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A política do precariado no mundo do trabalho. Entrevista com Ruy Braga

 

“Existe uma nova realidade no mundo do trabalho no Brasil, do ponto de vista da relação entre trabalhadores, sindicatos e governo”, avalia o sociólogo.

Os quase 12 anos de atuação do atual governo de situação foram bastante significativos para as mudanças da figura do precariado brasileiro — o proletariado precarizado. A facilitação do registro para abertura de empresas, a simplificação tributária e o acesso ao crédito, por exemplo, colaboraram para a diminuição dos números de trabalho informal. No entanto, como afirma o sociólogo Ruy Braga, houve também o “endurecimento das condições de trabalho, que é a contrapartida desta formalização, um aumento muito acentuado na rotatividade do trabalho e um aumento no número de acidentes laborais”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Braga aborda a transformação sofrida pelo precariado nos últimos anos. Inicialmente uma “massa, criada pela contratualização, pelo aumento do desemprego e pela desestruturação do mercado de trabalho, foi, de alguma maneira, reabsorvida pelo mercado formal de trabalho nos anos 2000, só que em condições muito degradadas de consumo da força de trabalho”, o que, segundo ele, faz com que o emprego criado seja um emprego de baixa qualidade.

O sociólogo trata ainda da atuação e da proximidade dos sindicatos com as políticas governamentais — levando, em partes, a seu esvaziamento das demandas tradicionais e, por outro lado, a uma reativação da mobilização sindical por meio de suas bases. “Essa ação política do precariado brasileiro tende, cada vez mais, a assumir ares de protagonismo. O precariado já é e continuará sendo protagonista em um futuro previsível”, defende.

Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. É autor do livro A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos pensar a relação entre Estado e trabalho durante esses quase 12 anos de governo do PT no Brasil?

Ruy Braga – A relação obedece a diferentes níveis. O nível mais celebrado pelo governo é o da formalização do emprego. Nos últimos 10 ou 12 anos houve um processo crescente de formalização, o que significa que uma parte daquela população que estava fora do âmbito dos direitos foi absorvida pelo mercado formal de trabalho, com a criação de milhares de empregos formais, o que é positivo, evidentemente. Trata-se, portanto, de uma tendência positiva. Por outro lado, há um endurecimento das condições de trabalho, que é a contrapartida desta formalização, um aumento muito acentuado na rotatividade do trabalho e no número de acidentes laborais. Isso significa que a formalização como tendência positiva é contrabalançada pelas condições de consumo da força de trabalho que aponta para uma dimensão negativa. Ainda há a incorporação entre os sindicatos, os governistas, principalmente aqueles filiados à Central Única dos Trabalhadores, e o aparelho de Estado, e, além disso, há uma parte da absorção da elite sindical do Brasil pelos fundos de pensão.

Há, enfim, uma realidade muito complexa em que há ganhos — a formalização e o aumento da renda — e, ao mesmo tempo, perdas em relação ao endurecimento às condições de trabalho, aliado à incorporação estatal dos sindicatos.

IHU On-Line – Há diferenças entre o precariado antes e depois do governo do PT? Quais?

Ruy Braga – Na década de 1990, uma parte importante do precariado foi constituída a partir da reorganização produtiva das empresas, que foi, também, um período de reajuste da economia nacional à globalização capitalista. Isso ocorre em um período de terceirização da força de trabalho muito intenso, associado às tecnologias de informação, à precarização das condições de contrato – o que acabou -, em um contexto de privatização das multinacionais, refluxo dos direitos sociais, aumento do desemprego e da informalização, criando uma massa trabalhadores precarizados.

Trata-se de uma marca do mercado de trabalho brasileiro da década de 1990. Essa massa, criada pela contratualização, pelo aumento do desemprego e pela desestruturação do mercado de trabalho, foi, de alguma maneira, reabsorvida pelo mercado formal de trabalho nos anos 2000, só que em condições muito degradadas de consumo da força de trabalho.

Há pelo menos 20 anos não existe ganho significativo de produtividade na massa de trabalho brasileira, e isso faz com o que emprego criado seja um emprego de baixa qualidade. Existem diferenças entre o precariado dos anos 1990 e o dos anos 2000. No entanto, há elos de continuidade, de ligações que apontam para processos de permanência desta condição.

“Há pelo menos 20 anos não existe ganho significativo de produtividade na massa de trabalho brasileira”

IHU On-Line- De que maneira se dá a relação entre trabalhadores, sindicatos e governo nestes últimos 12 anos? Que reconfigurações a gestão petista trouxe a este cenário?

Ruy Braga – Existe uma nova realidade no mundo do trabalho no Brasil, do ponto de vista da relação entre trabalhadores, sindicatos e governo. Os sindicatos estão muito próximos das políticas governamentais, têm influenciado tais políticas e, até certo ponto, têm conseguido pautar questões do mundo do trabalho.

Essa proximidade faz com que demandas importantes originárias na base sindical sejam deixadas de lado. Isso naturalmente implica uma reativação da mobilização sindical por meio de suas bases. Há uma situação bastante complexa, na qual esta tendência de mobilização das bases pressiona as cúpulas sindicais, que por sua vez buscam responder a estas pressões, tendo em vista, por exemplo, o aumento do salário mínimo, créditos e garantia de emprego, mas que acabam não dando conta disso e que, de alguma maneira, estimulam as bases a aumentar o nível de pressão.

Para tanto, basta pensarmos que, a partir de 2008, existe uma curva do número de greves que só aumenta e que atinge níveis históricos em 2012 e 2013, tendo em vista justamente essa pressão das bases.

