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Mineração: Entre natureza e homem: onde estará o equilíbrio? artigo de Lúcio Flávio Pinto

Adital – Agora, é Curionópolis. O futuro do Pará está indissoluvelmente associado à mineração. Por uma razão: seu subsolo é muito rico. Mas a exploração dessa riqueza não tem resultado em desenvolvimento. A cada novo projeto renascem as esperanças, mas elas se frustram com o tempo. Esse ciclo vai se repetir com a nova mina de ferro da CVRD, em Serra Leste? Esta é a questão.

Parauapebas, um dos 5.560 municípios do Brasil, foi responsável, sozinho, por 3% do saldo da balança comercial brasileira de 2005, o maior alcançado até então, em todos os tempos. Permitiu o ingresso no país de 1,3 bilhão de dólares líquidos (mais de 2,5 bilhões de reais), o equivalente a um terço do orçamento anual do Pará. O Estado foi, nesse ano, o quarto de toda a federação que mais superávit registrou na conta entre o que exportou e o que importou. Como as vendas externas paraenses somaram US$ 4,2 bilhões (mais de R$ 8 bilhões), Parauapebas respondeu por um terço desse total. Foi o principal município exportador do Estado e o segundo maior importador, superado apenas por Barcarena, que tem a mais importante concentração industrial do Pará. Belém só conseguiu exportar US$ 264 milhões em 2005, cinco vezes menos do que Parauapebas, que possui uma população 20 vezes menor do que a da capital.

O trunfo do município é ter em seu território, de “apenas” (para os padrões amazônicos) 7 mil quilômetros quadrados, a melhor jazida de minério de ferro do planeta, na província mineral de Carajás. Em 2005, Parauapebas produziu 80 milhões de toneladas do minério de mais elevado teor de pureza comercializado no mercado internacional. Por isso, seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), de 741, foi o mais alto do Estado, igual ao da capital, em 2000 (o último dado disponível). Apesar de ser o maior IDH da região sul/sudeste do Estado (o de Marabá, que é a capital regional, ficou em 714), esse valor ainda é inferior à média brasileira, que é de 766 (numa escala que vai até 1.000), média que inclui, naturalmente, a região mais pobre do país, o Nordeste.

Quem sai do universo das representações simbólicas da realidade, como, por exemplo, sua expressão numérica, e vai à própria realidade, percorrendo as ruas de Parauapebas ou circulando pela sua zona rural, dificilmente conseguirá encontrar as exteriorizações dessas estatísticas gloriosas no papel. Lixo nas ruas, casas precárias e um ar de desorganização ajudam a explicar por que Parauapebas teve um dos maiores índices de hanseníase do mundo e ainda convive com a doença de Calazar, transmitida por cães, que circulam livremente pela cidade. Parece que a riqueza no alto, no comércio exterior, passa por um filtro fechadíssimo antes de chegar à larga base demográfica: apenas uma fração da renda gerada pinga para os moradores de Parauapebas.

Se ficou assim no mais antigo município minerador da região, de cujas entranhas a Companhia Vale do Rio Doce, a segunda maior mineradora do mundo e a maior empresa privada do continente, extrai ferro há mais de duas décadas, qual será o destino dos novos municípios mineradores, que começam a se multiplicar no sul do Pará? O município da vez é Curionópolis, que surgiu em 1988, em função de um dos fenômenos de maior impacto na história recente da região: o garimpo de Serra Pelada. Nele, chegaram a morar e trabalhar 80 mil pessoas, atraídas – principalmente do Nordeste, com ênfase no vizinho Maranhão – pelas lendas em torno de uma fantástica concentração de ouro à flor da terra.

Se a taxa de desocupação em Parauapebas já é alta (mais de 15%), a de Curionópolis é ainda maior: 16,35%. Dois terços da população do município tem renda inferior a dois salários mínimos. De seus 20 mil moradores, apenas 108 ganhavam acima de 10 salários mínimos em 2000. A maior e melhor fonte de emprego é a prefeitura. Mas para manter seus 650 funcionários, a municipalidade compromete toda sua renda, que é de R$ 600 mil por mês. Praticamente não pode fazer mais nada.

