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Belo Monte: mais uma trapalhada hidrelétrica, por Lúcio Flávio Pinto

Os ensaios e providências para iniciar a construção de uma grande hidrelétrica no rio Xingu, o primeiro de uma série de aproveitamentos possíveis inventariados pela administração federal, já duram 17 anos. O saldo para os empreendedores é negativo: passado tanto tempo, nem conseguiram o licenciamento ambiental da obra.

Uns acham que essas dificuldades são criadas por nacionais e estrangeiros empenhados em torpedear o desenvolvimento brasileiro usando como disfarce a preocupação ecológica e indigenista. Ainda que houvesse – ou que haja mesmo – uma conspiração internacional de sabotagem da usina de energia, ela não podia ter causado mais danos ao projeto do que as desastradas iniciativas do lado dos defensores da barragem.

A hidrelétrica de Belo Monte já recebeu todas as indicações de prioridade da parte do governo federal. Uma das últimas foi a chancela, inédita, como uma obra estratégica. O comportamento dominante dos que tentam implantá-la, no entanto, é a pressa, o açodamento, uma falta de cuidados que destoa da grandiosidade da empreitada, traduzida em bilhões de dólares.

A última trapalhada aconteceu no final de junho. Em regime de urgência, no intervalo de apenas 15 dias, desde a apresentação do projeto (e de quatro dias, entre a primeira e a segunda votação), a Câmara Federal e o Senado aprovaram o decreto legislativo 788. A iniciativa foi soprada ao deputado pernambucano Fernando Ferro, do PT, pela então ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef (hoje, na chefia da Casa Civil da Presidência da República, no lugar do – novamente – deputado José Dirceu), e pelo na época presidente da Eletronorte (atualmente na presidência da Eletrobrás, a holding estatal do setor), Silas Rondeau.

O decreto autorizava a realização dos estudos de impacto ambiental para a construção de Belo Monte, suspensos desde 2001 por uma liminar do Supremo Tribunal Federal, que acolheu ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal. A pressa na retomada do licenciamento ambiental visava atender o desejo do governo de incluir a usina do Xingu no leilão de energia nova, que o Ministério das Minas e Energia pretende realizar até o final do ano. A urgência do leilão, por sua vez, atenderia uma diretriz oficial de ampliar rapidamente a capacidade de geração do sistema nacional para prevenir o risco de um novo apagão, que os técnicos consideram possível até 2010 se novas fontes de energia consideráveis não forem adicionadas.

Se é inimiga da perfeição em situações domésticas, a pressa novamente se revelou um desastre a mais no processo de gestação desse paquiderme energético com pés de barro. Dificilmente o decreto legislativo aprovado em 29 de junho escapará da ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria-Geral da República e endossada por várias entidades do setor.

O encaminhamento da questão feito no início de agosto pelos procuradores Felício Pontes Jr., Ubiratan Cazetta e Alexandre Soares é fulminante. Mostra que os parlamentares violaram a Constituição ao autorizar a continuidade sem ouvir antes as comunidades indígenas. É uma falha grosseira: o texto constitucional é claro ao determinar a audiência prévia. Só deixa margem a interpretações quando ao valor dessa consulta.

Não sendo deliberativa, ainda assim a oitiva não é meramente simbólica, decorativa. Ela precisa ser consistente o bastante para bem informar deputados e senadores sobre a posição das comunidades afetadas pelo barramento do rio, que constitui bem inalienável e pleno desses moradores primitivos da área. Se não ficar provado que a execução da obra causa a destruição física ou cultural das tribos, os parlamentares poderão desconsiderar a vontade dos índios e dar a autorização, desde que tenham argumentos para contrapor-lhes e sujeitando-se às conseqüências dessa deliberação. Mas não podem dar a autorização sem antes ouvir os grupos indígenas afetados pela obra.

Os procuradores federais no Pará apontam ainda dois vícios que acarretam a nulidade do decreto legislativo. O texto aprovado pela Câmara Federal recebeu uma emenda modificativa, apresentada por ninguém menos do que o relator da matéria na Câmara Alta, o inefável senador José Sarney. Mas não voltou à origem para ser reapreciada, conforme determina o regimento da Câmara. Acabou sendo aprovada sem esse inevitável momento processual. A emenda incluiu a participação do Pará nos estudos de impacto ambiental, que não estava prevista no projeto original.

Uma outra causa da nulidade do decreto seria a inexistência de uma lei regulamentando dispositivo da Constituição Federal, segundo o qual “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras [indígenas], ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nela existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar”. Passados 17 anos da promulgação da Constituição, até hoje essa lei regulamentadora não foi aprovada.

Do ponto de vista formal e técnico, é pouco provável que os defensores de Belo Monte consigam derrubar os fundamentos da ação de inconstitucionalidade. O governo vai ter que refazer o caminho da obra, cumprindo as determinações legais, atropeladas ou ignoradas nos procedimentos adotados. O decreto, que deveria materializar a primeira autorização legislativa à realização de estudos de impacto ambiental para a construção de uma hidrelétrica em área indígena, poderá se tornar letra morta.

Mais uma vitória dos inimigos do país? Não: mais um atestado da incompetência dos que pretendem desenvolver o Brasil sem atualizar o modo de proceder às regras da lei e às expectativas da sociedade, que cobra uma atualização da engenharia às novas exigências da adequação ao meio ambiente e à história local. Os barrageiros querem continuar a ser os donos da decisão, permitindo-se apenas ouvir o que seus supostos beneficiários têm a dizer antes de fazer o que acham certo, independentemente de divergências, que consideram lateral.

Os 17 anos de história operacional do projeto de Belo Monte comprovam esse autoritarismo técnico-empresarial: o modus operandi e argumentativo dos encarregados da obra é o mesmo independentemente da pessoa, do partido ou da ideologia que comande o governo federal. Quando na oposição, o PT era um adversário intransigente de Belo Monte. No poder, é um feitor de obra mais implacável do que os tucanos do PSDB.

O ofício encaminhado ao Procurador-Geral da República pelos três representantes do MPF no Pará reproduz um trecho antológico da sessão do Senado na qual foi concedida a autorização para Belo Monte. O senador Luiz Otávio Campos, do PMDB do Pará, manifesta seu espanto com a tramitação recorde do projeto, com intervalo de quatro dias entre a aprovação na Câmara e igual endosso no Senado: “Eu nunca vi isso. Manifesto minha admiração”, declarou o “senador do governador”, eleito por Almir Gabriel quando ainda estava no PSDB. Vaticinou, com ironia: “Com certeza esse projeto vai para o Guiness Book”.

O PT, responsável pela iniciativa, fez de conta que a carapuça, como um bumerangue doidivanas, não lhe cabia como luva. No Rio de Janeiro, ignorando os acontecimentos de Brasília, o secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério das Minas e Energia, Márcio Zimmermann, anunciou que o governo pretende licitar Belo Monte, mais as hidrelétricas do complexo do Rio Madeira (Santo Antonio e Jirau), no final do próximo ano. Talvez convencido de conseguir derrubar a providência obtida pelo MP (os técnicos estão convictos de que o barramento do rio não atingirá nenhuma das comunidades indígenas), limitou-se a informar, num seminário sobre energia e desenvolvimento, que o governo está apenas refazendo os antigos estudos, autorizados pelo decreto que liberou a avaliação da bacia. Ou Zimmermann sabe demais para dizer o que disse, contraditando os fatos, ou sabe de menos. E é aí que sempre recomeçam os problemas nessa já longa história.

(in EcoDebate) Fonte – Jornal Pessoal (Belém-PA), Lúcio Flávio Pinto – Editor, 13/10/2005
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