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A caatinga para o canavial, artigo de Agripino Souza Coelho Neto e Ely Souza Estrela

A caatinga para o canavial

[EcoDebate] A produção açucareira ocupou um lugar central durante a colonização do Brasil. Seu processo produtivo mereceu destaque nas clássicas obras de Caio Prado Júnior (1956) e Celso Furtado (1968), que ofertaram um esforço de interpretação do Brasil, como também no trabalho de Francisco Oliveira (1977), na explicação da ação do Estado na Região Nordeste do Brasil e sobre o papel das elites regionais, dentre elas, a açucareira, na manutenção da estrutura produtiva, socioeconômica e de poder. A “cultura do açúcar” representou mais que uma base da economia colonial nos séculos XVI e XVII, produziu uma espacialidade específica nas regiões em que se impôs como atividade principal. A atividade açucareira estruturou relações de produção, de trabalho e um modo particular de vida, especialmente na zona da mata nordestina, como destacaram Gilberto Freyre (1958) e Manuel Correia de Andrade (1964).

A despeito das crises econômicas e das relações conflituosas com o patrocínio estatal, produto das composições de poder que se estabeleceram com o advento da República no Brasil, a atividade açucareira adquiriu novo impulso com o Proálcool, implantado no país durante a ditadura militar. É nesse cenário que Mônica Dias Martins identifica, na obra Açúcar no sertão: a ofensiva capitalista no nordeste do Brasil, o avanço da modernização no Vale do Rio Curu, no norte cearense, por meio da produção sucroalcooleira, estruturada em bases monopolistas e centrada na grande propriedade fundiária, que se alimenta da expropriação da terra e da exploração do trabalho, via assalariamento. Esses elementos são fulcrais na análise de José de Souza Martins (1979, 1981) e Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1986) acerca da penetração capitalista no espaço rural brasileiro.

As interpretações sobre as investidas das forças capitalistas no campo brasileiro sob os preceitos da teoria marxista adquiriram posição de ortodoxia. No caso do Nordeste, cristalizou-se o entendimento do Estado como patrocinador da ordem capitalista, cujos princípios e lógica que orientam suas políticas e ações objetivam a inserção regional nos moldes da acumulação ampliada do capital, promovendo transformações espaciais e reproduzindo relações capitalistas de produção. Os propósitos e olhares do Estado estiveram voltados para a ideologia do desenvolvimento, como vocação intrínseca das formações nacional-territoriais. Conforme asseverou Milton Santos (1979), em uma obra que reúne suas críticas às teorias do desenvolvimento regional, nenhum país assumiu de forma tão vigorosa as concepções de François Perroux (1963) como o Brasil.

Desenvolvimento, integração nacional, correção das desigualdades regionais e modernização foram bandeiras ativas no cenário discursivo que justificou a intervenção governamental desde a década de 1950, centrada nos pilares do nacional-desenvolvimentismo e na concepção de desenvolvimento regional, sob a égide do industrialismo. Esse é o contexto inaugural da obra em que Mônica Dias Martins tece e narra os caminhos da modernização agrária no Vale do Curu. O estudo de caso analisado pela autora é produto do seu percurso de doutoramento, defendido no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará.

O livro ajuda a compreender o sentido da ação conjunta do Estado e da iniciativa privada na empreitada “modernizante”, que pretendeu transformar a estrutura produtiva e socioeconômica do espaço regional identificado, pela literatura e pelo imaginário social, como sinônimo de pobreza, atraso econômico e conservadorismo político. Permanece atual a mística desenvolvimentista de elevação da produtividade para alimentar os indicadores econômicos e atender aos desígnios do progresso e aos reclames dos organismos intergovernamentais em detrimento da dignidade e da vida usurpada de uma considerável parcela das populações rurais. Organizada em dez capítulos, a obra pode ser sintetizada em três eixos: 1. contextualização das condições históricas, das políticas da ditadura militar e das concepções teóricas que justificam a intervenção estatal no sertão nordestino; 2. descrição do processo de ocupação do Vale do Curu, costurada com a trajetória do empresário João Grangeiro, focalizando suas relações com o Estado e as estratégias de criação da Agrovale; 3. apresentação dos resultados da experiência desenvolvimentista, com destaque para as transformações na natureza e no modo de vida dos trabalhadores.

