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Política do comum. Uma alternativa à crise econômica mundial? Entrevista especial com Giuseppe Cocco

O último mês de dezembro foi agitado para o professor Giuseppe Cocco. Ele foi o coordenador do Seminário Mundo Vix, realizado nos dias 10 a 12 de dezembro, na Universidade Federal do Espírito Santo e participante do Fórum Livre do Direito Autoral: O Domínio do Comum, realizado nos dias 15, 16 e 17 de dezembro de 2008, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em ambos os eventos, Cocco esteve ao lado de grandes intelectuais de renome internacional, dentre eles Antonio Negri e Michael Hardt. E é sobre os temas que esses autores debatem e sobre o que foi discutido nos dois eventos mencionados que a IHU On-Line entrevistou o professor Giuseppe Cocco por telefone.

Ele explica a ideia do comum e defende que “a verdadeira alternativa está na capacidade que nós teremos ou não de construir uma esfera política adequada ao trabalho que, dentro das transformações desses últimos 30 anos, aparece com uma natureza diferente com relação à era industrial. Um trabalho que é cada vez mais ligado à produção de conhecimento, a sua dimensão linguística e comunicacional, portanto, social, intelectual e afetiva, ao mesmo tempo, é um trabalho que está dentro das crises sociais, integrando produção e consumo, em um processo de valorização que está dentro da circulação”.

Para Cocco, mais do que pensar a relação entre o local e o global, “temos que pensar a relação entre a dinâmica constituinte debaixo e as instituições e os governos. A América do Sul, apesar de todos os seus problemas e limites, é o terreno de renovação dos processos constituintes”. Ele acredita que a crise atual aparece não como a crise do capitalismo financeiro, “mas como a crise do capitalismo contemporâneo”. E explica que “todo o sistema do crédito não é ligado a nenhuma racionalidade matematizável, mas é baseado exatamente no crédito, na confiança, na crença e, portanto, em última instância, na relação social”.

Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Université de Paris VIII, e em Scienze Politiche, pela Università degli Studi di Padova. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, da revista Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros entre os quais citamos Trabalho e Cidadania – Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), em parceria com Antonio Negri.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor esteve na companhia de Toni Negri e Michael Hardt, nas últimas semanas. Que temas debateram nesses dias? Quais as novidades e avanços nos estudos dos pesquisadores?

Giuseppe Cocco – Estar na companhia deles foi uma coisa bastante normal, na medida em que eu, através da Universidade Nômade, tenho com eles um intercâmbio que dura quase 30 anos, com relação ao Brasil. O próprio Negri esteve aqui em 2003, 2005 e 2006. Esta é a quarta vez que ele vem. O Michael Hardt também veio aqui várias vezes e agora está voltando para o Fórum Social Mundial, participando de mesas em Belém e no Rio de Janeiro.

Com relação aos temas que discutimos nos eventos de Vitória e do Rio de Janeiro, podemos dividi-los em dois eixos. O primeiro é a discussão sobre a crise global do capitalismo, a chamada crise financeira e, por outro lado, esta discussão sobre o conceito de comum, que quer dizer a definição de uma esfera política que permita pensar a política, o governo e a propriedade para além da falsa oposição entre Estado e mercado; entre privado e público. Digamos que estes se confrontam com mais um eixo implícito neste tipo de evento que reune intelectuais e militantes brasileiros, latino-americanos e europeus, que é a relação entre Governo e movimentos, a relação entre Norte e Sul. A questão é a passagem da dependência para a interdependência.

IHU On-Line – Em que consiste a política do comum? Como ela pode contribuir para resolver os problemas sociais e econômicos da sociedade?

Giuseppe Cocco – A ideia da política do comum é, em primeiro lugar, a de que uma alternativa entre Estado e mercado é uma falsa alternativa. Uma maneira para entender isto é a discussão sobre a crise financeira atual. Se analisarmos o que está acontecendo, de maneira muito nítida vemos que, depois de quase 30 anos de hegemonia do discurso neoliberal sobre o mercado como o espaço de nacionalidade embasado na lógica do individualismo egoísta, da competição e da concorrência, depois de anos de privatização, desregulamentação e flexibilização, quando se dizia que o mercado era o único horizonte e que, na firmação desse horizonte, a história tinha acabado, o que assistimos agora é um fato importante no mercado: há a moeda, há o Estado. Todo o sistema do crédito não é ligado a nenhuma racionalidade matematizável, mas é baseado exatamente no crédito, na confiança, na crença e, portanto, em última instância, na relação social. Por trás do mercado há o Estado que, atualmente, aparece de maneira marxista para tentar bloquear a dinâmica da crise, por enquanto, dando dinheiro para os bancos e tentando impedir a precipitação sistêmica da crise.

