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A crise que irrompe no reino dos indivíduos. Entrevista com Alain Touraine

O eclipse do modelo neoliberal de globalização produz desemprego e uma difusa precariedade, mas não coincide com o retorno ao capitalismo dos estados nacionais. Quando muito alimenta um renovado individualismo que vê mulheres e homens em movimento para afirmar os próprios direitos, um estilo de vida comunitário ou uma identidade cultural e religiosa.

O jornal italliano Il Manifesto publicou, no dia 17-02-2010, uma entrevista com o sociólogo francês Alain Touraine. A entrevista é de Benedetto Vecchi. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis a entrevista.

Em seu livro “Pensar Outramente” o senhor sustenta que a sociedade não mais existe, enquanto o indivíduo se tornou a figura que melhor explica as profundas tendências do viver coletivo…

A sociedade não mais existe como instrumento analítico. O individuo ao qual me refiro não deve, no entanto, ser considerado uma via de saída das dificuldades de se representar analiticamente a sociedade. Parto da constatação que no capitalismo existe a forte tendência de individualizar tudo, dos consumos às relações de trabalho. Poderemos falar de uma sociedade de indivíduos, mas, assim fazendo, alimentam-se muitos equívocos. É, portanto, necessário articular melhor as tipologias emergentes de indivíduo.

Existe o “indivíduo consumidor”, para o qual as empresas olham com atenção para melhor afinar suas estratégias de marketing. Há, depois, homens e mulheres que, enquanto indivíduos, querem viver com quem tem as mesmas convicções religiosas ou identidades culturais. Esta é a tipologia do “indivíduo comunitário”. Há, enfim, quem quer afirmar os próprios direitos, considerando-os direitos universais. Aqui encontramo-nos diante de “sujeitos” entendidos iluministicamente.

A co-presença destes três tipos de indivíduos pode ser mais bem compreendida se fizermos referência ao conceito de Anthony Giddens sobre a modernidade reflexiva. O estudioso inglês sustentou que as modernas sociedades capitalistas desenvolveram uma capacidade reflexiva sobre as conseqüências das escolhas tomadas coletivamente. Por isso, tanto a escolha como os procedimentos para aplicá-la são fortemente condicionados por tal capacidade reflexiva. Uma tese que merece ser aplicada ao indivíduo, porque todas as três tipologias que o ilustram manifestam tal “refletividade”. Assim, os consumidores não são presas inermes das estratégias de marketing, mas desenvolvem uma capacidade própria de autonomia do mercado. O mesmo se pode dizer dos “indivíduos comunitários”, que não consideram sua comunidade eletiva uma jaula”.

Há, no entanto, tipologias que podem ser atravessadas pela mesma pessoa. Um indivíduo pode autorrepresentar-se como consumidor, mas também como  expoente daquele comunitarismo que se orienta pelo conceito “eu – nós”, ou então, como sujeito portador de direitos.

Elas me parecem, ao invés, tipologias impermeáveis. Por mais sugestiva que seja a tese de Giddens sobre a modernidade reflexiva, isso não elimina o risco que tanto o indivíduo-consumidor, como o indivíduo comunitário e o sujeito se fechem em si mesmos. Além de reflexiva, nossa sociedade é uma sociedade simbólica. Quanto ao passado, os indivíduos produzem e controlam a produção dos símbolos que consideram relevantes em sua vida. Podemos dizer que cada um deseja ser reconhecido também como produtor de símbolos. A luta pelo reconhecimento pode conduzir a um fechamento com relação ao Outro, àquela impermeabilização que vejo operante na realidade contemporânea.

Além da morte da sociedade, o senhor sublinha o eclipse dos movimentos sociais…

Mais do que eclipse, existe a crise do paradigma que via os movimentos sociais como expressão de determinados interesses econômicos, de grupo ou de classe. A  muitos anos eu sublinho a relevância dos temas culturais e da identidade nos movimentos sociais. Mas, suponho que você quisesse perguntar-me se também esta leitura dos movimentos sociais tenha entrado em crise. Bem, creio que tenha havido uma mudança importante. Quem participa dos movimentos sociais não está interessado apenas em qualificá-los do ponto de vista da cultura ou da identidade que quer reconhecimento. Entra também um forte componente de afetividade, de cuidado de si e do outro, como emerge, por exemplo, dos movimentos feministas.

