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Artigo

Muros: Rio não é Berlim, artigo de Sheila Sacks

A partir de um questionamento do escritor português José Saramago, 86 anos, sobre a validade de se utilizar muros para evitar a expansão das favelas cariocas sobre o que resta da Mata Atlântica, uma das florestas tropicais mais ameaçadas do mundo, a imprensa do circuito Rio-São Paulo abriu generosos espaços para seus articulistas repercutirem e ampliarem os comentários sociológicos do Nobel da Literatura (1998) sobre o tema.

Em sucessivos artigos, Elio Gaspari (O Globo e Folha de São Paulo) e Zuenir Ventura deram mostras de compartilhar os mesmos pontos de vista do escritor, enxergando preconceito e discriminação aos mais pobres na iniciativa do governo estadual. Por sua vez o antropólogo Roberto DaMatta (O Globo) lembrou que, diferente do que ocorre no Brasil, até as casas nos Estados Unidos não costumam ter muros. Com a polêmica instalada, uma questão que se propunha a ser meramente técnico-ambiental adquiriu ares de atitude segregacionista e estigmatizante, comparável ao muro de Berlim, de acordo com as argumentações de Saramago e Gaspari, que inclusive encolheu o tamanho da muralha para 43 quilômetros em seu artigo “O muro do Cabral e o bilhete da Marta” (01/04/2009).

Nunca é demais lembrar que o muro de Berlim, construído em 1961, tinha 155 quilômetros de extensão, muros com 4 metros de altura, 67 quilômetros de gradeamento metálico, cercas eletrificadas, valas com cinco metros de profundidade, 302 torres de observação, 20 bunkers e mais de 200 pistas para o patrulhamento de policiais e cães. Enfim, uma construção com aparato militar e de característica ideológica e política que perdurou durante 28 anos como símbolo da Guerra Fria. Ao longo da muralha dezenas de rodovias, ferrovias e bairros foram divididos e famílias ficaram impossibilitadas de se visitarem.

Já os 11 quilômetros de muros que o governo do estado do Rio de Janeiro inicialmente se dispõe a erguer nas encostas de 11 favelas da zona sul da cidade, visa basicamente estabelecer um traçado definido e visível das áreas de risco e de preservação ambiental onde não mais seriam permitidas a construção de moradias. Os muros de concreto com 3 metros de altura se estenderiam pelas laterais e fundos das comunidades, permanecendo a parte frontal com as mesmas características. Aliás, algumas tentativas parecidas foram feitas pela prefeitura, há alguns anos, utilizando dormentes de trilhos e cercas de cabos de aço para demarcar as zonas de risco. Mas, essas iniciativas não surtiram efeito.

Desmatamento dobrou

Em dezembro de 2008, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a Fundação SOS Mata Atlântica apresentaram dados preocupantes referentes ao período de 2005 a 2008. Em todo o estado do Rio de Janeiro o índice de desmatamento dobrou em relação à pesquisa anterior (2000-2005), com a supressão de 205 hectares de floresta nativa, o equivalente a 300 campos de futebol. Outro estudo, desta vez realizado pela Federação da Indústria do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), também apontou uma expansão horizontal das favelas. Com base em imagens de satélite, verificou-se que em 88 favelas cariocas fotografadas em 2002 e 2007 houve um crescimento de 250.279 metros quadrados, o que equivaleria ao surgimento de quatro novas favelas do porte da Dona Marta, na zona sul do Rio, onde vivem 10 mil pessoas.

Ainda de acordo com uma reportagem publicada no jornal O Globo, de 01/07/2006, uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do Município descobriu que 17 favelas, entre elas o Morro da Babilônia, em Copacabana, já ocupavam áreas de preservação ambiental.

Proteção e Pacto

A Mata Atlântica, que abriga 60% das espécies ameaçadas de extinção no Brasil, atualmente está reduzida a 7,3% de sua vegetação original. Na tentativa de proteger o que sobrou dessa imensa floresta que está presente em 17 estados brasileiros, o presidente Lula assinou, em 21 de novembro de 2008, decreto regulamentando os dispositivos da Lei Federal nº 11.428, de 2006, conhecida como a Lei da Mata Atlântica. Entre outros itens, a lei veda a supressão da vegetação primária para fins de edificação nas regiões metropolitanas e áreas urbanas, define a Mata Atlântica como patrimônio Nacional, delimita o seu domínio, proíbe o desmatamento e cria critérios a sua manutenção e regeneração.

Na mesma linha de atuação, 53 entidades ambientalistas e institutos de pesquisa, o Ministério do Meio Ambiente e os governos do Rio, São Paulo e Espírito Santo firmaram um pacto pela restauração da Mata Atlântica (07.04.2009) no sentido de recuperar, até 2050, 10% da floresta original, o que corresponderia a 15 milhões de hectares, área equivalente a três vezes o território do estado do Rio de Janeiro.

Vale destacar que 20% do aquecimento global é provocado pelo desmatamento.

Risco e Responsabilidade

Dois outros fatores que pesaram na implementação de marcos mais definidos para delimitar as áreas de preservação ambiental dizem respeito à segurança dos moradores dessas comunidades e a responsabilidade civil dos governantes quanto a esse quesito. Os deslizamentos de encostas devido às chuvas têm se acentuado bastante nos centros urbanos justamente em razão da construção de moradias em locais de risco. Tais desastres provocam graves conseqüências, como bloqueio de vias de circulação e, principalmente, soterramento de casas, com ocorrência de mortes. Os poderes constituídos têm responsabilidade civil nessas tragédias e processos correm nos tribunais de Justiça do Rio, onde o estado muitas vezes é acusado de omissão e ausência de providências cabíveis, estando sujeito a ser condenado por danos morais e materiais.

Esse problema, aliás, já está sendo assimilado pelas camadas mais pobres da população que, segundo recente pesquisa Datafolha, aprova a construção dos muros. A consulta mostrou que 51% das pessoas que têm renda mensal inferior a dois salários mínimos são a favor e 60% dos moradores das favelas não acreditam que os muros vão separar ricos e pobres na cidade.

E por fim, a prefeitura já acenou com a possibilidade de plantio de vegetação ao longo do muro existente na favela Dona Marta, que como os demais seriam revestidos de uma cerca viva que, com o passar do tempo e o seu natural desenvolvimento, se integrariam de forma harmoniosa e segura à paisagem.

Sheila Sacks é jornalista no Rio de Janeiro.

Nota do EcoDebate: Sobre o mesmo tema e visando ampliar o debate sugerimos que leiam, também, a entrevista “Muros nas favelas do RJ. Segregação, apartação, divisão? Entrevista especial com Ignácio Cano“.

[EcoDebate, 22/04/2009]

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