Agora a CVRD anuncia a criação no município de 350 novos empregos diretos, os que resistirão depois que outros 400 contratados para a fase de implantação forem dispensados, para então o Projeto Serra Leste começar a operar, em 2009, produzindo 2 milhões de toneladas anuais de minério de ferro, com investimento de R$ 300 milhões. Um valor equivalente a 40 anos de receita do município, mas esta totalmente aplicada em custeio, sem um centavo para investimento. Só de ISS, o imposto sobre serviços, a receita de Curionópolis aumentaria 50% com Serra Leste.

O valor do investimento é tão grande que quem é confrontado com ele em Curionópolis logo o associa a desenvolvimento, encarando-o com otimismo e esperança. Tão submersos em pobreza quanto o fundo da cava do garimpo de Serra Pelada, sob uma lâmina d’água de quase 100 metros, os moradores do município dispõem-se a acreditar que a nova mina é a única oportunidade ao seu alcance para mudar uma história sem qualquer outro vislumbre de transformação no horizonte. Mas será realmente mudança para melhor ou, como em Parauapebas, apenas criará uma aparência de progresso, uma bolha de riqueza, que não estará ao alcance do comum dos mortais da região?

Esta é a questão, abordada nas matérias seguintes. Em Curionópolis, começou um capítulo novo da história da mineração. Seu título poderá ser “o futuro”. Ou “o quase-futuro”. Ou “o não-futuro”. Vai depender da participação dos atores na nova saga.

Entre natureza e homem: onde estará o equilíbrio?

Em 2009, a Companhia Vale do Rio Doce deverá extrair 130 milhões de toneladas de minério de ferro da província de Carajás, no sul do Pará, uma quantidade superior a tudo que os Estados Unidos produziam na década seguinte à Segunda Guerra Mundial, quando se consolidaram como a única potência mundial. Menos de 2% desse total deverão sair de uma nova área de mineração, a de Serra Leste, se o projeto conseguir concluir seu licenciamento ambiental, ainda em curso.

A produção anual da nova mina equivalerá a uma semana de lavra na mina antiga, que entrou em operação em 1984. Apesar do contraste entre as duas grandezas, Serra Leste está provocando uma polêmica que nunca existiu em Carajás, seja no ponto de partida, quando o projeto previa a produção de 25 milhões de toneladas anuais, como nas suas sucessivas ampliações, até chegar à impressionante escala de 130 milhões de toneladas.

Os encontros prévios e as quatro audiências públicas realizadas para debater o EIA-Rima de Serra Leste não foram suficientes para satisfazer as restrições ao estudo de impacto ambiental apresentadas pelo Ministério Público. Ao final da última etapa de discussão, os representantes do MP estadual e federal reiteraram o desejo de que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente devolva o estudo e exija da CVRD e de sua consultoria que o corrijam, complementem e enriqueçam. Só então o licenciamento seria retomado.

Por dispositivo legal, depois da última audiência pública, realizada na semana passada em Belém, começou a correr o prazo de 10 dias para a apresentação de qualquer questionamento ou contribuição ao documento. A partir daí, a questão será submetida ao Conselho Estadual do Meio Ambiente, que decidirá se o projeto tem ou não viabilidade ambiental para começar a ser implantado e entrar em operação. Diante das objeções do MP, é pouco provável que o cronograma previsto pela CVRD seja seguido, com o início da implantação em 2008 e a produção no ano seguinte.

Essa possibilidade dependerá de um entendimento entre a secretaria estadual, a empresa, sua consultora e o MP em torno dos pontos controversos e das insuficiências do EIA-Rima. Os representantes da Vale garantem que poderão responder a todos os questionamentos que lhe forem apresentados diretamente e corrigir o trabalho em tempo de seguir o cronograma estabelecido para que a licença ambiental saia antes do final do ano. Estão convencidos de que as restrições são secundárias, não têm consistência ou – o que dificilmente confirmarão em público – são insubsistentes.