As análises reforçam a formulação teórica alinhada com as interpretações sobre o avanço capitalista no espaço rural brasileiro, promovendo concentração fundiária e de renda, transformando camponeses em assalariados, reafirmando mecanismos e processos que se tornaram regularidades em outras regiões, como salientam Marilda Aparecida Menezes (2002) e Maria Aparecida de Morais Silva (1999). Sobre as relações de trabalho que envolvem camponeses-migrantes na zona da mata nordestina, além da obra de Menezes, podemos destacar o documentário “Bagaço”, realizado em 2006, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-PE). A obra fílmica retrata o cotidiano dos trabalhadores no corte da cana, na indústria canavieira em Pernambuco, em particular, a violação aos direitos humanos, a destruição ambiental e os diversos problemas oriundos do modelo de produção calcado no latifúndio e na super-exploração da força de trabalho.

O exemplo estudado por Mônica Martins pode ser compreendido pelos processos de “monopolização do território pelo capital” e de “territorialização do capital monopolista”, analisados por Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1995). No primeiro processo, o capitalista industrial, o proprietário da terra e o trabalhador são agentes distintos. O camponês produz matéria-prima para a indústria e consome os produtos industriais. Esse modo de produção se materializa com as relações comerciais estabelecidas entre a empresa Agrovale e os pequenos produtores do Perímetro Irrigado Curu-Paraipaba, mediadas pelo Estado, aprisionando a produção camponesa aos ditames e interesses da agroindústria. No segundo processo, de territorialização do capital monopolista, o capitalista industrial é também proprietário das terras e o capitalista da agricultura, utilizando o trabalho assalariado do camponês expropriado e promovendo a concentração da terra e a desterritorialização e proletarização do campesinato. A atuação da Agrovale revela também esse processo, na medida em que a empresa se constitui como capitalista industrial, proprietária de terras e com unidades de produção de cana-de-açúcar, promovendo a expropriação do camponês que passa a vender sua força de trabalho para a firma.

Esses processos ratificam a tese de Martins (1979, 1981) e Oliveira (1986), afirmando que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil é contraditório e combinado, pois, ao mesmo tempo que reproduz relações especificamente capitalistas, produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de produção, necessárias à sua lógica de desenvolvimento.

Por meio de uma diversificada e ampla gama de depoimentos, a autora reconstitui a saga do empresário João Grangeiro e de sua empresa no Vale do Curu. As narrativas permitem decifrar as tessituras sociais que informam a organização do processo produtivo, a estruturação das relações sociais de produção e a construção de uma nova espacialidade regional. O conteúdo da obra convida à seguinte interrogação: Como se faz um empresário no Brasil? A abordagem da autora questiona o mito do empreendedor burguês, bem-sucedido, que ascende socialmente por esforço próprio e promove o desenvolvimento socioeconômico de regiões e lugares nos quais se instala.

Outra crença desfeita pelo estudo refere-se à clássica imagem do semiárido nordestino, especialmente do bioma caatinga, que desautorizava sua inserção no modelo produtivista-desenvolvimentista. Iná Elias de Castro (1992) e Durval Muniz Albuquerque Júnior (2001) já haviam desvendado o mecanismo ideológico de construção da identidade nordestina pelas elites, mediante apropriação das especificidades regionais (tipo físico, sotaque, hábitos, aspectos naturais) e projeção de símbolos e discursos, assentada na imagem de região seca e castigada pela natureza.

O investimento público em empreendimentos privados, exemplar no caso de João Grangeiro/Agrovale, demonstra a distância entre o discurso e a realidade, questão que perpassa a vontade política e o uso austero dos recursos sociais. Desde a chamada Revolução de 1930, o Estado brasileiro manifestou caráter intervencionista com a proliferação de políticas e programas, a criação de agências e bancos regionais de desenvolvimento, a construção de grandes projetos e obras públicas, a exemplo, da construção de açudes, barragens, hidroelétricas, perímetros irrigados, projetos de colonização/assentamento rural.

Os resultados e desdobramentos sociais, econômicos, espaciais e ambientais dessas experiências encontram-se largamente examinados e divulgados, mas, parecem-nos, curiosamente pouco considerados na formulação das políticas públicas no Brasil. Esses fatos colocam questões bastante atuais e controvertidas para a sociedade brasileira: o fetiche desenvolvimentista parece manter sobrevida por meio das propostas de construção de barragens e hidroelétricas na Amazônia brasileira e da transposição do Rio São Francisco. O que se pode esperar dessas iniciativas? Ficamos com a sensação de que a história já nos informou, e interrogamo-nos, novamente, se a mensagem não foi apreendida, ou se não há interesse ou sensibilidade para sua compreensão?