Tal tensionamento procura responder a realidade degradante do emprego, dos baixos salários que os trabalhadores encontram e pressiona o sindicato, que por sua proximidade com o governo tenta responder às demandas. Porém, o Estado não é capaz de responder a estas demandas, e isso retroalimenta o ativismo de base, o que gera uma situação explosiva de automobilização, que deriva de uma espécie de bloqueio das demandas que vêm do sindicalismo não governista. Um dos exemplos disso é a greve dos garis, na cidade do Rio de Janeiro, uma tendência que se identifica em todo o país, quer seja nos canteiros de obras, quer seja no setor bancário, de serviços, etc.

IHU On-Line – Pode-se dizer que, atualmente, a força política do precariado está nas bases do movimento sindical? Como ela tem se manifestado nos 12 anos de governo do PT?

Ruy Braga – Tenho certeza absoluta de que a força política dos trabalhadores depende da ação dos setores mais precarizados, aqueles que de fato experimentam e vivenciam o outro lado do modelo de desenvolvimento econômico, desde o ponto de vista da distribuição de renda e do aumento da massa salarial. Este ponto está relacionado à condição de precariedade em múltiplos setores da classe trabalhadora, principalmente vinculado aos serviços. Essa ação política do precariado brasileiro tende, cada vez mais, a assumir ares de protagonismo. O precariado já é e continuará sendo protagonista em um futuro previsível.

As greves nos grandes canteiros de obras do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e PAC-2, que têm ocorrido desde 2011, são um exemplo deste protagonismo. As greves que temos registrado nas cidades, de setores que notoriamente não fazem greve, como é o caso dos garis no Rio de Janeiro, e mesmo de setores sindicalizados, mas muito precarizados em termos de renda e condições de trabalho, como o caso dos professores do ensino fundamental, demonstram, em termos práticos, que o precariado brasileiro é protagonista político.

“A partir de 2008, existe uma curva do número de greves que só aumenta e que atinge níveis históricos em 2012 e 2013, tendo em vista justamente essa pressão das bases”

IHU On-Line – De que maneira o avanço tecnológico impacta na organização do trabalho precarizado? Que exemplos podem ilustrar essa mudança?

Ruy Braga – Do ponto de vista do meio ambiente empresarial, o impacto é flagrante, uma vez que o processo tecnológico é responsável pelo processo de terceirização, de transformação da empresa, outrora centralizada e hierarquizada, em uma organização em rede, centralizada pelas finanças e que multiplica os dispositivos de controle. Isso faz com que a massa de trabalhadores submetidos a condições contratuais ou salariais, que são piores que as do passado, aumente. As terceirizações são um exemplo disso. Normalmente as empresas contratadas oferecem condições de trabalho piores do que as que se verificavam no interior das empresas contratantes.

Atualmente, ao olharmos para grandes canteiros de obras — de Jirau a Belo Monte —, o que se vê é uma miríade de empresas trabalhando em volta delas, onde há trabalhadores com as mesmas características e funções, mas cada um deles recebendo um salário diferente. Isso gera uma fragmentação contratual muito grande dessa massa de trabalhadores, gerando um cenário mais complexo da organização sindical, da composição dos trabalhadores e que, evidentemente, leva a uma tendência e aprofundamento do uso das tecnologias.

IHU On-Line – Tendo em vista o enfraquecimento do movimento sindical no que diz respeito ao envio das demandas dos trabalhadores às instâncias competentes, como o Estado, por exemplo, ficou a cargo de quem o espaço de tensionamento social que em outras décadas era ocupado pelos próprios sindicatos?

Ruy Braga – Eu não tenho dúvida de que esse espaço foi ocupado pelos movimentos sociais urbanos. Atualmente, há um conflito urbano que está muito associado ao problema de espoliação do solo urbano, da acumulação em setores da construção civil, da especulação imobiliária, etc., que acaba protagonizando uma onda de renascimento dos movimentos sociais, que não havia desde as décadas de 1970 e 1980 no Brasil. Hoje a luta pela moradia é uma questão central. Tem também a luta pelo transporte coletivo, pelo direito à cidade, a luta das periferias que se organizam, a luta pela autodeterminação nas periferias, e a luta contra a violência policial aparece nesses coletivos das comunidades. Isso tudo tem um impacto marcante na dinâmica do conflito social no país.

Então eu diria que o Movimento dos Trabalhadores Sem-teto , a Frente Nacional de Luta por Moradia , os movimentos que já existiam e vimos emergir notoriamente em 2013, como o Passe Livre , mostram que os movimentos sociais urbanos estão muito vivos e pressionando essa dinâmica social do conflito no Brasil. Por que isso ocorre? O movimento sindical continua muito tradicional, focado em pautas que são mais tradicionais, associadas à questão salarial, ao pagamento de direitos que não estão sendo respeitados, problemas relativos às dinâmicas internas, privadas das respectivas empresas e locais de trabalho.

Quem tem assumido um protagonismo público são os movimentos sociais urbanos, na luta por direitos, por moradia, por acesso às cidades, por uma vida digna, menos precária nas periferias, e, principalmente, as mobilizações contra a violência policial. Esta última tem se tornado um modelo de regulação do conflito urbano.

IHU On-Line – De que maneira essa mobilização urbana gera impacto no mundo do trabalho?

Ruy Braga – Gera impactos no mundo do trabalho, pois as pessoas que participam destes movimentos também são trabalhadores. Estão empregados em condições de remuneração precária e isso tudo faz com que o ciclo se feche. As demandas por aumento salarial e por uma vida mais digna na cidade, nas periferias, a luta pela moradia se articula com a luta por melhores condições de trabalho. Há um grande ciclo de mobilizações pelas causas da população subalterna do país.

(Por Ricardo Machado e Andriolli Costa | Colaborou Cesar Sanson)

(EcoDebate, 29/04/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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