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O que a mídia vende/explora não é a publicidade, somos nós mesmos. Entrevisa com Ivana Bentes

Maisa comanda um programa no SBT e, aos domingos, é protagonista de um quadro em que conversa longamente com ninguém menos que seu patrão, Silvio Santos, e ajuda a alavancar a audiência do restante da programação. Mas, nas duas últimas semanas, o quadro dominical foi palco de cenas ao vivo de gritos e choros da criança.

A reportagem e a entrevista é de Cyrus Afshar e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 24-05-2009.

“A questão é saber quando acaba o lúdico e o adorável e começa a perversão e a monstruosidade dessa situação-mídia”, provoca Ivana Bentes, professora do programa de pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Na entrevista concedida por e-mail, Bentes explica alguns dos mecanismos de funcionamento da apropriação da imagem de novas celebridades, o comportamento do público e a importância da internet para o processo de espetacularização.

Eis a entrevista.

O que está acontecendo com a menina Maisa é um caso de exploração midiática?

“Exploração midiática” é quase uma redundância. A expropriação/apropriação é base de funcionamento do próprio regime midiático em que nós, telespectadores, somos a matéria-prima em diferentes sentidos.
Na busca de criar fatos midiáticos incessantemente, capturar nossa atenção e comprar nosso tempo, a televisão convoca, explora e mobiliza nossos afetos, nossa atenção.

O espectador é o primeiro “explorado” pela publicidade, pela ficção, pelas “atrações”. Somos nós que emprestamos nosso tempo, nossa subjetividade e nosso imaginário para criar valor na TV. Ou seja, o que a mídia vende/explora não é a publicidade – somos nós mesmos.

E, para isso, precisa minimamente que essa audiência se conecte, se deixe afetar por um personagem, uma situação, que crie hábitos e possa voltar – criando um sentimento de pertencimento a uma “comunidade imaginada”. Aí se chega a Maisa, a menina-prodígio do SBT, a “menina-monstro” como definiu ironicamente, mas com precisão, o “Pânico na TV”.

A garota é realmente adorável e “monstruosa” ao mesmo tempo. Tem a dupla face da mídia atual, que incorpora e utiliza o mais “espontâneo”, o íntimo, a gafe, o erro, o choro e todo tipo de assujeitamento e humilhação como matéria altamente valorizada. Isso sem abandonar a celebração do visível, da formalidade e da encenação.

Não é à toa que os vídeos de Maisa estão no YouTube anunciem “pérolas de Maisa”, gafes de Maisa, micos de Maisa, choro de Maisa, tropeços etc. A questão é saber onde acaba o lúdico e o adorável e começa a perversão e a monstruosidade dessa situação-mídia.

Não se trata de julgar nem de moralizar “este” caso, num momento em que o valor de “exposição” da vida, da intimidade, da subjetividade na TV, na internet ou em qualquer outra mídia é um valor em si. A visibilidade é um bem altamente valorizado e disputado -“naturalizado”. É preciso justamente desnaturalizar esse novo regime midiático que não para de testar os limites do tolerável e do aceitável.

Nesse contexto (de exploração midiática), qual é o papel da mãe? E o do apresentador?

Não é difícil entender o seu nível de satisfação/excitação do pai e da mãe da menina (satisfação simbólica e real, com sua galinha dos ovos de ouro mirim). E o apresentador/dono da emissora cumpre o mesmo papel de outros homens de negócio de TVs abertas que vendem “produtos” tão ou mais discutíveis e monstruosos: homofobia, intolerância religiosa, espetáculos de descarrego e expulsão de demônios dos corpos, preconceito racial, condenações morais, denuncismo, criminalização da pobreza e dos pobres e toda uma pauta conservadora e moralista. A questão que importa é saber qual o papel da “comunidade” de telespectadores e da sociedade diante desse quadro.

Como tem sido e como deveria ser o tratamento dado pela mídia neste caso?

A televisão não tem programa de debate e de discussão do seu próprio conteúdo. A TV não dá direito de resposta, o que é escandaloso. Confunde audiência com legitimidade social e qualidade. Daí que não vi na mídia (com raras exceções, como a coluna de Bia Abramo do dia 17/5, na Folha) nenhuma discussão sobre os limites e constrangimentos de colocar uma criança de seis anos no horário nobre de domingo falando de “pum”, gases, bunda, meleca.