O Estado que intervém hoje aparece como pano de fundo do mercado e o mercado como pano de fundo da intervenção estatal, na medida em que, atualmente, ela não é vinculada por nenhum modelo alternativo. O fato é que esta dimensão ideológica é real, pois o Estado e o mercado andam juntos, e a moeda é uma relação social. Não adianta discutir volume de moeda e de investimentos, a não ser em termos de significação e de democracia, de investimento social e de relações de força. Todo o dinheiro que faltava para os programas sociais, para todo o tipo de trabalho cada vez mais precarizado, para proteger ou mobilizar a vida fora das dinâmicas da sua exploração aparece dentro de um pacto político. Acho fundamental que esse dinheiro seja mobilizado e impresso pelas máquinas de um banco central norte-americano, na medida de saldar o que for possível. A ideia do comum é dizer que nós precisamos ir além disso, o que significa que a verdadeira alternativa está na capacidade que nós teremos ou não de construir uma esfera política adequada ao trabalho que, dentro das transformações desses últimos 30 anos, aparece com uma natureza diferente com relação a era industrial. Um trabalho que é cada vez mais ligado à produção de conhecimento, a sua dimensão linguística e comunicacional, portanto, social, intelectual e afetiva, ao mesmo tempo, é um trabalho que está dentro das crises sociais integrando produção e consumo, em um processo de valorização que está dentro da circulação.

Os caminhos para a nova política

Construir o comum significa reconhecer que o conflito entre capital e trabalho é um conflito entre essa gestão estatal e privada das relações de trabalho – da sociedade, de uma separação entre a esfera da política e da economia – e a recomposição dessas duas esferas a partir de uma organização política e produtiva da sociedade. Significa reconhecer que há um conflito fundamental entre um sistema de relação de trabalho que desmonta a relação salarial, as conquistas sindicais e os movimentos sociais, mas, ao mesmo tempo, mantém as instituições características, que têm discursos ideológicos, em termos de funcionamento da despesa pública, característica do período anterior. Ou seja, apenas reconhece o trabalho quando é um trabalho assalariado. E não reconhece o fato de que, hoje em dia, o trabalho corresponde e diz respeito à vida como um todo. Portanto, sua mobilização diz respeito à qualidade da vida, em geral. O reconhecimento dessa dimensão produtiva da vida passa fundamentalmente pelo fato de que é preciso instaurar uma renda universal, algo que configura exatamente uma política do comum. Uma política do comum em termos de organização de luta significa, por exemplo, dentro da crise, insistir sobre o fato de que é preciso não limitar as políticas públicas, a defesa do emprego, o que é claramente necessário, mas que é preciso ampliar as políticas sociais. Um exemplo é pegar o Bolsa Família e aprofundá-lo e desenvolvê-lo ainda mais, de forma a torná-lo menos condicional.

IHU On-Line – Qual é o papel da metrópole na revolução do comum?

Giuseppe Cocco – A metrópole tem um papel fundamental, na medida em que constitui o que era a fábrica no período industrial. A metrópole é hoje o espaço de produção. Então, a revolução do comum diz respeito à estruturação democrática dessas redes produtivas que desenham a metrópole e que a metrópole, por sua vez, desenha, como, por exemplo, o consenso universal ao transporte público, com todas as suas implicações do que diz respeito à crítica ao modelo da circulação individual, como o automóvel. Falo aqui de todas as implicações em termos de qualidade de vida, questões que dizem respeito a outro modelo de relação com a natureza, mas também a uma metrópole com condições de acesso à internet, que os municípios organizem o acesso sem fio para todo mundo como um direito que, ao mesmo tempo em que é humano e social, é um novo instrumento de evolução produtiva. Acesso à educação, essa nova correlação entre funções habitacionais de negócios e produtivas, que tem que ser cada vez mais integrada, ou seja, a integração do território metropolitano, em termos sociais e metropolitanos, é o elemento fundamental que define uma capacidade produtiva. E esta integração depende de uma construção democrática desses territórios e de uma recomposição entre o social, o econômico e o político.

IHU On-Line – Como é possível pensar os desafios globais a partir de uma realidade local?

