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A sociedade do medo renuncia à liberdade, entrevista com Zygmunt Bauman

A produção de rejeitos humanos é uma das indústrias do capitalismo que não conhece crises. E são precisamente aqueles excluídos da sociedade que são indicados como a origem da insegurança. Uma entrevista com o estudioso polaco.

O manso olhar de Zygmunt Bauman se acende cada vez que pousa sobre um homem ou uma mulher que fala em voz alta num telefone celular. Então olha-o(a) divertido, pensando talvez que além do medo e do amor a privacidade também tenha se tornado líqüida. Em Roma, para participar dos trabalhos do World Social Summit [Cúpula Social do Mundo, ndt] sobre “Temores planetários”, o estudioso, de origem polaca, está curioso por entender o que está acontecendo em nosso país. País que começou a amar com a leitura, faz muitos anos, dos romances de Ítalo Calvino e de Antonio Gramsci.

A reportagem e a entrevista é do jornal Il Manifesto, 26-09-2008. A tradução é de Benno Dischinger.

Autor prolífico, a quem lhe pergunta como está progredindo seu afresco sobre a globalização, Bauman responde que progride, embora esteja convencido que é preciso modificar algumas partes do desenho, porque a globalização está mudando de pele, sem, no entanto, haver nenhum retorno ao passado no horizonte. Teórico da modernidade líquida, está atualmente estudando como, num mundo onde tudo se tornou fluido e onde o individualismo parece ser o Alfa e o Omega das sociedades contemporâneas, a necessidade de estar em sociedade está abrindo espaço, embora com dificuldade. De tal necessidade e de como ela se manifesta escreve em alguns ensaios apresentados pela Casa editora Diabasis, com o título ‘Individualmente juntos’ [Individualmente insieme] (137 pp., 10 euros).

Bauman sustenta, todavia, que tal necessidade é simétrica com respeito àquela vida líquida na qual a identidade e as relações sociais estão sob a insígnia da contingência. E, à pergunta se tal necessidade de estar em sociedade possa ser confrontada com a noção de “indivíduo social”, desenvolvida por Karl Marx, prefere falar de ambivalência, de processos contraditórios, talvez asperamente conflitantes um com o outro, que tornam novamente necessário enfrentar o tema do “mal”, argumento que está no centro de um recente ensaio que Bauman considera adequado para colocar o argumento numa linha correta e que ele também quis introduzir na edição italiana. Trata-se de ‘Amor pelo ódio. A produção do mal nas sociedades modernas’, do jovem filósofo polaco Leônidas Donskis (Erickson ed.). Medo, exclusão social, produção do mal: são estes os elementos que Bauman considera como “os efeitos colaterais” precisamente daquela globalização que os ideólogos do livre mercado apresentaram como o melhor dos mundos possíveis. Mas, como sempre gosta de repetir: o pessimismo da razão não deve necessariamente coincidir com a renúncia à ação e deve nutrir-se de muito otimismo da vontade.

Eis a entrevista.

Em sua análise sobre os “lixos humanos”, você escreve que sua produção constitui uma das indústrias mais prolíficas do mundo. Um dos efeitos da globalização seria o aumento da exclusão social e o redimensionamento do ‘welfare state’. Além disso, o Estado-nação se caracteriza sempre mais pelas medidas contra os “portadores” de insegurança. Em suma, é um “estado do medo”. O que pensa desta mudança que ocorreu no papel do estado-nação?

O mundo contemporâneo, com sua compulsiva e obsessiva avidez de modernizar, determinou o desenvolvimento de duas indústrias de “rejeitos humanos”: A primeira é um canteiro de obras sempre aberto, embora não produza diretamente “rejeitos humanos”. É uma indústria povoada por “desadaptados”, excluídos da sociedade por causa de sua “carência” em participar nas formas de vida dominantes.

A segunda é de constituição recente e seu desenvolvimento não conhece crises. Poderíamos chamá-la a indústria do progresso econômico e ela produz um impressionante e sempre mais crescente número de “sobras humanas”: aquelas mulheres e homens para os quais não há mais lugar na economia e que por isso não têm nenhum papel útil a desenvolver. São homens e mulheres que não têm nenhuma oportunidade de poder ter o dinheiro suficiente para conduzir uma vida satisfatória ou pelo menos tolerável.

O estado social foi uma ambiciosa tentativa de esconjurar a presença destas duas indústrias. Foi um projeto público que tinha como objetivo a inclusão universal, pondo assim termo às práticas de exclusão social então existentes. Independentemente do fato de que os sucessos obtidos tenham colocado em segundo plano seus pontos débeis, o welfare state foi minado e afastado, enquanto as duas indústrias, das quais eu falava antes, voltaram a agir e trabalham a pleno vapor. A primeira produz “estranhos”: sem papéis, imigrantes clandestinos, solicitantes de asilo político e toda espécie de “indesejáveis”. A segunda indústria produz, ao invés, “consumidores defeituosos”. Em ambos os casos, eles contribuem para o crescimento da “underclass” [ou subclasse], constituída por homens e mulheres que não encontram lugar em nenhuma classe social existente. São os prófugos excluídos do sistema de classe da sociedade normal.