O prefeito de Curionópolis, município onde a jazida de Serra Leste se localiza, manifestou esse ceticismo na audiência na capital, embora de forma dura e irônica. O coronel (da reserva do Exército) Sebastião Curió sugeriu que as críticas manifestadas pelos quatro promotores (três estaduais e um federal) presentes e por seus dois assessores eram exageradas, preciosas ou artificiais. Para desmerecer algumas das preocupações do MP, Curió se valeu do seu conhecimento íntimo da região, adquirido desde o início da década de 70, quando, como agente do SNI (Serviço Nacional de Informações), ajudou as forças armadas a combater a guerrilha do Partido Comunista do Brasil no Araguaia e a coordenar o garimpo de Serra Pelada.

Observou que algumas das 96 cavidades naturais existentes em Serra Leste e já inventariadas, que foram um dos temas centrais da audiência, foco de tantas polêmicas, têm um tamanho minúsculo, não devendo ser tomadas como verdadeiras grutas. Dentro de algumas delas a presença dominante é a de roedores, sobre cuja situação um dos assessores do MP manifestara preocupação específica, permitindo ao prefeito lembrar-lhe que a preocupação dominante deve ser com as pessoas, não com os roedores. E os 20 mil moradores de Curionópolis, 10% dos quais foram à audiência pública realizada no município, estavam precisando urgentemente de empregos. Os oferecidos pela CVRD são sua melhor – ou única – perspectiva de trabalho.

Os defensores do Projeto Serra Leste bateram forte nessa mesma tecla: quem se opõe ao empreendimento mora longe dele (Belém fica a 630 quilômetros de distância), não conhece a realidade local, não participa dela e tem sobre ela idéias em abstrato, teóricas, acadêmicas, exóticas. Essas pessoas podem ser inflexíveis na exigência do cumprimento da lei e da adequação técnica do projeto, até as mais profundas minúcias, porque não estão com sua sorte em jogo. Ou, o que é pior, utilizam esses argumentos sofisticados como pretexto para conseguir um objetivo não declarado: inviabilizar os “grandes projetos”.

Quando as discussões se aprofundaram e os ânimos esquentaram, o confronto, contido, transbordou: depois de receber de volta as críticas que fez aos representantes do MP, o prefeito de Curionópolis não esperou pelo fim da audiência. Insubmisso às regras dos debates, em protesto, se retirou do auditório da Federação das Indústrias, arrastando consigo os 44 representantes do seu município, que viajaram a noite toda de ônibus para chegar a Belém.

De fato, à primeira vista, parecia haver exagero por parte dos integrantes do Ministério Público. As duas cavas da mineração não ocupam mais do que 30 hectares, o equivalente a um único lote-padrão nos assentamentos rurais do Incra. Incluindo a área da rodovia que ligará a mina à ferrovia, com 30 quilômetros de extensão (18 deles já desmatados e ocupados), e o pátio de embarque, a área operacional de Serra Leste mal chega a 100 hectares, o tamanho do módulo rural brasileiro. Multiplicando-se por 10 a área de influência direta, a mineração ainda não atingiria o porte das fazendas de gado que a cercam. E estas provocaram efeitos ambientais, sociais e econômicos desastrosos, sem merecer um átimo da atenção dispensada ao empreendimento da CVRD.

Quem descortinar o cenário dessa região com base não apenas em imagens de satélite ou fotografias aéreas, ou em interpretações extraídas de rápidas incursões ao local, enxertadas com deduções criativas, embora nem sempre verdadeiras, dificilmente acreditará que a mineração de ferro de Serra Leste, conforme a configuração apresentada no EIA-Rima, poderá ter conseqüências piores do que as das fazendas, ainda que os cuidados ecológicos apresentados sejam insuficientes ou insatisfatórios. Por um fator elementar e inquestionável: as fazendas não adotaram nenhum procedimento para prever, evitar ou atenuar seu impacto. Foram implantadas na marra, à margem da lei – ou contra ela.

