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MMA libera Belo Monte sem conhecer os impactos da obra

Área de Belo Monte, no rio Xingu. Foto do MPF
Área de Belo Monte, no rio Xingu. Foto do MPF

Licença publicada no dia 1º de fevereiro de 2010 demonstra que questões centrais para avaliar o impacto da obra ainda não estão esclarecidas. Parecer Técnico do Ibama, do final de novembro de 2009 e que não foi disponibilizado na internet, denunciou pressão política da Presidência da República para liberar a obra e indicou que os estudos, superficiais, não conseguem prever o que acontecerá com os peixes num trecho de mais de 100 km de rio, e conseqüentemente com as pessoas que deles sobrevivem, sobretudo as comunidades indígenas ribeirinhas. Também revelou que não há medidas suficientes para controlar o afluxo de pessoas, que podem colapsar os serviços públicos e aumentar a disputa pela terra na região, já conhecida pela violência no campo.

O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias, anunciaram, em entrevista coletiva à imprensa nessa segunda-feira (1/2), a liberação da licença ambiental para construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no Rio Xingu (PA).

O maior empreendimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) deve custar 30 bilhões de reais e tem previstos 1 bilhão e meio de reais para ações mitigadoras, contrapartidas e medidas socioambientais. Apesar de ser anunciada como a terceira maior hidrelétrica do mundo, em virtude da estimativa de produção de 11 mil mega-watts (MW), essa capacidade de geração só ocorrerá no auge da cheia. No restante do ano, a usina deve gerar pouco mais de 4 mil MW.

Com 40 condicionantes, a Licença Prévia (LP) permite a realização do leilão de Belo Monte, ainda sem que importantes impactos tenham sido identificados. Como é possível atestar a viabilidade de uma obra e anunciar valores de mitigações sobre o que ainda não se conhece?

Quando, semanas atrás, o ministro do Meio Ambiente anunciou que estava tudo certo para que o Ibama desse, em fevereiro, o aval para a construção da UHE Belo Monte, no Rio Xingu (PA), todos imaginaram que faltavam apenas questões burocráticas para a licença. Porém, o vazamento de um parecer técnico, elaborado pela equipe que analisa os estudos de impacto ambiental, aponta para problemas muito mais sérios do que a falta de um carimbo ou de uma autorização qualquer.

O Parecer Técnico nº. 114/2009 (veja principais trechos aqui http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/AHE_BeloMonte.pdf ), de 23 de novembro de 2009, que não está disponível no site do órgão, expõe que “tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas. Além disso, a discussão interdisciplinar entre os componentes desta equipe ficou prejudicada. Essas lacunas refletem-se em limitações neste Parecer”.

Em outras palavras, a equipe estava dizendo que não só não foram levados em consideração as contribuições, dúvidas e questionamentos apresentados pela população que compareceu às audiências públicas realizadas em setembro de 2009, como não se sabe o que ocorrerá com as populações indígenas que vivem à beira do rio, e que dele dependem para alimentação e transporte. Mas não é só isso. O documento apontava uma série de graves problemas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Aproveitamento Hidrelétrico (AHE), que impediriam uma decisão responsável:

• ” O estudo sobre o hidrograma de consenso não apresenta informações que concluam acerca da manutenção da biodiversidade, a navegabilidade e as condições de vida das populações do TVR (trecho de vazão reduzida). A incerteza sobre o nível de estresse causado pela alternância de vazões não permite inferir a manutenção das espécies, principalmente as de importância socioeconômica, a médio e longo prazos. Para a vazão de cheia de 4.000m3/s a reprodução de alguns grupos é apresentada no estudo como inviável;

• Os impactos decorrentes do afluxo populacional não foram dimensionados a contento. Consequentemente, as medidas apresentadas, referentes à preparação da região para receber esse afluxo, não são suficientes e não definem claramente o papel dos agentes responsáveis por sua implementação;

• Há um grau de incerteza elevado acerca do prognóstico da qualidade da água, principalmente no reservatório dos canais.”

Menos de dois meses depois, com recesso de Natal e Ano novo no meio, veio a licença, justo no primeiro dia de fevereiro, como o ministro do Meio Ambiente, e candidato a deputado, havia prometido à Casa Civil.

Minc disse que nem pressão política nem o ano eleitoral tiveram influência na liberação da licença. Ele afirmou que a LP apenas define se é possível fazer a obra mas que é a Licença de Instalação (LI), próxima fase do processo de licenciamento, que vai determinar o “como fazer”: “A Licença Prévia permite fazer o leilão mas não permite começar a obra, isso depende da Licença de Instalação. E para essa licença sair, várias coisas tem de ser cumpridas”. Dentre tais “coisas” deverão estar a necessidade de conhecer e divulgar os impactos sobre as terras e comunidades indígenas na Volta Grande do Xingu e no Rio Bacajá, sobre a qualidade da água na região de Altamira e sobre a flora e fauna locais. Sem essas informações, não é possível definir os programas e ações de mitigação e compensação com o devido compromisso socioambiental a que se refere o ministro.