Giuseppe Cocco – É possível na medida em que a realidade local é, ao mesmo tempo, global, e a própria dinâmica da globalização define essa interdependência entre o local e o global. A dinâmica da globalização, algo que antes parecia ser utópico e impossível, hoje em dia, devido à própria dinâmica do mercado, aparece como ultra-necessário. O que vai ter que acontecer para que os planos e as tentativas de enfrentar a crise sejam eficazes é uma renegociação, em âmbito mundial, da dinâmica da globalização. Apesar de todos os limites que, eventualmente, Obama terá de não manter as promessas, a sua própria eleição anuncia com vitória a abertura de espaço para o Brasil e a América do Sul negociarem as dívidas globais. Dentro disso, há uma nova geração de governos locais e de movimentos sociais. Mais do que pensar a relação entre o local e o global, temos que pensar a relação entre a dinâmica constituinte debaixo e as instituições e os governos. A América do Sul, apesar de todos os seus problemas e limites, é o terreno de renovação dos processos constituintes.

IHU On-Line – Ainda a partir da crise financeira, como podemos pensar em novas dimensões no mundo do trabalho e na instituição do comum?

Giuseppe Cocco – O interessante é retomar um pouco o que diz respeito às características dessa crise financeira, que todo mundo achava que fosse ligada à existência de uma esfera fictícia, separada do capitalismo meramente financeiro, o que seria um capitalismo industrial. A realidade da crise é outra, porque, por um lado, ela tem um impacto generalizado profundo, e a cada dia parece ser mais dramático. Por outro lado, não tem nada a ver uma separação do que seria a finança da indústria. Pelo contrário, no Brasil a crise chegou pelos grandes conglomerados industriais, como Aracruz, Votorantim, Sadia, etc. Então, a crise aparece não como a crise do capitalismo financeiro, mas como a crise do capitalismo contemporâneo. Este capitalismo contemporâneo, na realidade, é um capitalismo que precisa explorar as redes sociais, ou seja, a própria vida. E isto deve começar a ser feito por um duplo mecanismo de transformação, uma máquina que se alavanca com dois elos fundamentais. O primeiro é a difusão social do trabalho e o outro é a integração produtiva do consumo. Isto significa que é um capitalismo que não investe mais apenas o trabalho na sua organização separada, como uma economia da vida baseada na divisão fundamental entre o tempo de vida e o tempo de lazer ou entre o tempo de vida e o tempo de trabalho, mas investe na vida como um todo. Um mecanismo desse investimento fundamental, em termos da dinâmica financeira, é uma base que diz respeito aos fundos de pensão.

Os fundos de pensão e o impacto na crise

Quando os fundos de pensão se tornam, no mundo todo, fatores fundamentais no processo de financeirização é importante o fato de que existe uma outra economia da vida. Isto significa que uma parte da renda dos trabalhadores, ligada a aposentadoria, é mobilizada para a gestão das despesas que, até então, eram despesas públicas e que, hoje em dia, se tornam reguladas sob uma dinâmica privada no mercado das ações. Ao mesmo tempo, essa criação monetária que não é mais operada pelo Estado, mas pela intervenção dos fundos de pensão no mercado das ações, tem outra consequência que é aquela de fragmentar a composição social do trabalho na medida em que, por um lado, vai ter aqueles que têm um fundo de pensão para investir e, por outro lado, aqueles que não têm nada para investir e são objetos dessas políticas. Esta fragmentação se desdobra em outra que tem a própria figura dos trabalhadores, ou seja, do trabalhador que, enquanto poupador e detentor de um fundo de pensão, tem interesse que os títulos do seu fundo de pensão tenham um retorno financeiro importante e, por outro lado, tem esse mesmo trabalhador que vai assumir as consequências dessa pressão para que haja retornos importantes dos investimentos financeiros.

Para ler mais:

Sobre a crise financeira internacional leia a revista IHU On-Line número 276, intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Keynes, e a número 278, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx.

E sobre o mundo do trabalho, leia as seguintes edições da revista IHU On-Line: O mundo do trabalho no Brasil de hoje. Mudanças e novos desafios (nº 256); O trabalho no capitalismo contemporâneo. A nova grande transformação e a mutação do trabalho (nº 216); Mais inovação tecnológica e… piores condições de trabalho. Um paradoxo! (nº 188); Trabalho. As mudanças depois de 120 anos do 1º de maio. (nº 177); As obras coletivas e seus impactos no mundo do trabalho (nº 161); A crise da sociedade do trabalho (nº 98); Economia Solidária e a crise do mundo do trabalho (nº 66); e 1º de maio: trabalho e memória (nº 57).

(Ecodebate, 27/01/2009) publicado pelo IHU On-line, 26/01/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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