Não é por isso, evidentemente, que Serra Leste poderá evoluir em porteira aberta. Felizmente, agora há normas de proteção da natureza, de apoio ao homem, de correção das distorções criadas pela ocupação humana, de compensações pelos danos causados e de rigor na antecipação do que ocorrerá antes, durante e depois da existência do empreendimento produtivo. No início da implantação de Carajás, em 1977, essa codificação legal praticamente inexistia (a legislação ambientalista começa em 1981). Os direitos difusos e coletivos só foram consolidados na Constituição de 1988, que indicou também o órgão por excelência para exercê-los: o Ministério Público.

Mas assim como promotores e procuradores estão sujeitos a erros, que freqüentemente cometem, os EIA-Rimas também revelam suas inconsistências quando submetidos ao teste da verdade. Os erros têm uma causa estrutural: os consultores que realizam os estudos são contratados pelas empresas que causarão os impactos. Logo, não têm autonomia suficiente para funcionar como auditores independentes. Por mais que contratem pessoal qualificado e tentem desempenhar sua função a contento, seu ponto fraco é depender do agente do pagamento, que é o maior interessado na questão: o empreendedor.

A situação seria diferente se houvesse um fundo público destinado a financiar os EIA-Rimas, formado pela contribuição compulsória das empresas sujeitas a licenciamento ambiental, mas sob a gestão do órgão público competente. Este, porém, sujeito à fiscalização financeira do contribuinte, ao qual prestaria contas das despesas realizadas.

As objeções feitas pelo Ministério Público ao EIA-Rima de Serra Leste são procedentes e têm que ser respondidas pela Vale e sua consultora antes que o documento seja considerado satisfatório e o Coema possa decidir sobre o licenciamento.

Há erros flagrantes no estudo, desde os pequenos, mas significativos, como datar de 1998 a privatização da CVRD, ocorrida um ano antes, até lacunas resultantes da pressa, superficialidade ou mesmo incompetência na apresentação de determinadas questões. Incongruências e mal-entendidos geraram discussões acacianas ou inúteis na audiência.

É inegável, como observaram os promotores, que o projeto de mineração descrito no EIA-Rima é parcial, incompleto. O conjunto de jazidas foi cubado em 300 milhões de toneladas de minério de ferro. A Vale só pretende explorar 10%, ou 30 milhões. Na escala de produção definida, de 2 milhões de toneladas anuais, a mina terá vida útil de 15 anos. É um tamanho modesto, que só tem atrativo comercial porque o preço do minério é atualmente três vezes maior do que quando o primeiro trem saiu de Carajás com sua carga.

O MP quer que o EIA-Rima abranja, minuciosamente, os 300 milhões de toneladas, imaginando que o impacto socioambiental acompanhará essa ampliação, principalmente em relação a alguns aspectos, como a atração de migrantes, as demandas públicas e uma questão que se tornou – como dizem os acadêmicos – paradigmática: as cavidades naturais. A atenção a elas compensa, agora, a ignorância durante o período anterior, quando a Vale fez o que quis, indiferentemente a esse condicionante físico-cultural. As 100 cavernas de Serra Leste provocam um barulho que não houve no restante da província mineral, que tem mais 900 cavernas, algumas já destruídas e outras na mira das escavadeiras. Mas a compensação não está sendo tratada em parâmetros aceitáveis.

De sua parte, a Vale diz que, ao se restringir aos 10%, aceitou a premissa de que, até prova satisfatória em contrário, as áreas de concentração das cavernas são intocáveis. Se incluísse o universo da mineralização, estaria infringindo a lei. É o que faria se atendesse às observações do MP.

Como costuma acontecer, a verdade está num ponto intermediário entre as duas posições. Sempre os números da mineração em Serra Leste são referidos como algo provisório, temporário, inicial. O EIA-Rima diz que os 30 milhões de toneladas lavráveis são “disponibilidade de minério para explotação possível atualmente”. Mas a escala poderá evoluir de 2 milhões para 7 milhões de toneladas anuais se for possível utilizar todos os jazimentos existentes na área. E provavelmente é isso que a empresa tentará fazer depois da exaustão dos 30 milhões já definidos. Ou quando o preço cair tanto que afetar a rentabilidade do empreendimento, impondo-lhe nova escala de produção.

