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De Mariana a Abrolhos, a pedagogia da lama em dez lições, artigo de Nurit Bensusan

 

A catástrofe socioambiental provocada pelo rompimento de barragem da mineradora Samarco em Mariana (MG), no último dia 5/11, atingiu 663 km de rios, com a destruição de 1.469 hectares de terras, incluindo Áreas de Preservação Permanente (APP), aponta laudo técnico preliminar do Ibama
A catástrofe socioambiental provocada pelo rompimento de barragem da mineradora Samarco em Mariana (MG), no último dia 5/11, atingiu 663 km de rios, com a destruição de 1.469 hectares de terras, incluindo Áreas de Preservação Permanente (APP), aponta laudo técnico preliminar do Ibama

 

[ISA] Desde o dia 5 de novembro do ano passado, temos uma inusitada professora a nos dar lições sobre como o meio ambiente é tratado no Brasil: trata-se da lama despejada no Rio Doce por causa do rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais.

A primeira das lições que a lama nos deu é sobre o licenciamento ambiental. Esse processo, fragilizado e negligenciado ao longo dos últimos anos, é o cerne do desastre de Mariana. Ali, o licenciamento ambiental foi, mais uma vez, desrespeitado e as condicionantes que deveriam ser cumpridas, como o estabelecimento de um plano de emergência, foram deixadas de lado. Apenas uma amostra do que vem acontecendo pelo país afora. Como se isso fosse pouco, há iniciativas tramitando no Congresso Nacional que fragilizam ainda mais o licenciamento ambiental, como o projeto de lei do Senado (PLS) nº 654/2015, que cria um procedimento acelerado e simplificado para o licenciamento de grandes obras, como hidrelétricas, estradas, ferrovias, portos e instalações de telecomunicações.

A segunda lição da lama versa sobre o descumprimento histórico dos códigos florestais, tanto o que estava em vigor até 2012 como o novo código. A região da Bacia do Rio Doce estava, já antes da passagem da lama, muito degradada: Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais não vinham sendo respeitadas há anos, como tem sido a regra em diversas partes do Brasil. O resultado se traduzia em muitas áreas desmatadas, o comprometimento da recarga dos aquíferos da região e o assoreamento dos rios, elementos que dificultam a regeneração dos danos ambientais produzidos pelo rompimento da barragem.

A terceira lição é uma derivação da segunda: o descumprimento da lei florestal se reflete também sobre a integridade das Unidades de Conservação que estão na Bacia do Rio Doce. Seus entornos, e em muitos casos também suas áreas, têm sido alvo de desmatamento e de especulação imobiliária. Tudo isso acontecendo no Cerrado e na Mata Atlântica, biomas que, mesmo sem as lições da professora lama, sabemos que estão bastante ameaçados.

A quarta lição pode ser resumida como o binômio “forte reação e fraca ação”. Está relacionada com as duas anteriores, mas é, talvez, uma lição ainda mais amarga. O Rio Doce já não chegava mais em sua foz, em Linhares, no Espírito Santo. Ou seja, não conduzia mais água até a foz, por causa do comprometimento de sua vegetação e da devastação da bacia. Quando essa situação se deu, em julho do ano passado, houve uma grita geral: reportagens, protestos e indignação. Apesar disso, pouco ou nada foi feito para resolver a situação. Esse binômio, refletido nessa lição, pode ser visto em diversos casos onde o meio ambiente é o foco. Um resumo possível dessas últimas três lições é que as questões ambientais não são prioritárias, sempre perdem para outros interesses como os da mineração, da especulação imobiliária, do agronegócio e da siderurgia.

A quinta lição que a lama nos deu ao passar pelos diversos municípios é que a existência de saneamento básico não é a regra e sim a exceção. Diversas cidades, como Governador Valadares, jogam esgoto ‘in natura’ no Rio Doce. Vale dizer que as projeções recentes dão conta de que mantido o ritmo atual, os serviços de saneamento básico serão universalizados, no país, só em 2053…

Caminha junto com essa lição, a sexta, que trata da poluição da bacia. Todo tipo de rejeitos eram jogados historicamente no Rio Doce e em outros rios da bacia. A fiscalização era e ainda é deficitária; ainda assim, alguns poluidores foram multados, mas em agosto do ano passado, o Estado de Minas Gerais aprovou uma lei anistiando as multas ambientais. Essa lição não precisa nem de mais explicações, nem de resumo: trata-se de um convite ao descaso com o meio ambiente.