Os estados nacionais são atualmente incapazes ou, mais simplesmente, não têm nenhum desejo ou vontade de garantir aos seus súditos uma segurança substancial, aquela que num famoso discurso Franklin Delano Roosevelt chamou de “liberdade do medo”. A conquista da segurança – cuja obtenção e conservação garantem a legitimidade e a dignidade de cada um para viver numa sociedade humana – é agora deixada à capacidade e aos recursos de cada indivíduo, o qual deve encarregar-se dos enormes riscos e dos sofrimentos necessários que um objetivo deste porte necessita. O medo, que o estado social prometera erradicar, retornou, por conseguinte, ao cenário com propósitos de vingança. Muitos de nós, independentemente da posição ocupada na hierarquia social, têm pavor de serem excluídos porque consideram serem inadequados à mudança ocorrida.

Na Europa, o medo tem a face diabólica dos novos partidos populistas. Mas, precisamente na Europa e nos Estados Unidos, a criminalidade – cuja presença é sintoma de insegurança – está diminuindo. Portanto: quanto mais diminui a criminalidade, mais se agita o espectro da insegurança. Uma verdadeira e própria contradição, se não uma aporia. Não lhe parece?

O difuso e impalpável medo [ou pavor] que satura o presente é usado por muitos líderes políticos como mercadoria a capitalizar no mercado político. Comportam-se como comerciantes que anunciam as mercadorias e os serviços que vendem como formidáveis remédios para o abominável sentimento de incerteza e para prevenir inomináveis e indefiníveis ameaças. Ou seja: os movimentos e os políticos populistas estão recolhendo os frutos envenenados que floresceram com a debilitação e, em alguns casos, com o desaparecimento do estado social. Estão, portanto, interessados em fazer aumentar o medo.

Mas, somente aquele medo que podem manipular para depois aparecer na TV como os únicos protetores da nação. O resultado é que a raiz da incerteza e da insegurança social, que são as verdadeiras causas da epidemia de medo que atingiu as modernas sociedades capitalistas, permanece intacta e se fortalece cada vez mais. Se a vida nas periferias de Roma, Milão e Nápoles é realmente terrível e perigosa, como normalmente se afirma, não é porque os habitantes são obrigados a viver em condições terríveis e porque estão expostos aos perigos derivados do fato de terem a pele com uma pigmentação diferente ou porque vão à igreja ou ao templo em dias diferentes da semana. Nos quarteirões periféricos italianos, como nos subúrbios de Paris ou Marselha, ou nos guetos urbanos de Chicago e Washington, a vida é terrível e perigosa porque foram projetados como lixeiras para os rejeitados, para os refugos humanos exilados da “grande sociedade”.

Homens e mulheres que compartilham da mesma sorte, mas que os leva a se agredirem ao invés de se unirem. Sejam quais forem os sentimentos que experimentam e as humilhações sofridas, são homens e mulheres que não nutrem muito respeito pelos próprios vizinhos, outros refugos humanos, aos quais, como a eles, foi negada qualquer dignidade e direito a um tratamento humano. Seria, no entanto, desonesto qualificar o problema dos migrantes somente como um problema de “condição social”. Os antigos remédios dos rejeitados – os desocupados ou os miseráveis de Honoré Balzac – contemplavam a revolta ou a revolução. Hoje ninguém pensa realmente que a resistência às atuais injustiças sociais possa vir das periferias. Somente os mendicantes, os traficantes, os assaltantes, os bandos juvenis esperam que isso possa acontecer.

A grande maioria dos eleitores está muito atenta ao comportamento dos líderes políticos e julga-os com base na severidade que manifestam em suas declarações públicas em torno da “segurança”. E os líderes políticos competem entre si no afã de prometer serem duros e inflexíveis contra os “rejeitos humanos”, considerados os culpados pela insegurança que atormenta a sociedade contemporânea. Na Itália, partidos como Força Itália e Liga Norte venceram as eleições prometendo, entre outras coisas, defender os sadios e robustos trabalhadores setentrionais de quem pode roubar-lhes aquele trabalho, e garantir que não haverá mais a possibilidade, para os novos chegados, de insidiarem o fruto de seu trabalho, defendendo-os dos vagabundos, mendigos, assaltantes. Para estes partidos, a possibilidade de haver uma vida digna e decente emergirá somente depois que todos os homens e mulheres qualificados como refugos humanos serão registrados e postos sob controle.