Como seria de se esperar em tal situação, a Vale não apresentou ao distinto público todas as cartas que tem nas mãos. O investimento no Projeto Serra Leste foi definido em 300 milhões de reais, mas inclui apenas o que será preciso gastar até o minério chegar à linha férrea. Não inclui o custo do transporte, que acarretará despesas específicas ao projeto, mesmo ele se utilizando da estrutura já montada na ferrovia de Carajás, até o embarque no porto da Ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão, no caso do minério destinado à exportação (parte da produção abastecerá as guseiras locais).

A CVRD definiu que Serra Leste é viável economicamente com jazida de 30 milhões de toneladas, produzindo 2 milhões de toneladas ao ano, num período de 15 anos. Essa viabilidade é possível por causa do excepcional preço que a companhia alcançou no mercado internacional, com ênfase sobre a China. É pouco provável, porém, que esse seja o parâmetro em mais alguns anos (ou num período ainda mais curto, se a crise financeira atual deixar seqüelas econômicas). Percebe-se que a empresa montou um cenário alternativo para o atual projeto, só que não o apresentou.

Não é raro esse procedimento, muito pelo contrário. Cabe, simplesmente, não ignorá-lo. Os licenciadores podem autorizar a implantação de Serra Leste, condicionando a aprovação a alguns procedimentos imediatos e prévios. A Vale reservaria um determinado volume de recursos, a ser definido tecnicamente, que financiariam novos estudos de arqueologia e espeleologia sobre as cavidades naturais, a serem conduzidos pelo poder público, através de consultoria própria, e sobre os impactos indiretos mais amplos e as compensações socioambientais.

Esses estudos é que definiriam se a CVRD poderia ir – ou não – além do projeto licenciado para a escala de 30 milhões de toneladas, esgotada em 15 anos, à proporção de 2 milhões de toneladas anuais. Os pólos se inverteriam: o poder público é que apresentaria o novo EIA-Rima, enquanto a empresa submeteria o documento à sua crítica, em novas audiências públicas. Se agora ela manobra e esconde o jogo, depois essa manipulação será inútil. O feitiço se voltaria contra o feiticeiro.

Curió: agora, ao lado da Vale

De um lado, cinco mil furiosos garimpeiros querendo subir a serra e invadir as instalações da Companhia Vale do Rio Doce na mina de ferro de Carajás. Do outro lado, a menos de 50 metros de distância, 500 homens da Polícia Militar com a missão de detê-los. Mesmo armados de fuzis, metralhadoras e pistolas contra estoques, facas e algum revólver escondido, os PMs não conseguiriam segurar a massa. A desproporção era muito grande. Por isso, dinamite foi instalada nas pilastras da ponte sobre o rio Parauapebas, o último obstáculo antes das instalações da mina. Se os garimpeiros passassem pela tropa, a ponte viria abaixo. Poderiam prosseguir, mas a pé. Os veículos que traziam ficariam do outro lado. O clima era de guerra.

Na madrugada antes do dia da invasão, veio a boa notícia de Brasília: o governo federal autorizara a reabertura de Serra Pelada. A garimpagem fora proibida porque a CVRD exercera seus direitos ao subsolo na área, que admitira sustar para que milhares de garimpeiros pudessem retirar o ouro superficial, de aluvião, recebendo compensação do governo. Mas naquele ano de 1984 decidira retomar seus direitos de pesquisa e lavra, obtidos 10 anos antes, porque o ouro remanescente, se houvesse, estaria em maior profundidade, inacessível à extração manual. Os garimpeiros não partilhavam esse convencimento técnico. Para eles, a Vale estava blefando: lá embaixo havia uma enorme laje de ouro, compacta, com 30 mil toneladas, quase tanto quanto todo metal disperso pela crosta terrestre.