A sétima lição se relaciona com a forma pela qual o Estado brasileiro trata as populações que vivem diretamente dos recursos naturais, como os pescadores que foram prejudicados pela passagem da lama. Calcula-se que a quantidade de peixes mortos superou 10 toneladas. Mas vale perguntar: será que, mesmo antes da lama, numa bacia tão degradada, os pescadores conseguiam tirar seu sustento das águas e viver bem? E os índios Krenak, cuja terra indígena é banhada pelo Rio ex-Doce? Rio sagrado para esse povo que afirma que “morre o rio, morremos todos”? Como viverão? Fala-se em pelo menos 10 anos para o rio começar a se recuperar… ainda assim, em condições favoráveis…

A oitava é uma lição de complacência. Ou seja, de como o Brasil lida com esse tipo de situação. Uma amostra disso está nas campanhas para que o resto do país enviasse água potável para a região do desastre. Ora, é, certamente, ótimo que as pessoas se engajem e colaborem, mas quem tinha que obrigatoriamente garantir a água para as populações afetadas pelo desastre é a empresa responsável pela catástrofe, a Samarco, sendo que ao estado caberia obrigá-la a fazê-lo. O mesmo vale para as medidas técnicas que deveriam ter sido adotadas para evitar, ou pelo menos para mitigar, suas graves consequências. Infelizmente, parece que o Estado brasileiro não quer se indispor com as empresas mesmo diante de um desastre de tais proporções.

A nona lição é sobre nossa ignorância: pouco sabemos sobre nossa biodiversidade marinha e pouco sabemos sobre quais serão os impactos das partículas de lama, diluídas na água do mar, sobre corais, crustáceos, moluscos, peixes e mamíferos. Como a pluma (termo usado para designar as partículas de lama diluídas no mar) não é tão facilmente visível como a lama concentrada, as pessoas continuam nadando nas praias e comendo frutos do mar, um mar cheio de lama e talvez de metais pesados. Quem sabe quais serão as consequências… Essa ignorância, para piorar, guarda uma arrogância: não sabemos o que fazer? Por que não procuramos especialistas, pesquisadores, estudiosos, gente de qualquer lugar do planeta que poderia nos ajudar a conter a lama ou pelo menos seus impactos?

Por fim, a décima lição é sobre a inconsequência. Não estão claros, nem são divulgados, quais são os reais impactos dessa lama e seus elementos sobre as populações humanas. É conveniente esquecer que a lama ainda está vazando da barragem para o falecido Rio Doce e que a previsão é que isso ainda aconteça por mais dois meses. Nos últimos dias, apesar das constantes negações do governo, a lama, ou a pluma, parece ter chegado ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos e certamente vai causar grandes impactos por lá… No país em que não há consequências para autoridades que dão declarações inverídicas, a ministra do Meio Ambiente afirmou que isso não aconteceria. E se aconteceu?

 

Artigo socializado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e reproduzido in EcoDebate, 13/01/2016

[cite]

 

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5 thoughts on “De Mariana a Abrolhos, a pedagogia da lama em dez lições, artigo de Nurit Bensusan

  • “Esse processo, fragilizado e negligenciado ao longo dos últimos anos, é o cerne do desastre de Mariana.” Do artigo…

    A burocratização e mera formalização do licenciamento ambiental sem dúvida está no âmago de tudo…

    Embora todas as observações sejam muito pertinentes.