No seu livro sobre a Europa, você escreve que o velho continente está condenado a ser cosmopolita, independentemente da vontade de cada um dos estados nacionais. No entanto, em muitos países europeus os partidos populistas ou nacionalistas aumentam suas adesões…

Existe uma ideologia da globalização e há ideologias contra ela. Pois existe um ponto de vista que agora é chamado de alteromundista, porque prefigura outro modelo de globalização. Mas, não devemos esquecer-nos que também existem os processos reais de globalização que ressecam toda soberania nacional e que se contrapõem a toda possibilidade de desenvolvimento sustentável e auto-suficiente. São processos que tecem uma densa tela que envolve a terra, definindo desta forma férreos critérios de interdependência entre os países do planeta. É uma interdependência que assumiu uma forma capitalista e se impôs quando o mercado se tornou a regra dominante. Assim, enquanto a circulação dos capitais não conhecia limitações, gradualmente, mas com inflexibilidade, têm sido eliminadas todas as formas econômicas não capitalistas. Um processo que poderia ser liquidado como mera invenção ideológica. Ou então, podemos ignorar a globalização, mas somente em nosso risco – e no do planeta. Seria um erro dramático, porque, assim agindo, não enfrentaríamos uma das maiores prioridades do século XXI: repor sob controle as forças econômicas “liberadas” da forma democrática de regulação a que estavam submetidas. A tendência, em ato no mundo, pode ser sintetizada como a passagem de um mundo de estados-nação ao mundo da diáspora. A era da paradoxal aliança entre Estado, Nação e Território parece, de fato, encerrada, enquanto as bússolas da história estão voltadas ao passado. Alguns países podem tentar resistir à redução de sua autonomia econômica, política, militar e cultural. Mas, é sempre mais difícil que o consigam.

E o entanto, o neoliberalismo está em crise. Sua representação mais dramática está na falência de muitas instituições de crédito estadunidenses. Muitos estudiosos falam expressamente sobre a necessidade de um retorno do Estado como regulador da vida econômica. Porém, mais do que um retorno ao keynesianismo, parece ser a desesperada tentativa de salvar o neoliberalismo…

Convido-o a notar uma coisa. O governo estadunidense entrou em ação somente quando a tendência suicida da globalização, a desregular completamente os mercados financeiros globais, chegou ao seu auge. E peço-lhe, além disso, notar que todas as medidas que repentinamente foram tomadas, assinalando uma contradição com os precedentes atos de fé feitos pelas autoridades federais, estão animadas pela vontade de salvar da catástrofe somente os “fortes e poderosos”. Isto é, são medidas que protegem as elites econômicas, salvam os tubarões e não os peixinhos dos quais os tubarões se nutrem. Deste modo, todos os tubarões se fortalecem, não correm mais perigo e podem voltar a mover-se livremente no grande mar que é a globalização neoliberal. Num florido editorial do Financial Time de 20 ou 21 de setembro, não recordo bem, se podia ler que “os mercados globais aprovam” as ações estadunidenses para enfrentar a crise financeira. Ao mesmo tempo, eram relatadas sobriamente algumas estimativas sobre a possibilidade que tinham os “bancos e as instituições de crédito de recuperarem as perdas, de se recapitalizarem e voltarem a fazer negócios”.

Nenhuma palavra era dita sobre os motivos que haviam provocado as perdas econômicas, nem havia acenos sobre porque os mecanismos de mercado, considerados até agora infalíveis, haviam negado fogo. Uma tese confiável que circula nestas semanas é que as medidas do governo americano poderiam pôr em risco as centenas de bilhões de dólares dos contribuintes americanos somente para salvar as instituições de crédito. Aceitemos esta tese, mas eu me ponho algumas perguntas: quem são estes contribuintes? Em primeiro lugar, seja dito que os americanos estão atolados em dívidas até as orelhas, que eles estão apavorados porque o valor das empresas em que trabalham declina sempre mais, com a possibilidade de uma bancarrota e conseqüente perda do trabalho. Não se diz, portanto, vista a situação, que o governo estadunidense possa aceder a estas centenas de milhões de dólares. Além disso, sempre aquele mesmo governo destinou outros tantos milhões de dólares em despesas militares para sustentar a guerra no Afeganistão e no Iraque, cortando ao mesmo tempo os impostos para os ricos, enriquecendo-os sempre mais. Poderíamos dizer que os Estados Unidos se comportaram como milhões de cidadãos americanos, que se endividaram para continuar a viver.

Agora, o Estado norte-americano está debilitado e vive graças somente àquela instituição que é o crédito ao consumo. Não pode mais continuar indo em frente desta forma e agora pede à Europa, ou melhor, espera que a Europa possa temporariamente ajudá-lo a superar a crise. O mesmo se pode dizer da ajuda que espera possa chegar, de alguma forma, da China e dos países árabes ricos em petróleo. Em outras palavras, é um Estado insolvente que está fazendo novas dívidas para pagar aquelas já acumuladas, postergando assim o dia no qual o oficial de justiça passará a solicitar o pagamento da conta. Segundo as últimas indiscrições da imprensa, o ministro inglês da chancelaria, Alistair Darling, declarou que “precisamente como um governo não pode combater por si só o terrorismo global ou as alterações climáticas, assim não pode fazer frente às conseqüências negativas da globalização”. Gostaria, porém, de acrescentar a esta declaração que “é a própria globalização que torna vã a ação de um governo, porque torna impossível a um único governo resolver a crise do país”. Dito em outros termos, a globalização tem conseqüências globais que só podem ser enfrentadas globalmente.

(www.EcoDebate.com.br, 06/10/2008) entrevista publicada pelo IHU On-line, 05/10/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]