O autor dessa fantástica riqueza era o então administrador do garimpo, o tenente-coronel do Exército Sebastião Rodrigues de Moura. Curió, como ele era mais conhecido, também difundira outra verdade entre os garimpeiros: a Vale era uma multinacional, que se apropriava de tudo, uma “gata”, conforme passou a ser chamada, com desprezo e raiva. Por isso, a revolta estourou quando baixou de Brasília a ordem de fechamento. Diante da iminência de um conflito sangrento, de proporções imprevisíveis, o governo teve que ceder e reabrir o garimpo. Mas ele não voltou à sua época de fama. O ouro fácil acabara. A laje não passava de miragem. Nem um pouco gratuita.

Não deixava de ser surpreendente observar, 23 anos depois da maior ameaça a que a mina de Carajás foi exposta, a inversão dos papéis. Já como prefeito do município onde funcionou o garimpo, e que levou o seu nome, Curionópolis, o ex-comissário dos órgãos de segurança para toda a região se apresentava como defensor da CVRD, na audiência pública do Projeto Serra Leste.

Com a voz pausada e arrastada, por alguma seqüela física, mas os cabelos sempre perfeitamente aprumados e pintados, Curió contestou a comparação feita pelo Ministério Público entre a nova mina de ferro da empresa e Serra Pelada. A diferença entre as duas realidades é óbvia, mas na fase de responsável pelo garimpo, do qual expurgou dois dos seus elementos mais típicos (mulher e bebida alcoólica) e ao qual impôs ritos militares (toque de alvorada, hasteamento da bandeira nacional, canto do hino brasileiro), Curió preferia ignorar essas evidências, se não fossem da sua conveniência.

Na defesa da imediata e integral implantação do projeto da CVRD, Curió procurou ironizar os representantes do MP e jogar contra eles o auditório, boa parte dele ocupado por moradores de Curionópolis, transportados em ônibus fretado pela prefeitura. Ao ser alertado pelo presidente da mesa da audiência de que seu tempo se esgotara, Curió protestou com energia, ameaçando com retaliações. A promotora Eliane Moreira, por ele chamada de “mocinha”, lembrou-lhe que a época da ditadura, durante a qual ele se celebrizara, já passara. “Agora estamos numa democracia e é preciso ouvir o outro”, disse a promotora, encarando com firmeza o prefeito, e pedindo para ser tratada como representante de um poder institucional.

Curió preferiu se retirar da sessão, levando consigo seus munícipes, dentre os quais já circulava uma outra história: de que no meio do calcário da região havia diamantes, que seriam subtraídos do povo. A origem da nova lenda, porém, não foi identificada.

CVRD

Uma sugestão para as duas partes: CVRD e governo do Estado deviam criar uma comissão quatripartite destinada a acompanhar os projetos implantados e operados pela empresa no Pará. A comissão é necessária diante das dimensões da Vale, que a tornam tão importante quanto o poder público. No caso de investimentos, mais até. Seriam três representantes da empresa, três do governo, três da sociedade civil e três de instituições públicas de pesquisa, ou um número qualquer que guardasse essa proporção.

A comissão se reuniria ordinariamente todos os meses e, extraordinariamente, quando necessário. Podia incluir convidados nas suas reuniões, que seriam abertas ao público, mas ele não teria direito a voz. Os espectadores encaminhariam suas questões aos integrantes da comissão, que as formulariam em seus nomes, se assim o desejassem.

Os documentos produzidos pela comissão ou a ela submetidos seriam de franca consulta pelos interessados, com direito a obter cópias (por eles pagas, naturalmente). A pauta de cada reunião seria divulgada com antecedência, assim como, posteriormente, a ata de cada reunião. A comissão seria consultiva, mas suas observações e recomendações teriam que ser consideradas e respondidas, tanto pelo governo quanto pela CVRD.

Talvez assim o Pará fique em condições de bem acompanhar as atividades de uma empresa que investe no Estado 10 vezes mais do que o próprio governo paraense.

Lúcio Flávio Pinto é Jornalista

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina