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Artigo

Carta aberta sobre Belo Monte, artigo de Rodolfo Salm

Caro Joaquim Francisco de Carvalho,

Quando o senhor e eu começamos este diálogo sobre as hidrelétricas na Amazônia, em 2003, eu ainda não tinha posto os meus olhos sobre o rio Xingu e já me preocupava muito com as conseqüências da construção da hidrelétrica de Belo Monte. Hoje, então, morando em Altamira (PA) e vivendo de frente para o rio, é com ânimo redobrado que participo do debate com os defensores das barragens. Daí a minha satisfação ao saber que o senhor comentara meu mais recente artigo (A luta contra Belo Monte no FSM 2009), onde critico seus pontos de vista (posteriormente, seu comentário foi desenvolvido no artigo “Debates ociosos“).

Relembrando: nos idos de 2003, no seu artigo, “A hidroelétrica de Belo Monte e as ONGs ambientalistas”, o senhor defendeu a idéia de que “os rios amazônicos permitirão que o Brasil satisfaça a demanda por eletricidade nas próximas décadas, sem recorrer em grande escala a usinas termelétricas a carvão, óleo ou gás natural, que lançam na atmosfera muitos poluentes e gases de estufa, como o gás carbônico”. E defendeu a construção de Belo Monte, no Xingu. Na ocasião, alertei (pela minha experiência de pesquisa de doutorado na região) que a floresta Amazônica sazonalmente seca do Xingu é especialmente sensível aos impactos do desenvolvimento econômico (pelos fatores climáticos, uma vez que já se encontra próxima dos limites do Cerrado). Assim, a simples abertura de acessos e a conseqüente ocupação na região desencadeariam catastróficos e incontroláveis processos de degradação ambiental.

O senhor argumenta que o impacto ambiental causado pelo lago artificial de Belo Monte seria mais facilmente assimilável globalmente que aquele provocado por termelétricas de equivalente potência. Na época respondi: “De fato, a energia de origem hidrelétrica é considerada limpa para fins de contenção do efeito estufa. Mas esta visão é equivocada, quando se trata de hidrelétricas na região amazônica. Estima-se que quase toda a Floresta Amazônica será destruída na primeira metade deste século, se ampliadas as tendências atuais com a implementação de projetos de infra-estrutura na região, e que as emissões de carbono resultantes da queima da mata equivalerão a cerca de 50 vezes a atual taxa anual de emissão de gases de estufa dos Estados Unidos. Daí, conclui-se que a construção de hidrelétricas nos rios da Amazônia também provocaria a irrupção de catástrofes ambientais capazes de ameaçar a própria sobrevivência da espécie humana, como bem definiu Joaquim Francisco com relação ao uso de combustíveis fósseis”.

Nos meses e nos anos seguintes, sempre acompanhei os seus artigos, no Correio e na grande imprensa, e não há dúvidas de que senhor tem se dedicado seriamente a pensar o desenvolvimento do Brasil. São idênticas às de nós, ambientalistas, as suas posições contrárias à utilização da nossa energia elétrica para a produção de alumínio para exportação e a favor de seu uso para o bem da sociedade e da qualidade de vida, além da sua crítica à política de desestatização neoliberal.

Contudo, meu questionamento sobre o impacto das melhorias nos acessos e da imigração de grandes contingentes humanos concomitantes à construção não foram respondidos até hoje.

Por exemplo, o senhor escreveu: “alguns ambientalistas costumam animar os debates contra os barrageiros com a extravagante achega de que hidrelétricas emitem mais gases de estufa do que termelétricas“. Mas não fez referência à emissão de carbono associada aos grandes desmatamentos em toda a Amazônia oriental que resultariam da construção das hidrelétricas. Escreveu apenas sobre as emissões de gases dissolvidos na água, sobre as emissões provenientes do uso de combustíveis fósseis na construção da hidrelétrica, ponto que sequer menciono em minhas argumentações.

É possível afirmar, como sempre fazem os defensores dos empreendimentos em áreas remotas da Amazônia, que não cabe às empresas de energia evitar novos desmatamentos que não tiverem relação direta com as suas atividades, e que o responsável por este controle seria o governo. Mas todos sabemos bem que esse raciocínio é no mínimo ingênuo, dada a patente incapacidade, nas atuais circunstâncias, do governo para fazer esta fiscalização. O senhor deve estar pelo menos ciente do estado crítico de despreparo logístico e de pessoal em que o IBAMA se encontra na atualidade. Dado o caos que impera na região no tocante à questão ambiental, como ficaria em poucos anos a maior floresta tropical do mundo com a pavimentação da Transamazônica para a construção de Belo Monte? Como que estariam hoje as florestas da bacia do Xingu, se há vinte anos os Kayapó não tivessem conseguido suspender o financiamento para a construção da hidrelétrica de Kararaô, rebatizada Belo Monte? O senhor sabe que não teria como responder a esta questão sem admitir que teria havido uma grande devastação, bem maior do que aquela, já bastante grave, atualmente em curso.

Confesso que sou muito mais pessimista que o senhor no que diz respeito ao futuro da Amazônia. Então, no momento, eu não vejo como “neutralizar” o poder dos devastadores. O senhor sabe que se a maior parte da bacia do Xingu ainda está preservada é porque são áreas de dificílimo acesso e que a pavimentação da rodovia Transamazônica, toda a infra-estrutura de transporte e a colonização associadas à construção de hidrelétricas neste rio transformariam este quadro rápida e profundamente.

Então, por que não pelo menos adiar estes planos até que se tenha segurança de que não viveremos uma tragédia ambiental de grandes proporções?

Se, como o senhor sugere, utilizássemos o nosso potencial hidrelétrico já instalado para as reais necessidades do povo brasileiro (ao invés de direcioná-lo para cobrir a demanda de eletrointensivos para exportação), esta economia evitaria a barbaridade de barrar fluxo de um rio como o Xingu. Ainda mais se esta economia for associada à melhoria dos equipamentos já instalados, à utilização de fontes alternativas de energia cuja tecnologia já é disponível, como a eólica, das marés, ou à geração de eletricidade a partir da energia da biomassa vegetal!

Não está claro para o senhor que esta pressa e atropelo pela construção das hidrelétricas no Xingu a qualquer custo atende apenas aos interesses imediatos das máfias das empreiteiras e das mineradoras, dos próprios setores eletrointensivos e da burocracia corrupta que vive da construção e manutenção de grandes obras, como as hidrelétricas, e que não admite falar em alternativas a eles? São questões básicas, que eu gostaria que fossem respondidas, para dar continuidade ao debate.

Respeitosamente,

Rodolfo Salm.

* Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[EcoDebate, 09/02/2009]

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