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Artigo

A Terra ardente, artigo de James Lovelock

Num artigo apavorante e ao mesmo tempo esclarecedor, James Lovelock, renomado cientista especializado em análises ambientais, adverte: “A Terra está entrando em um estado febril que pode durar mais de 100 mil anos”.


James Lovelock, autor da Teoria Gaia.

Imagine um policial novato extremamente entusiasmado com o cumprimento de seu dever. Imagine agora que ele tenha de dizer a uma família que seu filho foi brutalmente assassinado a pauladas. Ou então, pense em um médico que recebe a incumbência de lhe dizer que você tem um tumor maligno em metástase. Os médicos e policiais sabem que algumas pessoas aceitam a verdade com dignidade. Mas também sabem que outras tentarão negá-la veementemente, mesmo sabendo que isso não mudará a realidade.
Sejam quais forem as reações, sem dúvida, dar notícias ruins é sempre uma tarefa difícil. Nós nos sentimos aliviados quando é um juiz quem dá uma sentença de pena de morte. Afinal, temos o conforto de ao menos saber que essa decisão tem uma justificativa moral. Já os médicos e os policiais não têm nenhuma válvula de escape ao cumprir seus deveres. Por essa mesma razão, esse é, para mim, o artigo mais difícil que eu já tive de escrever.

A hipótese que desenvolvi, conhecida como Teoria de Gaia (ver box), entende a Terra como um superorganismo vivo. Como tal, esse organismo pode desfrutar de boa saúde ou simplesmente adoecer.

A Teoria de Gaia fez de mim um médico planetário e o que faço aqui é uma séria análise técnica. Nesse momento, tenho a obrigação profissional de trazer uma má notícia a vocês: os centros de análises climáticas em todo o planeta, que são os equivalentes aos laboratórios de patologia dos hospitais, analisaram as condições físicas da Terra e constataram que ela sofre de uma grave doença. Ela está a ponto de contrair uma febre fatal que poderá durar cerca de 100 mil anos.

Como médico, devo dizer a você, que é membro dessa grande família chamada Terra, que toda a sua civilização está correndo um grave perigo.

Nos últimos três bilhões de anos nosso planeta manteve-se saudável e apto a permitir o desenvolvimento da vida de modo natural. Mas nós poluímos e arranhamos em excesso esse paciente, e o fizemos num momento em que o Sol está superaquecido. Assim, provocamos em Gaia uma febre que agora está se transformando em estado de coma. A Terra já passou por uma situação trágica como essa e demorou mais de 100 mil anos para se recuperar. Nós somos responsáveis por essa nova onda febril e sofreremos duramente as suas conseqüências.

MORTANDADE DE PEIXES
Provocada pelo aquecimento global, a intensa seca atingiu a Amazônia em outubro de 2005 matou, só no Lago do Rei, no município de Várzea (AM), cem toneladas de peixes.

Se continuarmos nesse ritmo que conduzao desequilíbrio ambiental, ainda neste século, a temperatura se elevará em cerca de 8oC nas regiões temperadas e 5oC nos trópicos. Grande parte da massa tropical da Terra se tornará deserta, limitando ainda mais os seus mecanismos de auto-regulação. Some-se a isso o fato de que já devastamos 40% de sua superfície com as atividades industriais e agropecuárias e as perspectivas se tornam ainda mais sombrias. Curiosamente, a poluição causada pelo uso de aerossóis no Hemisfério Norte reduz o aquecimento global ao criar uma camada que reflete a luz solar de volta ao espaço. Esse “escurecimento global” é transitório e poderá desaparecer em pouco tempo, deixando-nos inteiramente expostos ao calor da estufa global. Nesse momento, vivemos um clima enganoso, que é mantido acidentalmente fresco pela camada de poluentes. Porém, o desenlace mais provável é que bilhões de pessoas morrerão antes do final do século 21. Os únicos sobreviventes serão os povos que habitam a região do Ártico, onde o clima ainda permanecerá tolerável. Nós não estamos percebendo que a Terra regula sintomaticamente seu clima e sua composição. Estamos cometendo um erro gravíssimo ao tentar cuidar, nós mesmos, dessa tarefa, como se estivéssemos no comando desses mecanismos reguladores altamente complexos.

Essa tentativa descabida nos condena ao pior tipo de escravidão.
Se nos elegermos como administradores do planeta, automaticamente nos tornaremos responsáveis por manter sua atmosfera, oceanos e superfícies sempre favoráveis à vida. Logo descobriremos que essa é uma tarefa impossível de ser realizada. Afinal, temos retribuído com devastação desenfreada a todas as comodidades que o planeta nós tem graciosamente oferecido por milênios.
Para compreender como essa tarefa é impossível, pense como você, caso estivesse gravemente adoecido, poderia regular sua própria temperatura ou a composição de seu sangue sem ajuda médica. Pessoas que têm rins debilitados conhecem bem a interminável dificuldade diária de ajustar equilibradamente as entradas de água, sal e proteínas no organismo. O apoio tecnológico da diálise pode até ajudar, mas está longe de se comparar com a qualidade garantida por rins que funcionam saudavelmente.