Questões não respondidas

Na coletiva organizada para divulgar a licença foram destacados o número de condicionantes – 40 – e o valor das medidas mitigadoras – R$ 1,5 bi “aproximadamente”. Mas como numa avaliação de impacto ambiental a questão não é quantidade, mas qualidade, é importante ver se as questões centrais ainda em aberto levantadas no parecer de novembro foram resolvidas.

Um dos pontos mais importantes diz respeito ao Trecho de Vazão Reduzida (TVR). São mais de 100 km de rio que viverão uma “eterna seca” por conta do desvio do rio, por meio de imensos canais, até a casa de força. Nesse trecho estão localizadas duas Terras Indígenas (TIs) e algumas centenas de famílias ribeirinhas, que dependem do rio para comer e se transportar. Ele também abriga uma rica biodiversidade aquática (peixes e quelônios).

Quanto mais água for artificialmente liberada para esse trecho – “hidrograma do TVR”, no jargão técnico – melhor para a fauna e para as pessoas do local, mas pior para a geração hidrelétrica, pois menos água estará disponível para girar as turbinas. Dependendo de quão grave será a seca, a vida nesse trecho poderá ser inviabilizada, o que significa que deverá haver remoções e indenizações para as pessoas, e lamentos para perda da fauna aquática. Sabendo que a hidrelétrica reduzirá drasticamente sua capacidade de geração nos meses secos, pois não terá reservatório de acumulação, é previsível que venha a existir uma intensa disputa pela água entre a empresa que a gerir – a ser definida no leilão que ocorrerá nos próximos meses – e as comunidades locais. Como é improvável que estas últimas vençam essa disputa, é função do órgão ambiental arbitrar o “hidrograma”, de tal forma que a vida continue sendo possível nesse trecho, mesmo que alterada.

Em novembro, o Ibama dizia que os estudos sobre o “hidrograma de consenso” (não é possível aferir entre quem) não permitiam responder a essa questão básica. Agora, na licença, afirma que ele “deverá ser testado após a conclusão da instalação da plena capacidade de geração da casa de força principal”, mas que “a identificação de importantes impactos na qualidade de água, ictiofauna, vegetação aluvial, quelônios, pesca, navegação e modos de vida da população da Volta Grande poderão suscitar alterações nas vazões estabelecidas e conseqüente retificação na licença de operação”. Pelo que é possível inferir – o parecer técnico que subsidiou a licença também não está disponível na internet – a questão simplesmente não foi resolvida, mas a obra foi liberada com o compromisso de que, depois de pronta, se houver problema, será determinado o aumento da vazão nesse trecho, e portanto menos geração de energia.

Outro ponto importante diz respeito à qualidade da água nos mais de 500 km2 de áreas a serem inundadas. O parecer de novembro apontava “elevado grau de incerteza” sobre qual será a qualidade da água. A licença prévia resolveu esse problema exigindo da Eletrobrás que garanta “a manutenção da qualidade da água (…) adotando as medidas necessárias”. Ou seja, aparentemente aqui também não se sabe o que vai acontecer. A função do EIA/Rima é exatamente apontar qual será a qualidade da água, e se essa estiver fora dos parâmetros legais, ou muda-se o projeto ou o rejeita. Nesse caso, no entanto, o Ibama adotou o princípio do “deixa do que jeito que está para ver como é que fica”. Como pode a empresa garantir a qualidade da água se ela é derivada de um projeto que já foi aprovado e construído de determinada forma? Depois de construído não tem como mudar, veja-se o caso de Barra Grande.

A situação indígena

Questionado sobre o parecer do Ibama, que apontava falhas em diversos pontos dos estudos, inclusive na avaliação de questões indígenas, Minc disse que a responsabilidade, nesse caso, é da Funai: “A Funai fez um relatório conclusivo a respeito… Os citadinos vão ser contemplados, indenizados e ter melhorias como a população urbana. Não vai ter um índio de Terra Indígena (TI) deslocado. Nenhuma TI vai ser inundada. Essas populações de aldeias – cerca de 300 índios – vão ser impactadas indiretamente, ao mudar o sistema hídrico, com ganhos e perdas – vão poder navegar numa áreas q não tinha navegação e ter mais terra firme pra caçar em outra área, por exemplo”.

O novo diretor de Licenciamento, Pedro Bignelli, disse que o parecer da Funai não aponta diretamente nenhuma grande influência nos índios: “Não existe, portanto, nenhuma condicionante diretamente ligada a comunidades indígenas. Mas várias que atingem indiretamente: com a preservação da tartaruga, se está protegendo o índio que se alimenta do ovo. Em nenhum momento está previsto secar a Volta Grande. Vai ter a vazão reduzida, mas exatamente pra isso estão previstas as condicionantes”. Segundo ele, não existe previsão de deslocamento de indígenas de TIs: “Durante a seca, uma das alternativas que se aventa é um elevador, para elevar pequenas embarcações. Ainda está sendo analisado o quanto vai diminuir. São estudos que se prolongam com o tempo e as condicionantes abarcam isso”. Perguntado se a licença está sendo concedida mesmo havendo ainda impactos a serem identificados, ele respondeu que sim: “Há impactos que o empreendedor diz que não tem e nós não temos condições de dizer que tem, o que demanda continuação. Este é um processo dinâmico, a LP reporta à viabilidade do projeto até se chegar à LI”.