Partindo de um estudo de caso, Açúcar no sertão: a ofensiva capitalista no nordeste do Brasil sinaliza não exatamente uma resposta, mas um percurso analítico que, ao final, aponta como os interesses do grande capital têm se imposto contra todas as evidências e a um custo ambiental muito grande. Assim sendo, a obra de Mônica Dias Martins torna-se leitura obrigatória para todos os estudiosos de políticas públicas e também para aqueles que tenham o Nordeste como foco de pesquisa e de interesse.

Referências bibliográficas

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Agripino Souza Coelho Neto é doutorando em Geografia pela UFF-RJ e professor do Departamento de Educação/Campus XI da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). @ – agscneto{at}uneb.br

Ely Souza Estrela é doutora em História pela PUC-São Paulo e professora do Departamento de Ciências Humanas/Campus V da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). @ – elyestrela{at}hotmail.com

COELHO NETO, Agripino Souza; ESTRELA, Ely Souza. A caatinga para o canavial. Estud. av., São Paulo, v. 23, n. 65, 2009 .. acessos em 28 out. 2009. doi: 10.1590/S0103-40142009000100025.

EcoDebate, 29/10/2009

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2 thoughts on “A caatinga para o canavial, artigo de Agripino Souza Coelho Neto e Ely Souza Estrela

  • O vale do IUIU,localizado no Sudoeste da Bahia,nos municípios de Palmas de Monte Alto-BA,IUIU_BA e Malhada_BA,apresentadas solos profundos,bem drenados,com fertilidade natural muito alta,topografia plana e com abundância das águas do Rio são Francisco;o somatório destas condições e características,elegem esta região como uma das mais propícias ao estabelecimento de um grande polo produtor de etanol irrigado.
    A visão sempre equivocado do governo federal,desenvolveu através da codevasf,um projeto de pre-viabilidade destinado a construção do denominado PROJETO IUIU.Acontece que os estudos não elegeu quais atividades econômicas poderiam serem exploradas com sucesso nesta região abençoada por DEUS,com excesso de recursos naturais favoráveis a um projeto de grande sustentabilidade como parece ser o da produção de etanol.
    Inobstante os custos de infra estrurura na condução de

    grandes volumes de agua a grandes distâncias,a qualidade dos solos,condições climásticas e topográficas da região,aliada ainda a um aproveitamento de 100% do bagaço da cana,viabilizam plenamente os investimentos;tem estudos sérios que afirmam um ganho de produtividade de 30-40% no peso final/ha/ano da cana colhida.Corrobora ainda,a questão da queima deste bagaço,o qual nestas condições de temperaturas altas e baixa umidade realtiva do ar,possibilitam a desidratação da biomassa a ceu aberto,em tempo curtíssimo,deixando os teores em torno de umidade em 15%,garantindo uma queima satsfatória.
    Os preços destas terras,equivalem a apenas 10% dos praticados nas regiões produtoras de SP,MS,GO.
    Falta é divulgação,comprometimento,políticas específicas para exploração deste grande potencial existente na Bahia.
    Na contra mão da realidade plausível,o governo através do Ministério da Integração Nacional,estão injetando zilhões de dinheiro do contribuinte em dois mega projetos denominados Baixio de Irecê e salitrão,ambos ba Bahia.`
    Parece que mais uma vez,as construtoras farão farra em projetos imtempestivos.
    Neste mesmo estado,especificamente nos municípios de Barreiras,Riachão das Neves e Bom Jesus da Lapa,investiram U$3000.000.000,00 há mais de dez anos e na sua grande maioria,não existe qualquer tipo de atividade econômica;pensaram em tudo,menos na comercialização,tecnologia de produçao,logística de transporte,crédito de custeios e investimentos, para os produtores que adquiriram tais lotes em licitação pública.
    No Banco do Brasil de Bom Jesus da Lapa-Ba,tem projetos de fruticultura voltados para exportação de bananas,emperrados há mais de 07 anos,sempre dizerem se vão financiar ou não.pergunto:porque investir em novos mega projetos se os ja implantados ainda carecem de financiamento parar serem explorados? no mínimo deixa suspeições quanto a seriedade de tais emprendimentos.A transposição das auguas do Rio São francisco,é uma outra questão que não cabe aqui opiniões,todavia,se fará saneamento básico e proteção de matas ciliares nas margens do Velho Chico e seus afluentes,o resto é bobageira de quem está ávido por torrar o seu,o meu o nosso dinheiro.

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