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Artigo

O Dilema da Transposição, artigo de Apolo Heringer Lisboa

[EcoDebate] Decifra-me ou devoro-te! – eis a questão colocada à sociedade pelo projeto da transposição do São Francisco. Fez emergir o que a indústria da seca ocultava: a verdadeira situação sócio-ambiental do semi-árido brasileiro e da bacia hidrográfica do São Francisco. O rei está nu, apanhado na mentira política e na fraude técnica, por dolo ou desconhecimento. Esta questão é emblemática e apaixonante porque concentra todas as mazelas de uma política perversa e sistêmica. Lula cedeu às pressões de grupos cuja hegemonia ele prometia pôr fim. Esta atitude mina a confiança no sistema democrático brasileiro.

O dilema tomou características agudamente trágicas com a decisão do bispo Luiz Flávio Cappio de permanecer em jejum e oração, até o arquivamento definitivo do projeto e a retirada do Exército. O sacrifício extremo de dom Cappio se dirige à nação brasileira. Pretende despertá-la e fazê-la refletir, acreditando que isto possa liberar a grande energia que é a consciência popular, ainda que após sua morte. É um gesto de quem crê numa proposta de transformação, não apenas em projeto de poder pessoal ou partidário.

O jogo ilusionista do projeto da transposição prometeu o impossível, levar água do São Francisco a sedentos sertanejos de uma população dispersa pelo sertão. Água que está lá nos ociosos açudes e no não-aproveitamento eficiente das chuvas. Como contrapor à mentira? Os grandes meios de comunicação são dependentes da venda de espaços ao governo federal e grandes empresas, que esperam lucrar com as obras. A liberdade de empresa sobrepujou a liberdade de imprensa, e as concessões de estado empoderaram o interesse privado em detrimento do interesse público. Sem informação correta as pessoas se equivocam mais facilmente. O dilema da democracia brasileira é estar permanentemente acossada entre o poder econômico e as mentiras implantadas na opinião pública.

Há pessoas que não crêem nas religiões, mas têm fé, pois para eles a vida e a história têm lógica. Enxergam uma inteligência que se manifesta na Natureza, nos códigos genéticos, nas paisagens e expressões dos seres vivos, na preocupação nossa com a liberdade e com a construção ética de um sistema solidário, biocêntrico e ambientalmente sustentável. Este tipo de fé lógica, que prioriza o conhecimento científico e a imaginação criadora, é incompatível com todas as formas de mentira e de negação da vida, em seu sentido mais amplo e generoso. Por isso convergimos com dom Cappio e o admiramos. Esta é a posição da coordenação do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais, que organizou a Caravana do São Francisco e do Semi-Árido, em Agosto, percorrendo 11 estados e lançando proposta de diálogo e negociação de 7 pontos, que o governo federal não respondeu. Ela foi representativa e assinada por todos os segmentos envolvidos na questão que neste momento dom Cappio encarna.

Na Índia, Mahatma Gandhi desenvolveu estratégia de transcendental importância histórica, propondo a resistência ativa não-violenta. Morrer se for preciso, matar nunca. Levou até o fim, com coerência impressionante de fé, sua missão. Aqueles que criticam a postura de dom Cappio rejeitam também Mahatma Gandhi. Não percebem que frei Cappio, com capacidade rara de descortínio, antevê o dilema da guerra e da paz que ronda nossa sociedade. A exemplar opção da resistência ativa não-violenta rejeita a crítica das armas; tenta obter, através do diálogo político e da objeção de consciência solução para os conflitos sociais. Opor a este caminho é que seria uma verdadeira loucura. Os partidos estão irrecuperavelmente degenerados, a corrupção tomou conta das instituições e do processo eleitoral, e a democracia está encurralada. Caso não surjam propostas e novas estratégias para o povo fazer valer sua vontade, como a da resistência ativa não-violenta da sociedade civil, a violência poderá crescer e assumir dimensão política. Aí será tarde demais.

Na carta que enviou ao presidente Lula dom Cappio lhe diz: “o senhor não cumpriu sua palavra. O senhor não honrou nosso compromisso. Enganou a mim e a toda a sociedade brasileira. Uma nação só se constrói com um povo que seja sério, a partir de seus dirigentes. A dignidade e a honradez são requisitos indispensáveis para a cidadania. A vida do rio e do seu povo ou a morte de um cidadão brasileiro”.

A decisão está com o PT e o presidente Lula. Caso dom Luiz Cappio venha a falecer, caso eles não se rendam a tempo à necessidade do diálogo verdadeiro na construção política brasileira, teremos um mártir. Seus algozes, com sigla, rostos e nomes, que por ação, omissão e acordos espúrios produziram este episódio, terão que se esconder do julgamento inclemente da História, que o infinito Tempo irá tingir de cores cada vez mais nítidas, haja em vista os casos de Anás, Pôncio Pilatos e Herodes.

A área onde o Exército está é muito próxima da região de Canudos, e de onde está o bispo, terra onde os sertanejos enfrentaram no final do século XIX forças análogas às que defendem a transposição. “Nós tentamos ser a Organização. A Frente de Libertação. Nós tentamos ser a Revolução. Banir para sempre a falta de pão deste chão. Mas chegaram as ordens da República. E o regime oposto chegou no sertão”. (Música de Marcos de Canudos, lembrando a luta liderada por Antonio Conselheiro até 1897). Como dizia Lula no passado: “É preferível a lágrima da derrota que a vergonha de não haver lutado”.

(*) A Carta da Caravana e a revista Transposição: Águas da Ilusão, estão no site www.manuelzao.ufmg.br
Com mínima alteração, com as quais concordamos, dom Cappio acaba de enviar ao governo federal a proposta construída pela Caravana do São Francisco.

1- Adução de 9m3/s para os estados de Pernambuco e Paraíba redimensionando o projeto atual de 28m3/s, através de termo de ajustamento entre o empreendedor e o Ministério Público Federal com interveniência dos estados da bacia, do estado da Paraíba e do Comitê de Bacia do Rio São Francisco.
2- Suspensão do Eixo Norte da Transposição.
3- Adoção das obras previstas no Atlas do Nordeste de Abastecimento de Água que ainda não estão contempladas no PAC com ênfase para o Oeste do estado do Ceará e Sertão Central/Inhamuns.
4- Incremento do apoio da União à introdução de tecnologias que garantam o abastecimento de água e produção da população que reside no meio rural do Semi-Árido Brasileiro.
5- Apoio à revitalização das bacias hidrográficas dos rios Jaquaribe no Ceará e Piranhas-Açu no Rio Grande do Norte.
6- Apoio técnico-político ao Comitê de Bacia do São Francisco para elaboração do Pacto de Gestão das Águas do São Francisco com inclusão imediata do atendimento às demandas para abastecimento humano do estado da Paraíba e consideração dos pleitos dos estados do Ceará e Rio Grande do Norte para abastecimento humano e dessedentação de animais.
7- Coordenação pela União da elaboração de um Plano de Desenvolvimento para todo o Semi-Árido Brasileiro, sustentável e socialmente inclusivo.

Apolo Heringer Lisboa, Projeto Manuelzão, UFMG