Em meu novo livro, A Vingança de Gaia, faço uma extensa análise dessas questões. No entanto, você ainda pode estar se perguntando: “Por quê a ciência demorou tanto tempo para reconhecer a verdadeira natureza da Terra?”
Acredito que seja porque a visão de Darwin foi tão clara e tão bem elaborada que, até hoje, estamos assimilando os seus conceitos. Contudo, vale lembrar que, quando ele desenvolveu a Teoria da Evolução das Espécies, o conhecimento sobre a química da atmosfera e dos oceanos ainda era muito limitado. Darwin não dispunha de informações suficientes para saber que os organismos vivos tanto podem se adaptar ao meio ambiente como podem, também, provocar alterações nele.
Se Darwin soubesse que a vida e o meio ambiente estão conectados de maneira tão íntima, ele veria que a evolução envolve não apenas os organismos vivos, mas a superfície planetária como um todo.

GLACIARES DESAPARECEM
Na foto superior, um glaciar da Patagônia argentina em 1928. Ambaixo, em foto tirada do barco Artic Sunrise, do Greenspeace, o mesmo glaciar na atualidade. O retrocesso do gelo é evidente.

Nós vimos a Terra do espaço e, lá de cima, pudemos percebê-la como um organismo vivo. Sabemos que não podemos poluir o ar ou usar a superfície terrestre – os ecossistemas de suas florestas e oceanos – como uma mera fonte de produtos para nos alimentar e fornecer mais conforto. Sabemos instintivamente que esses ecossistemas devem ser preservados porque fazem parte da Terra viva. Sendo assim o que deveríamos fazer? Primeiramente, temos de nos conscientizar do ritmo acelerado em que as mudanças ambientais estão ocorrendo. E também de como temos pouco tempo para agir se quisermos evitar o pior. Diante da urgência desse quadro, cada comunidade e cada nação devem fazer o melhor uso de seus recursos para garantir a sobrevivência da civilização pelo maior tempo possível. A civilização é movida a energia e nós não podemos simplesmente desligá-la. Portanto, necessitamos de uma redução de consumo em bases seguras. Devemos ser conscientes de que devemos pensar na humanidade como um todo e não apenas em nós mesmos.

A mudança ambiental é global, mas cada região do globo tem suas particularidades. Eu, por exemplo, moro na Inglaterra. Nós, cidadãos britânicos, temos de tratar das conseqüências aqui no Reino Unido. Infelizmente, temos tantas áreas urbanizadas em nossa nação que hoje somos praticamente uma única grande cidade. Restaram pouquíssimas áreas para a agricultura e para a preservação das florestas.

Assim, nós ingleses, dependemos do mundo para sobreviver. A mudança climática irá nos negar as fontes de alimento e de combustível que vêm de outros países. Na Inglaterra, podemos até crescer mantendo um nível de consumo como o que adotamos durante a Segunda Guerra Mundial. Mas chega a ser ridícula a idéia de que meu país tem terra suficiente para produzir biocombustíveis ou para implantar fazendas movidas à energia eólica.

EXTINÇÃO DE ESPÉCIES
Espécies delicadas como o beija-flor nectarina, da África do Sul, serão duramente afetadas pelo efeito estufa e poderão se extinguir.

Tenho certeza de que nós, ingleses, faremos de tudo para sobreviver. Mas infelizmente não vejo os Estados Unidos ou as grandes economias emergentes, como a China e a Índia, voltando no tempo. O pior é que sabemos que esses países são os que mais emitem gases na atmosfera. A catástrofe irá ocorrer e os sobreviventes terão de se adaptar a um clima infernal. O mais triste de tudo é que Gaia perderá muito mais do que nós. Não serão apenas animais selvagens e ecossistemas inteiros que irão desaparecer: desaparecerão também preciosos recursos necessários ao desenvolvimento da civilização.
Na nossa relação com a Terra, não somos meramente uma doença. Com nossa inteligência e nossa capacidade de comunicação, somos o sistema nervoso do planeta. Através de nós, Gaia foi vista do espaço e ganhou consciência de seu lugar no Universo. Devemos, portanto, ser o coração e a mente da Terra e não a sua doença. Teremos de ser fortes e parar de pensar unicamente em nossos direitos e necessidades. Precisamos tomar consciência de que prejudicamos a vida na Terra e temos de fazer as pazes com Gaia. Devemos fazer isso enquanto ainda somos fortes o bastante para negociar, e não quando formos hordas descabeçadas, conduzidas por brutais Senhores da Guerra. Sobretudo, devemos recordar que somos parte da Terra e que ela é, antes de mais nada, o nosso lar.

Artigo originalmente publicado pela Revista Planeta, EDIÇÃO 414