    Abs…

    RNaime

  • Não concordo com a opinião do autor e do comentário existente exarado sobre a importância dada ao processo de licenciamento ambiental neste caso. É atribuído a esta ferramenta de licenciamento ambiental um poder divino de consertar tudo e de controlar tudo como se isto fosse verdade. É como se o processo de licenciamento ambiental fosse uma panaceia perfeita capaz de salvar o mundo e a todos ! Isto é uma balela para quem conhece a real situação do Brasil e dos órgãos ambientais e dos processos de licenciamento. Sabemos que a situação de descontrole não é porquê o processo de licenciamento tem que ser mais rigoroso e mais lento. O processo de licenciamento ambiental prevê a apresentação de informações requeridas e necessárias para que se considere suficiente para emitir a licença. E ter papel aprovado pelo órgão ambiental não faz com que seja cumprido uma vírgula do que foi proposto ! Observe que a Licença foi concedida solicitando este plano e concedendo tempo para realizar esta ação. E o que faltou foi a fiscalização do que é licenciado !! Faltou a fiscalização nos projetos pelos CREAS, ANA, IGAM e pela implantação junto ao DNPM e Orgãos ambientais ! Faltou a atuação das Prefeituras, do CREA e dos corpos de bombeiros e defesa civis ! Onde estavam antes ? Só atuam após o acidente ? Não fiscalizam antes ? E isto é dado pela falta de visão da sociedade…. de que este problema se refere apenas a esfera do processo de licenciamento ! A legislação que prevê a necessidade de plano de emergência, veio da ANA e previa sua entrega a muito tempo atrás aos entes requeridos. Por quê a ANA/IGAM/SUPRAM não fiscalizaram a falta do plano antes do processo de licenciamento ? porquê ? Vejam que a abrangência do problema é muito maior ! Falta pessoal e recursos aos órgãos ambientais, aos corpos de bombeiros, as prefeituras, as defesas civis, a ANA/IGAM/SUPRAM etc para analisar, fiscalizar e exercer seu papel de fazer cumprir a lei. Aumentar o rigor da lei e o rigor no processo de licenciamento não mudará uma vírgula se o que foi prometido e não está sendo cumprido ! Só aumentará o mercado de consultores e acadêmicos que fazem papel e estudos vazios! Novamente friso fazem apenas papéis. Faço uma simples pergunta para comparar a situação: Se a prefeitura aprova um projeto de construção de um prédio em uma cidade (em um processo autorizativo similar ao processo de licenciamento ambiental) isto impediria que durante a obra, viesse a ruir ? impediria que o projeto da construção tivesse vícios técnicos, ou que durante a obra não fossem seguidas as determinações de projeto, ou que sejam usados materiais não adequados a construção ? Não! Isto só seria possível de ser notado com uma fiscalização objetiva por parte do Estado, prefeitura e dos vários órgão técnicos de controle existentes, incluindo o corpo de bombeiros, creas, etc do que está sendo realizado naquele local ! Isto é que evitaria que esta construção autorizada ruísse ! Fazer com que o processo de autorização de uma construção de um prédio, ou de um licenciamento ambiental seja cada vez mais rigoroso só iria aumentar o mercado de prestação de serviços de consultores e de acadêmicos para fazer mais papel e represar as construções necessárias e não iria agregar uma vírgula a segurança se não forem cumpridos. É exatamente esta visão que está transformando o processo de licenciamento ambiental em uma mera burocratização e formalização, transformando tudo em papelada sem valor. É isto que está acontecendo !! E ficam ainda falando que o processo de licenciamento tem que ser mais rigoroso. Não, de forma alguma !! Os órgãos ambientais hoje só tem recursos e pessoal para procederem o processo de análise do licenciamento ambiental, depois de licenciado não conseguem mais fiscalizar !! Este é o problema ! O que tem que existir é um aparato de Estado – digo união, estados e municípios – dos órgão ambientais, dos creas, dos bombeiros, das defesas civis, etc adequados e suficientes para exercer a fiscalização e punir as irregularidades !! Isto é que é o problema ! houvesse um plano de emergência (um maço de papel com letras prometendo ações e recursos) analisado e aprovado dentro do órgão ambiental não mudaria as consequências do acidente ! O que faria diferença seria este plano fosse de fato implementado !! Para implementar um plano de emergência precisaríamos de ações da empresa que envolvessem previamente a população e que a treinasse e conscientizasse dos riscos. Envolveria treinar e a defesa civil, os bombeiros, a polícia, etc dos vários municípios a jusante para atuar. Pergunta: existe de fato o órgão de defesa civil atuante e efetivo nos vários municípios de jusante ? sem conhecer os locais afirmo que não !!! Ou seja, o artigo é míope, só enxerga a culpa da Empresa, e do processo de licenciamento e não enxerga a culpa da Sociedade, e do Estado e seus entes, ignorando o fato que o Estado, CREAs, DNPM, ANA, IGAM, SUPRAM, Bombeiros, Prefeituras estão totalmente despreparados e sucateados e sem pessoal para exercer seu papel de fiscalizar !

  • Concordo contigo Marcelo, o licenciamento não é panacéia…mas do jeito que está…

    Abs…

    RNaime

  • Cibele Nunes Alencar

    Saber que o Brasil não é capaz de fiscalizar ações nocivas ao meio ambiemte não tira a urgência da discussão sobre o auto licenciamento. O capital já provou que tem o poder de passar por cima da legislação e pagar pouquíssimo por isso. As indenizações chegam a 20 mil por danos materiais e 100 mil por cada vítima fatal do desastre da Vale e da Samarco. Pareceria piada se não fosse tão trágico. No entanto, tb parece que tudo isso teve q ocorrer, e isso só o tempo dirá, para que tanto a legislação quanto a fiscalização ambientais se tornem efetivas. É a hora de assumirmos nossos mártires. Essa tragédia em Mariana deve ser um marco. Como aceitar uma presidente do IBAMA q apóia o auto licenciamento diante disso? Como aceitar q os réus façam auditorias que deveriam ser imparciais? Como aceitar q os testes de toxidade da lama e os seus efeitos sejam laudados por eles mesmos? Como o acidente continua acontecendo e a lama ainda não foi barrada? Estamos acabando com as nossas reservas para o mundo crescer. Deixamos que vendam o nosso minerio de ferro, sem igual no mundo, sem a justa tributacão. A Lei Kandir é a prova q temos q ficar atentos ao processo de feitura das leis. Não podemos dormir no ponto. Sabemos q o CN tem interesses que não correspondem aos interesses nem da natureza, nem do povo brasileiro bom e honesto. A natureza necessita de leis q “peguem” e bem…

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