Nestes dias, encontrei alguns homens e mulheres que vocês na Itália chamam o “povo viola”. Ficaram golpeados pelo pathos, pela insistência sobre o cuidado da democracia, da constituição política, do elo social. Esta afetividade é que é a verdadeira novidade. Mais do que falar de movimentos sociais, podemos dizer que há homens e mulheres dispostos a pôr-se a caminho.

Esta idéia de pôr-se a caminho, em viagem, é muito zapatista, um movimento que o senhor estudou…

Os zapatistas realizaram uma ruptura com as velhas concepções da guerrilha latino-americana. Preferiram a expressão “caminhar, indagando”. Nisto prefiguravam que não existia uma realidade social organizada e pré-definida, mas homens e mulheres dispostos a pôr-se, como você diz, em movimento. De formas diversas, acontece também junto a nós que a gente se ponha a caminho para afirmar direitos, identidades culturais, estilos de vida”.

O estudo das sociedades sempre se nutre de imaginação: uma imaginação com o fim de conceituar realidades, fenômenos não contemplados pelo acúmulo analítico herdado do passado. Há dois anos aconteceu um imprevisto, a crise econômica. Não lhe parece que este fenômeno inesperado ponha em discussão suas tipologias sobre o indivíduo?

Segui com muito interesse as discussões sobre a incapacidade dos economistas de prever a crise. E me impressionou a explicação dada. Para alguns, o encontro da perspectiva neo-keynesiana com a neoclássica incentivou o uso de modelos matemáticos que não tinham nenhuma relação com a realidade.

Mas, além desta explicação, houve economistas, não suspeitos de extremismo, que, ao invés da possibilidade de crise, escreveram sobre ela. Refiro-me a Amartya Sen, Paul Krugman e Joseph Stiglitz que, para explicar o que depois efetivamente aconteceu, usaram ordens do discurso que tinham poucos pontos de contato com a economia. A crise, a meu ver, não põe em discussão esta centralidade do indivíduo. Existe antes o risco que ela acentue os riscos do fechamento, a impermeabilização de cada uma das diversas tipologias das quais falei acima.

No entanto, existe uma crise que tem efeitos telúricos, tanto social como politicamente. O senhor sustentou que a globalização era um fenômeno irreversível. Pergunta de advogado do diabo: não é que a crise tenha posto em movimento um fenômeno de desglobalização?

Realmente não estou convencido disso. O que entrou em crise é o modelo de globalização neoliberal da hegemonia estadunidense.

Não pode, todavia, negar que a crise ponha em discussão o equilíbrio entre dimensão global e dimensão local, onde o global comandava sobre o local?

Prefiro falar de dimensão ‘glocal’, embora seja um termo pouco atraente. Nos anos passados, os teóricos neoliberais da globalização sempre falaram de exautoração, se não de fim do Estado nacional. Era uma tese errada. O Estado-nação sempre desempenhou papel importante na globalização. Não só de interface entre dimensão global e dimensão local, mas como processo de adaptação glocal. O Estado foi importante porque constituiu o âmbito de manutenção da democracia ante o poder da economia. Além disso, procurou salvaguardar aqueles direitos sociais de cidadania que caracterizaram as sociedades capitalistas. A crise pode ter efeitos telúricos não no que se refere à globalização, ou seja, àquela estreita interdependência entre economias e realidades sociais nacionais, mas precisamente para a democracia. Um dos efeitos pode ser, ao invés, o emergir de estados autoritários e antidemocráticos no cenário global.

A crise significa também desemprego. Na França assistimos a conflitos em que operários seqüestravam dirigentes de empresas, ameaçando fazer explodir os estabelecimentos. Além da dramaticidade da situação, emergia uma realidade operária que podia ser mais bem explicada com o mecanismo da revolta dos poderes. O que pensa disso?

Também segui com interesse alguns conflitos operários na Itália, onde os trabalhadores andavam sobre os telhados das fábricas: quando existe crise, o movimento operário sempre está em dificuldade e talvez possa escolher formas de luta que pertençam à cultura política do próprio movimento. Sempre foi assim. Mas, devemos considerar também o fato que a globalização neoliberal significou aumento da precariedade. Talvez estejamos assistindo a formas de luta de um movimento operário em que a maioria dos trabalhadores viva a precariedade. No momento, são espetaculares, mas não violentas. Não é dito que com a crise as coisas não mudem.

(Ecodebate, 01/03/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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