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Uma crise ditada pelas leis do mercado. As bolhas financeiras segundo André Orléan

Christian Marazzi, professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade della Svizzera Italiana, comenta o livro Da euforia ao pânico, de André Orléan, economista francês, que juntamente com Michel Aglietta é autor do clássico A violência da moeda, estudado e debatido no Ciclo de Estudos Clássicos da Economia, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O comentário foi publicado pelo jornal Il Manifesto, 20-02-2010. A tradução é de Benno Dischinger.

Por sua vez, Christian Marazzi é autor de livros como Autonomia (Cambrigde: Mit Press, 2007) e Capital and language (Cambrigde: Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt e Gregory Conti. A obra O lugar das meias. A virada linguística da economia e seus efeitos na política (São Paulo: Civilização Brasileira, 2009) foi traduzida, finalmente, para o português no ano passado.

Eis o comentário.

A casa editora Ombre Corte recém publicou o livro Da euforia ao pânico do economista francês Andrè Orléan, uma pequena jóia de inteligência analítica e rigor científico de um autor ainda pouco conhecido na Itália, embora seus trabalhos sejam há tempo reconhecidos, e não só na França, como fundamentais para a compreensão crítica do funcionamento das finanças contemporâneas.

A introdução de Andrea Fumagalli e Stefano Lucarelli, que com Hervé Baron organizaram a tradução ao italiano, descreve de modo impecável o percurso teórico de Orléan, evidenciando sua originalidade num contexto acadêmico ainda amplamente dominado pela teoria liberalizante da eficiência dos mercados financeiros, a idéia segundo a qual somente a persecução do interesse privado está em condições de construir por si mediações financeiras eficazes.

As crises que há trinta anos pontuam em ritmos crescentes a expansão dos mercados financeiros em escala mundial, contam-nos uma história bastante diversa, a saber, que nos mercados financeiros o princípio da concorrência perfeita postulada pela teoria neoclássica não vigora por causa da própria natureza dos bens que de quando em quando são objeto da demanda dos investidores, sejam eles os bens imateriais das tecnologias ‘internetianas’, ou os bens imobiliários da mais recente onda especulativa dos mútuos subprime. As crises, sustenta Orléan, “não são incidentes devidos a comportamentos irracionais ou a defeitos institucionais, estas explosões sistemáticas devem ser compreendidas como o resultado do livre jogo das forças concorrenciais, toda vez que estas se apliquem às atividades financeiras.

De fato, nos mercados das atividades financeiras o aumento da demanda de um bem faz aumentar o preço, mas, diversamente de quanto acontece nos mercados das mercadorias ordinárias segundo a lei da demanda e da oferta, este aumento faz crescer ulteriormente a demanda, em vez de reduzi-la! Um bem como a casa, se pensamos na crise dos mútuos subprime, não é somente um valor de uso, mas é um valor financeiro cuja demanda gera um acréscimo do seu rendimento sob a forma de mais-valia, o que a torna ainda mais atraente aos olhos dos investidores. Quando as comunidades dos investidores concentram sua cobiça sobre determinados títulos, os mercados tornam-se auto-referenciais, isto é, movem-se segundo modalidades que nada têm a ver com a assim dita economia real. “Uma vez iniciado, este processo produz fortes desordens porque todo incremento impele a um ulterior incremento e consegue um vertiginoso aumento do preço, que se chama ‘bolha’” Os mercados, por assim dizer, enlouquecem, mas isso é de todo coerente com o princípio da concorrência aplicado às finanças. Resulta que a crise “não é devida ao fato de as regras do jogo financeiro terem sido contornadas, mas ao fato de terem sido seguidas”. A crise, em outras palavras, é endógena, não é imputável exclusivamente a fatores externos, nem à famigerada ‘outorgação’ dos mútuos bancários que tanto contribuiu para inflar o mercado imobiliário estadunidense, transformando os créditos (não só os hipotecários) em títulos líquidos negociáveis nos mercados financeiros.

Graças à desregulamentação de todos os mercados dos capitais e à privatização crescente dos bens públicos, a financiarização transformou sempre mais valores de uso em bens (títulos) financeiros sujeitos à especulação. Neste processo, a financiarização tem imposto sua lógica ao mundo inteiro, fazendo da crise o fundamento de seu próprio modo de funcionar. É um processo, esse da financiarização, de inclusão e depois de exclusão, de extensão do modo capitalista de produção a mercados pré-capitalistas, e de sucessiva expulsão e pauperização daqueles que neste processo foram privados do acesso aos bens comuns. Uma espécie de reedição contínua da acumulação primitiva, de cercamento das terras (bens) comuns e de proletarização de massas crescentes de cidadãos.

A originalidade da análise de Orléan, que remonta aos seus primeiros trabalhos teóricos desenvolvidos com Michel Aglietta, em particular La violence de la monnaie [A violência da moeda] de 1982, está em demonstrar como os mercados financeiros procedam de uma bolha à outra na base de “convenções coletivas”, verdadeiras e próprias eleições de bens-títulos que, de quando em quando, desencadeiam movimentos especulativos contagiosos pelo assim dito mimetismo dos investidores em busca dos representantes da riqueza universal. O comportamento mimético impele os homens a querer apoderar-se do que o outro reconhece como precioso, de modo que, no final, a imitação generalizada converge para uma crença comum sobre o que pode constituir-se como a liquidez absoluta.

O conceito de convenção financeira é de Keynes, e é particularmente útil para entender as ondas especulativas dos últimos anos, da convenção intermediária àquela dos mútuos subprime, e à convenção dos mercados emergentes. Ainda mais útil é analisar, como fazem Orléan e Aglietta, a origem da convenção, em primeiro lugar do dinheiro como convenção absoluta, recorrendo à teoria antropológica de René Girard, na qual a mercadoria eleita como “mercadoria universal”, ou seja, a moeda é o resultado da transposição da violência social ao plano institucional. Ou seja, a moeda é um meio para negar ou sublimar a violência essencial, é princípio de soberania e ao mesmo tempo veículo de uma violência potencial, uma violência que pode desencadear-se nas mais variadas formas, da hiperinflação à deflação e à crise.

A gestão institucional da crise financeira desencadeada em 2007-2008, em particular a criação em escala mundial de uma bolha soberana de proporções gigantescas que está pondo em risco os últimos direitos sociais e o acesso aos bens comuns, demonstra quanto seja verdadeira a teoria de Orléan. Ela não só nos permite entender o modo de funcionamento dos mercados financeiros, mas nos recorda que a violência é sempre constitutiva da soberania.

(Ecodebate, 03/03/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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