O diretor do Ibama insistiu em dizer que o parecer 114 havia sido superado e que, em nenhum momento, indicava a inviabilidade do projeto. As questões , treze pontos no total, teriam sido respondidas pelos empreendedores durante os meses de dezembro e janeiro, atendendo inteiramente às dúvidas apresentadas pelos técnicos do Ibama. Os empreendedores também já teriam respondido a todas as questões dos movimentos sociais e do painel de especialistas que analisou o EIA. No entanto, em documento assinado pelas empresas Eletrobrás, Camargo Correia, Andrade Gutierrez e Odebrecht , para responder os questionamentos apresentados pelos movimentos sociais do Xingu, importantes questões ficaram sem resposta: não há, por exemplo, menção de medidas a serem adotadas para a questão do aumento da pressão fundiária, especialmente nas terras indígenas, e para resolver a desordenada ocupação e uso dos recursos naturais em decorrência do aumento populacional que a obra trará. Por outro lado, algumas soluções apresentadas parecem beirar a ilegalidade e contradizem a declaração do próprio ministro na coletiva, de que ‘não vai ter nem um índio de TI deslocado e nenhuma TI será inundada”. A resposta dos empreendedores cita a realocação de famílias indígenas que serão compulsoriamente deslocadas em razão do alagamento provocado no trecho do reservatório da calha do rio na Volta Grande do Xingu (resposta 4, p. 20). A Constituição Federal veda a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional.

Ainda sobre a questão indígena, Bignelli se esquivou de aprofundar o tema: “a Funai esclareceu que foram atendidas todas as exigências da lei e, em paralelo, tudo o que atinge os indígenas foi contemplado nas 40 condicionantes – na alimentação, na navegabilidade… De forma indireta, já que é pra todo mundo , não é só para os indígenas.” No entanto, o parecer da própria Funai, apesar de concluir pela viabilidade da obra, afirma que seriam necessárias informações complementares para permitir a completa avaliação dos impactos da obra sobre os povos indígenas e que o EIA/Rima não esclarece de que forma os gravíssimos impactos já identificados serão evitados ou minimizados.

Talvez se tivesse mais tempo…

O presidente do Ibama, Roberto Messias, disse que o processo de licenciamento não pode ser considerado ideal e que poderia ter havido mais audiências e mais tempo para análise, mas que, dentro dos parâmetros legais, tudo foi feito e considerado: “Nós sabemos que na história das hidrelétricas do Brasil tem um passivo de não cumprimento de condicionantes, mas hoje o processo é muito mais aberto. Tem seus defeitos? Pode ter. Talvez se tivesse mais tempo… Mas, qualitativamente o que tinha de ser feito foi feito. Pode ter grupos que achem que a licença não deveria ter sido dada. Pressão tem de todos os lados, mas isso não interfere, a gente lida com isso.”

A concessão da licença com as condicionantes apenas corrobora o fato de que o projeto original de Belo Monte em seus Estudos de Impacto Ambiental não incorporaram todas as variáveis que seriam necessárias para evitar maiores impactos socioambientais. Isso não chega a ser uma novidade na história brasileira. O mesmo já ocorreu com a hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins. A diferença é que aquela foi uma obra planejada pelo governo militar, numa época em que não havia estudo de impacto ambiental e que os direitos das populações locais pouco importavam. Hoje, porém, temos direitos constitucionalmente garantidos e um sistema de avaliação de impacto ambiental estruturado exatamente para evitar que absurdos como aquele voltem a se repetir. Mas parece que os interesses econômicos e políticos vão sobrepujar a institucionalidade construída. Já no ano passado foi dado o primeiro sinal, com o pedido de demissão dos responsáveis pela análise dos estudos ambientais, o diretor de licenciamento, Sebastião Custódio Pires, e o coordenador de infraestrutura de energia elétrica, Leozildo Tabajara da Silva Benjamim.

Portanto, é bom que a sociedade se prepare. Ao que tudo indica, ao contrário do prometido, a Presidência da República empurrará a obra goela abaixo da sociedade, mesmo sem saber se é viável. A autorização dada pela Funai no final do ano passado,sem consulta aos povos indígenas e sem saber o que acontecerá com eles, já era um claro sinal de interferência política no processo técnico de avaliação de impactos. Com a licença emitida ontem, já não há mais dúvidas.

Informe do ISA, Instituto Socioambiental, publicado pelo EcoDebate, 04/02/2010

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