o qual foram colocadas por este.

A maior parte dos “catadores” (68%) tem idade superior a 30 anos, concentrando-se na faixa etária adulta da vida. E o desemprego, conforme 45% destes, apresentou-se como o motivo maior por estarem na atividade. A grande maioria dos entrevistados (91%) possui dependentes de sua renda. E 60% obtêm renda média de um salário mínimo, ao passo que os demais não ultrapassam os quatro salários mínimos. As necessidades básicas ainda são o motivo principal que levou estas pessoas para a “coleta do lixo” – 90% deles. Entre os entrevistados, 56% são de Uberlândia, sendo os demais migrantes provenientes de áreas rurais e das regiões Norte e Nordeste do país. O grau de escolaridade deles é relativamente baixo – 25% são analfabetos, 37% cursaram até o ensino básico, 32% fizeram até o ensino fundamental, 6% até o ensino médio. Do público alvo da pesquisa, 69% vivem apenas da coleta do lixo, enquanto 23% têm esta atividade como complementar de renda.
De acordo com os dados levantados, pode-se concluir que o motivo maior por estarem na coleta seletiva do lixo é o de sobrevivência. Pessoas com idade ativa, entretanto, com baixa escolaridade, sem chances de concorrer por uma oportunidade no mercado local de trabalho, partiram para esta atividade. O fator “migração” também denota que pessoas provenientes de áreas rurais e de outras partes do país vieram para Uberlândia em busca de oportunidades. Não encontrando trabalho formal, debandaram para o mercado informal. As suas características não atendem às necessidades desta cidade, que se baseia na indústria, no comércio e no agrobusinesses, requerendo pessoas mais bem habilitadas a operarem as novas tecnologias do mercado.
A reciclagem de lixo, bem como a função dos “catadores”, é atividade recente. Em Uberlândia, 42% dos catadores entrevistados exercem esta atividade há menos de um ano, que é desenvolvida por uma questão de necessidade econômica, colocada pela dificuldade destes indivíduos de se inserirem no mercado de trabalho formal, assim como foi mencionado acima.
Quanto à consciência ambiental, 32% dos entrevistados declararam que catam lixo para sobreviver e também por que acreditam que isto preserva o meio ambiente. Entretanto, nenhum deles declarou “catar” lixo somente para preservar o ambiente. Do mesmo modo, 81% deles declaram separar o lixo de suas próprias casas, o que ao menos demonstra que a própria atividade serviu para estabelecer neles uma nova cultura: a de separar o lixo; 19% disseram que não separam, enquanto 40% disseram estar conscientes da importância de sua atividade ao meio ambiente. Enquanto isso, 28% acreditam que não tem importância alguma. E 32% acreditam que contribui um pouco. Por outro lado, 55% dos entrevistados sabem o destino do material que coletam nas ruas e 45% não sabem o destino do lixo, demonstrando que a maior parte deles, mesmo inconscientemente, sabe que seu trabalho tem alguma utilidade para o meio ambiente.
A respeito da modalidade do trabalho, 87% dos entrevistados declararam-se autônomos, enquanto 9% têm vínculo com cooperativa. E 4% se dizem empregados privados de alguma empresa que coleta lixo na cidade.
Apesar da maior parte deles se declarar autônomo, os dados deste estudo demonstram que ainda não há formas de pensamento e auto-instituição desses indivíduos frente ao sistema. De acordo com o que Castoriadis coloca em sua obra “Da Ecologia a Autonomia”, uma nova sociedade só é possível quando há autonomia na forma de pensar e de ser dos indivíduos. E conforme o que foi observado nesta pesquisa, o “catador” têm aspirações e “necessidades” de inclusão social nos esquemas tradicionais instituídos, reproduzindo a ordem vigente, não agindo para que a sociedade mude no que diz respeito à economia e autonomia frente à exploração que sofrem do sistema capitalista. Buscam na coleta seletiva do lixo algo que não conseguiram dentro da sociedade, uma vez que foram excluídos pelo sistema da mesma. Para que pudessem ser vistos e tidos como autônomos na maneira de pensar e ser, precisariam demonstrar formas de pensamentos que os direcionasse contra o que está instituído, que proponha uma mudança nas estruturas sociais.
Conclusões gerais
O sistema capitalista criou e continua criando significações imaginárias sociais: a sociedade cria um conjunto de “necessidades”, desejos individuais e padrões do modo de vida. Fazendo assim com que os indivíduos fiquem presos aos padrões estabelecidos, e tudo o que façam, mesmo que seja um meio alternativo de sobrevivência, fique adequado aos moldes, às necessidades que fazem com que o sistema permaneça vivo, explorando e aprisionando as pessoas.
A atividade da coleta de lixo, mesmo sendo uma técnica alternativa de trabalho que garante a sobrevivência de vários indivíduos fora dos moldes tradicionais de trabalho (vínculo empregatício, relação patrão-empregado, jornada de trabalho…) estabelecidos pela sociedade capitalista, só é possível porque esta mesma sociedade produz o lixo e precisa que o mesmo seja coletado. Cada sociedade cria sua técnica e seu tipo de saber, em específico na sociedade capitalista há uma forma de expansão ilimitada das forças produtivas da burguesia e do capital, o que resulta inevitavelmente num consumo exacerbado da população, produzindo lixo e necessitando de mecanismos que eliminem pelo menos parte deste lixo.
Os “catadores do lixo” buscam outras formas de sobrevivência diferente daquelas que estão postas pelo sistema técnico-produtivo, o que não significa que estão sendo autônomos no seu processo de sobrevivência. Só buscaram tal alternativa porque não conseguiram se incluir nos padrões estabelecidos pelo sistema. E, quando saem às ruas para “catar” lixo, não saem por uma nova consciência, com o desejo de mudança. Pelo o que foi constatado nesta pesquisa, eles saem às ruas, trabalhando nesta atividade, para, de certa forma, se manterem incluídos no sistema, para adquirirem os bens de consumo postos por este.
Sendo assim, é preciso muito mais do que práticas alternativas. São necessárias mudanças de pensamento, de consciência, de cultura, mudanças sociais para que possamos recriar nossos costumes e hábitos em prol da existência da vida humana, fora deste sistema que faz escravizar as pessoas que nele se incluem e marginalizar os que não se enquadram em seus padrões.
Quanto ao meio ambiente, é óbvio que a atividade deles tem trazido benefícios à natureza, e na atitude das pessoas quanto à cultura de separar o que é reciclagem do que é rejeito. Pois, uma vez que eles mesmos já separam o lixo de suas casas, percebe-se um grande avanço nesta sociedade, quando, há pouco tempo atrás, quase ninguém se atentava ao que poderia degradar o solo, a natureza. E, ao passo que estes “agentes” trabalham nas ruas, acabam por estimular as pessoas a separarem os seus lixos. Com o tempo, certamente teremos este hábito incutido no cotidiano das pessoas.

Por SIMONE DE LOIOLA FERREIRA
Discente do Curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Uberlândia.

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Publicada em 03.12.04 – Última atualização: 18 agosto, 2005.

Republicado em Portal EcoDebate, www.ecodebate.com.br, 13/10/2005