E, ao mesmo tempo, tendo que responder sobre assuntos extremamente complexos, como outras celebridades televisivas, profissões, afetos, casamento, Deus e infidelidade. E sempre constrangida por Silvio Santos até o limite do embaraço, do choro ou da mudez com reprimendas, ameaças, provocações.

Pessoas antes quase desconhecidas são alçadas rapidamente à condição de celebridades por conta dos milhões de acessos, casos da escocesa Susan Boyle, de Cris Nicolotti e de Maisa. Qual a importância hoje da internet no processo de criação das celebridades?

“Celebridade” talvez seja um nome antigo (coisa do século passado, de mídias “modernas”, como cinema e TV) para descrever os processos da visibilidade contemporânea. A internet e o YouTube criaram um novo público, pós-televisivo, um consumidor-produtor superativo, que clica tudo e que vê tudo – sem dúvida é uma nova força.

O YouTube é genial porque é o esgoto público das imagens, onde é possível experimentar o que há de mais potente e monstruoso (no sentido positivo e negativo dos excessos e das exceções) na multidão de usuários, sem mediação. Sem o “patrão”, como Silvio Santos se apresenta para a menina Maisa no SBT, num dos quadros.

Quando procuramos vídeos da artista mirim no YouTube, o site remete a entradas como “Maisa chorando”, “Maisa chora” e “Maisa peidando”, a partir das buscas mais realizadas. Os fãs sentem prazer em ver celebridades em situações constrangedoras?

Trata-se de um fenômeno bem mais amplo e disseminado de midiatizacão, comercialização da intimidade e da “visibilidade”. A partir do momento em que ruiu a barreira entre intimidade e publicidade, em que se esgarçou o limite entre público e privado, o que poderia ser constrangedor? Maisa chorando, Daniela Ciccarelli transando na praia, a cabeça de Saddam Hussein rolando, os exames de saúde da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, em jornais assistidos por milhares de pessoas? Exibir a intimidade vem deixando de ser um constrangimento para se tornar um “valor”. A intimidade na era da sua visibilidade máxima e as tecnologias de exibição de si são uma característica geral e uma exigência do capitalismo contemporâneo.

O caso da construção da ex-atriz Shirley Temple é paradigmático para entender a situação atual deste caso?

Bem, o visual da apresentadora mirim do SBT parece inspirado nos vestidinhos de babados e cabelos cacheados da mais famosa menina-prodígio de Hollywood.

Mas é preciso lembrar que Shirley Temple é um produto da máquina fordista hollywoodiana, dos anos 1930 e 1940, de um capitalismo disciplinar e disciplinador em que a ideia de “infância” e “criança” ainda estava bem delimitada e definida.

Hoje, quando foram desenvolvidos produtos midiáticos para crianças de zero a um ano – como os Teletubbies, que aceleram os processos cognitivos enquanto ensinam a criança a desejar e a consumir -, a comparação com Shirley Temple talvez não seja apropriada.

Pois o capitalismo contemporâneo tem necessidade de incluir e modular todos, desde o ano zero e mesmo antes do nascimento.

O aprendizado se faz pela mídia – com o fim dos tempos “mortos” da infância, de ócio e lazer, em nome de uma hiperprodutividade infantil – e por adestramento precoce, cujo modelo visível Maisa encarna.

O assustador é que a subjetividade-Maisa é o modelo de criança e de infância em via de se universalizar. São muitos os indícios: o assédio e crescimento da publicidade infantil, sem controle no Brasil; a invasão de bichinhos e desenhos animados em anúncios de cerveja, carros, criando uma sensibilidade precoce e formando consumidores futuros, a erotização do universo infantil dissociada, mais tarde, do abuso sexual por adultos e da violência contra crianças.

Enfim, a garota-prodígio do SBT aponta para antigas questões e novos limites, em torno da intimidade, da visibilidade, da infância.

Nesse sentido é uma menina-modelo, exemplar de uma série de transformações.

(Ecodebate, 25/05/2009) publicado pelo IHU On-line, 24/05/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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